Do lado de lá, numa videochamada, Mag Rodrigues apareceu pouco depois de ter regressado de um turno de enfermagem. A fotógrafa e a enfermeira são uma só, mas dividem-se no tempo que Mag consegue dedicar a cada uma das áreas que exerce. Como em (quase) tudo na vida, é inevitável que os caminhos se liguem, e é por isso que Mag já encontrou estórias que percebeu que tinha de fotografar ao sair de uma formação no hospital ou a caminho do trabalho. É que mesmo que o pensamento esteja no modo “enfermeira”, o olhar cuidado de fotógrafa está lá.
Recentemente, o nome de Mag Rodrigues, natural de Lisboa, surgiu no P3 a propósito do projeto "Três por Quatro", onde fotografou carteiras de pessoas que guardam fotografias dos seus familiares e outros entes queridos, num gesto de conexão e profundo afeto. “Vou percebendo que é isto que me agrada: em sítios mais inusitados encontrar valores universais, como o amor e a perda”, disse ao Gerador a propósito de "Três por Quatro". Essa demanda por trazer à tona atividades, condições ou objetos da vida de todos os dias, para lhes conferir um valor que muitas vezes não lhes é dado, é algo que atravessa, de uma ponta à outra, todo o trabalho de Mag Rodrigues. De “Subsolo” a “As Senhoras”, de “Mãos do Metro de Lisboa” a “Primeira Linha” ou “Três por Quatro”.
Também a conversa que teve com o Gerador acabou por atravessar os projetos que desenvolveu, (quase) de uma ponta à outra. Entre sorrisos e partilhas, conversou-se sobre a urgência do registo, a necessidade de devolver as imagens a quem é fotografado, e o mistério em torno de quem fotografa.
Gerador (G.) - Descobri ao preparar esta entrevista que além de fotógrafa, és enfermeira. Uma área contagia a outra, ou foste parar a ambas pelo teu olhar cuidado para o outro?
Mag Rodrigues (M.R.) - Eu formei-me primeiro em enfermagem, e a meio da formação percebi que havia uma necessidade de me formar também em fotografia, então decidi que assim que me licenciasse, no primeiro dia útil, ia inscrever-me na escola de fotografia. Assim foi, e formei-me em fotografia profissional. Sobre o olhar cuidado que referes, eu tento tirar essa conclusão em retrospectiva, porque não é algo consciente. Consigo perceber que talvez a enfermagem me tenha aberto portas para alguns trabalhos que eu fiz inicialmente — abrir portas pode ser no sentido de as instituições estarem mais receptivas, mas também por eu estar com um olhar sobre uma realidade a que a maioria das pessoas pode não ter acesso. Porque estou a aceder àquilo enquanto enfermeira, enquanto profissional de saúde. A enfermagem influencia não sei se tanto no olhar, mas ao abrir e trazer oportunidades, permitir-me aceder a lugares. Sinto que foi mais nesse sentido, pelo menos no início, porque agora essa união já se está a diluir um bocadinho e os trabalhos fotográficos já estão mais afastados de temáticas tão relacionadas com a saúde. Se tudo vai parar a um olhar mais cuidadoso? Não sei bem… se calhar sim, há uma ligação de facto. A enfermagem não veio por vocação, mas há coisas que me atraem na área, como a junção entre técnica, mais científica, muito rigorosa, com uma parte muito humana. Se calhar, não foi assim tão à toa que fui lá parar.
G. - E há histórias que surgiram entre trabalho, como a que resultou na exposição “Subsolo”, que esteve há dois anos no Santa Maria.
M.R. - Nesse caso, que talvez tenha sido o meu primeiro trabalho grande (no sentido de ter estado muito tempo a construí-lo), houve uma junção perfeita entre a enfermagem e a fotografia, porque estava a sair de uma formação no [Hospital de] Santa Maria e calhou eu ir para os pisos subterrâneos, e esse caminho foi feito porque estava no contexto da enfermagem. A porta abriu-se como mera enfermeira, mas depois era a Mag fotógrafa que estava a olhar. Foi a Mag enfermeira que passou aquelas portas, mas depois já era a Mag fotógrafa que estava a reparar naquele subsolo.
