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Março para Cláudia e Gisberta

Nas Gargantas Soltas de hoje, Miriam Sabjaly reflete sobre memória coletiva, e sobre a importância de centralizar as histórias e experiências de mulheres negras e mulheres trans na luta feminista pela libertação.

Opinião de Miriam Sabjaly

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Nas periferias também é março, mês da mulher. Para todas, em todo o lado, inescapável e implacável: o tempo. Inescapável e implacável, mas não igual. 

Cláudia Simões esperou 158 dias para ser ouvida pela Inspeção-Geral da Administração Interna (IGAI) após ter sido violentamente agredida e injuriada pelo agente da PSP, Carlos Canha, na noite de 19 de janeiro de 2020. Três anos volvidos, Cláudia entrou em março sabendo que, por ter resistido a um ato de abuso de poder e violência policial racista, merece ser julgada. Três anos volvidos e um processo a larga distância da resolução, e, mais ainda, de qualquer conceção, mesmo que tangencial, de justiça. Em três anos, a criminalização da luta por subsistir, por querer existir; a transformação pública da vítima em ameaça; o tempo a operar a função de diluir a nossa memória partilhada, fazer esquecer o que vimos e o que sentimos, tornar longínquos o choque visceral e a urgência em garantir que nunca mais. 

Gisberta Salce não tem mais marços. Era fevereiro de 2006 e à Gisberta, mulher trans e imigrante brasileira, foram arrancados todos os marços. Dezassete anos volvidos, no futuro, as circunstâncias que conduziram ao seu assassinato perduram. O correr do tempo não traz consigo a reparação histórica. No abismo do capitalismo patriarcal, mulheres negras e mulheres trans carregam o fardo da invisibilização e da marginalização. Frequentemente abandonadas, silenciadas, excluídas, violentadas, criminalizadas, sujeitas a múltiplas e sobrepostas formas de precariedade: material, emocional, laboral, habitacional. Em janeiro, em fevereiro, em março, e por aí adiante. 

Conheci Cláudia Simões pela sua própria voz a ouvir a Rádio AfroLis. Cláudia é mãe. Cuida dos seus antes de cuidar de si. É humilde e resguardada. É bondosa e confia. “Não faz mal a ninguém” e sobre a noite de 19 de janeiro de 2020 tem a dizer: “o mais importante é que ele não me tirou a minha vida (...) segui a minha vida para a frente”. Quando falamos da “força” das mulheres negras, diz-nos bell hooks em Não Serei Eu Mulher? As mulheres negras e o feminismo, referimo-nos, habitualmente, à nossa perceção da sua capacidade de subsistir perante a opressão. Usamos o termo de forma elogiosa, mas romantizamos e, inadvertidamente, limitamos. Ser forte perante a opressão não é superá-la sem marcas e não eclipsa o seu impacto devastador; sobreviver e persistir não é o mesmo que transformar. 

Também quando falamos de Gisberta dispensamos, muitas vezes, a complexidade. A nossa narrativa é difusa e transparente, igualmente porque não a podemos conhecer pelas suas palavras, nas suas condições. Numa entrevista recente, a escritora e artista multidisciplinar Hilda de Paulo apontou precisamente que “não é esperada a intelectualidade