G. - A exposição acabou por ser mesmo no hospital. Interessa-te devolver as fotografias às pessoas que entram no teu enquadramento?M.R. - Sim, neste trabalho isso aconteceu e foi muito bonito. Durante o processo, às vezes, tenho o hábito de ir imprimindo e ir dando às pessoas, mas no caso do “Subsolo”, eles não viram nenhuma imagem, a não ser às vezes no ecrã da câmara. E no dia da inauguração da exposição, vi-os a chegar com as fardas, porque estavam a sair dos turnos deles, e a verem-se nas fotografias. Isso está a tornar-se cada vez mais importante para mim, no sentido de não ser unilateral. As pessoas que gostam de fotografar podem ser muito vampíricas, de forma unilateral, e para que seja minimamente justo, devo devolver aquilo que estou a capturar — se não elas estão a dar-me tudo, e eu não lhes estou a dar nada. Tenho tido essa necessidade, e isso está a acontecer com o trabalho que estou a fazer agora em Rabo de Peixe, em São Miguel, ir imprimindo e ir-lhes dando. Também é uma forma de ir estabelecendo confiança.
G. - Isso lembra-me uma lecture com a Nan Goldin em que ela recupera a ideia de algumas tribos acreditarem que ao serem fotografadas podem retirar-lhes a alma. Se calhar, o roubar a alma não tem de ser tão literal, pode partir desse ato vampírico de que falas.
M.R. - É isso, é uma boa analogia. Quando fotografamos pessoas, se nós nos colocarmos no lugar delas, temos de pensar “será que eu disponibilizava a minha imagem e o meu tempo?”. Eu tenho tido muita sorte e as pessoas têm sido muito generosas, então penso no que posso fazer para devolver minimamente. Tenho noção de que posso cair no erro de ser extremamente unilateral... e esta ânsia de querer chegar a estas pessoas e a estas temáticas não pode permitir que não haja o tempo e a justiça de devolver alguma coisa.
G. - Na passagem entre o pós-pandemia e a pandemia tornaste público o teu projeto “Mãos no Metro de Lisboa”. O que é que te encanta nas mãos?
M.R. - As mãos são extremamente informativas. Só ao estar a falar contigo, estou a ver-me no Zoom e a ver as minhas mãos [risos]. Isso ilustra aquilo que te estou a dizer, porque as mãos carregam em si um manancial informativo muito grande. Se uma pessoa não puder falar, mas a estiveres a observar, as mãos vão trazer-te informações muito ricas. Através das mãos de alguém consegues chegar a imensos detalhes da pessoa, sem ela ter que falar. E a mim interessa-me a ideia de chegar a algo de forma subtil; quero chegar a uma informação, mas o meio é subtil. Foi, mais uma vez, a ir trabalhar para o hospital, enquanto enfermeira, que este projeto surgiu — é a prova de que está tudo ligado. Estava a ir para o trabalho de metro e comecei a reparar nas mãos das pessoas. O metro é um transporte público privilegiado neste aspeto, porque as pessoas estão sentadas, mas afastadas o suficiente umas das outras para conseguirmos observar o seu todo. Na altura, ainda era possível sentarmo-nos sem pudor e comecei a reparar como é que as pessoas depositavam as mãos, como é que, inconscientemente, as mãos se estavam a expressar. A partir daí comecei a olhar sempre para as mãos, quase por obsessão [risos]. O processo de fotografar passava-se quando estava a ir para o trabalho, inicialmente, mas a certa altura também comecei a ir de propósito para o metro fotografar. E a riqueza ia-se intensificando.
G. - Também tens mãos com luvas, que escondem essa informação, mas trazem outra.
M.R. - Exatamente. O trabalho das “Mãos no Metro” foi curioso nesse aspeto, porque começou em agosto de 2019 sem eu sequer imaginar que as mãos estariam cobertas com luvas. Começou a haver uma visão antes e pós pandemia, mas sem eu saber, foi uma feliz coincidência. Na altura do confinamento obrigatório, continuei a ter de ir trabalhar e, como ia de metro, via essa realidade. Reparei que as mãos estavam cobertas por luvas, porque as pessoas se estavam a proteger — na altura até era uma proteção errada, porque era tudo muito novo, e eu comecei a perceber que já não conseguia aceder à informação de uma forma mais detalhada ou íntima, porque havia ali uma cobertura que revelava mais sobre o que se passa no Mundo do que sobre aquele indivíduo que estava ali. Deixou de ser uma visão do indivíduo e começou a ser uma visão do coletivo, do que se passa no Mundo. Só que com as mãos.
G. - Ao mesmo tempo, fotografar mãos não é tão invasivo. Quando vi as tuas fotografias questionei-me de como seria fotografar no metro, num tempo em que a produção de imagens é tão grande, mas o controlo através da imagem também. Como é que as pessoas reagem quando percebem que as estás a fotografar?
M.R. - Se fosse para fazer retrato, eu acho que seria completamente diferente. O que me interessa neste trabalho — e é isso que tenho feito —, é as pessoas não saberem que estão a ser fotografadas. Obviamente isto mexe um bocadinho com a privacidade, e as mãos revelam alguma informação sobre a pessoa, mas é difícil identificar. Quero que a pessoa preserve a pose genuína que está a ter, porque é isso que é interessante: a forma como colocamos as mãos inconscientemente. Isso é que é revelador. Quando temos a noção de que alguém nos está a olhar, também de forma automática, nós damos logo o nosso melhor ângulo, não é? E isso não está errado, mas é outra coisa, é outro trabalho. Aqui fotografo com o telemóvel e tento ser o mais subtil possível, porque quero que fique cristalizado. E quero que a pessoa fique como é; aceder exatamente àquele momento em que a pessoa não sabe que está a ser fotografada, mas está a revelar informação de si própria.
G. - Para ti, escolher a câmera ou o telefone tem que ver com o quão invisível tu queres ser?
M.R. - Neste trabalho específico, quero que a pessoa nem sinta a minha presença, porque se eu estivesse com a minha câmera, mesmo que a tivesse ao peito, podia ser meio caminho para as pessoas se moldarem. Para este trabalho específico interessa-me ser o mais invisível possível, e com o telemóvel consigo estar à frente da pessoa e ela não está a tomar atenção, porque é um objeto corriqueiro.
G. - Isso leva-me a um outro projeto teu, “As Senhoras”. Fotografar estas mulheres que, como sabemos, sofrem de transtornos psiquiátricos, requer um outro cuidado, uma outra sensibilidade?
M.R. - Sem dúvida. Não quer dizer que eu tenha sido exímia a fazê-lo, mas é mesmo necessário, seja quem fôr o fotógrafo. Sobretudo porque vamos parar ao que falávamos há pouco sobre sugarmos a imagem. Imagina que estas pessoas se interrogavam “mas porque é que eu sou interessante para me fotografares? O que é que há aqui? Eu sou uma mulher normal”, e por isso a abordagem tem de ser delicada, mas sem ser cínica. Tem de se dizer a verdade, mas tem de se ser mais cuidadoso. Elas não são pessoas frágeis, são apenas mais frágeis. São mulheres incríveis, com a sua rotina e a sua autonomia. Mas na verdade, com qualquer pessoa que fotografes é preciso cuidado…
G. - E elas gostaram de se ver?
M.R. - Eu acho que sim! Nós organizámos com a Instituição uma sessão na Sala de Teatro, em que projetei as imagens, e mesmo que elas não tenham conseguido verbalizar, o que sentiram traduziu-se numa reação. Eu estava cá atrás e elas estavam a reagir, à minha frente… e eu acho que gostaram mesmo. Eu debati-me com essa questão, porque tive receio de que fosse um embate, por um lado, porque aquelas mulheres não têm bem uma noção da sua auto-imagem, isso não é sequer uma preocupação, é uma forma de estar muito diferente, e tive medo de que, em algum momento, se questionassem “mas eu estou assim? eu sou assim?” e que isso fosse um espelho para o qual elas não olham há meses, porque, de facto, não se concentram na sua auto-imagem. Mas o medo dissipou-se, porque elas gostaram de se ver.
G. - Vês a fotografia como uma ferramenta para denunciar ou para trazer dignidade? As imagens podem ter esse poder?
M.R. - Vejo, porque percebo o potencial da perspetiva. Tu podes pegar numa realidade e, dependendo da perspetiva que tu dás, enquanto fotógrafa, pode determinar como é que aquela imagem pode ser vista, e, às vezes, passa só por escolher o que entra. Pode ter essa carga e esse potencial de justiça, mas aqui, no meu trabalho, funciona de forma mais consequente. Não posso dizer que esse seja o meu objetivo primordial — talvez o objetivo seja aceder a temáticas que estão um bocadinho mais escondidas —, mas a consequência é que revele algumas situações que estão mais escondidas, de forma consequente.
G. - Também pode ser uma forma de dignificar o banal, ou trazê-lo à superfície? O projeto “Três por Quatro” acaba por o fazer, também — é algo que quase toda a gente sabe que acontece, guardar fotografias nas carteiras, mas que parece que sempre foi assim.
M.R. - É mesmo isso! Estou muito próxima desse trabalho, porque é muito recente, e eu própria tenho esse olhar sobre este objeto. É completamente corriqueiro, é acessível, e é desprezado (sem ser de forma negativa) porque não é contemplado, mas reúne tanta coisa… e vou percebendo que é isto que me agrada: em sítios mais inusitados encontrar valores universais, como o amor, a perda. Em sítios que passam despercebidos, vamos ter aos temas que são universais.
G. - Guardas fotografias na carteira?
M.R. - Não guardava, mas agora guardo [risos]. Tenho uma fotografia da minha avó Ermelinda e do meu avô Joaquim, mas foi porque durante o projeto estava com a minha mãe em casa, um dia, e decidimos ir procurar fotografias nos álbuns. Portanto, não começou comigo, nem te consigo dizer quando em concreto, mas não foi comigo. Surgiu [risos].
G. - Qual é a tua relação pessoal com a imagem? Há muitos fotógrafos que não gostam de ser fotografados, há alguns que têm a casa cheia de fotografias e outros que não têm, de todo.
M.R. - A minha relação com a imagem é a relação mais estreita possível. Posso virar a câmara do computador, para perceberes que tenho a casa cheia de imagens, mas a imagem aqui funciona tanto como fotografia como como pintura. Antes de eu ler, vejo imagens; mais rapidamente sou atraída por e para imagens do que para palavras. Eu conecto-me muito mais rápida e emocionalmente com imagens do que com palavras. Acho que até posso dizer que é assim que eu aprendo. Claro que tenho de ler e de ouvir, mas aprendo muito através do visual. É uma relação muito estreita, cada vez mais.
G. - Com esta conversa sobre o mistério, lembro-me do caso de Vivian Maier, que fotografou a vida toda e poucos sabiam que ela fotografava. Havia esse mistério em torno dela.
M.R. - Esse é o expoente máximo de mistério, para mim. E é interessante trazeres esse exemplo, porque isso também nos faz pensar sobre o que é ser fotógrafo. No caso da Vivian, ela fotografou durante anos e anos, e primeiro não revelava as suas fotografias — um fotógrafo é só o que fotografa, mas não vê o que faz? — e depois ela não ser reconhecida como tal. Ela é o paradigma do fotógrafo misterioso, de facto.
G. - Se calhar, nem ela se reconhecia como tal. Pode haver essa urgência do registo, mas sem ter uma intenção de ser fotógrafa. Ao mesmo tempo, a Vivian era uma mulher com um determinado contexto de vida e tempo…
M.R. - Sim, penso que no caso dela temos de datar. Importa a época e também importa quem era a Vivian: era ama, depois percebeu-se que tinha também já a borbulhar questões psiquiátricas que se revelaram no fim da vida, e tudo isso pode ter motivado o seu comportamento enquanto fotógrafa. Mas é importantíssimo ela ser mulher, e se calhar isso contribuiu para que ela não tivesse o ímpeto de revelar (literalmente) o que fazia.
G.- No teu caso, sabemos, não só, que és fotógrafa, mas também que tens estado pelos Açores, como contavas há pouco. O que é que tens feito por aí?
M.R. - Eu já tinha tido um ímpeto para ir fotografar aos Açores, e inicialmente até tinha pensado fazer algo como se fosse “As Senhoras” 2.0, mas neste caso com a população de São Miguel. Entretanto, estou hospedada em casa de uma amiga que me pôs em contacto com um rapaz cujos pais vivem em Rabo De Peixe. Esse rapaz, que é incrível, levou-me para Rabo de Peixe e nunca mais saí. É um sítio único em Portugal.
G. - A vontade (ou a urgência) de registar acompanha-te para onde quer que vás?
M.R. - É aquilo que te posso garantir com 100% de certeza. Essa ânsia do registo está ligada a mim, esteja eu onde estiver.
Podes acompanhar o trabalho de Mag Rodrigues através do seu site pessoal, aqui, ou através da sua conta no Instagram, aqui.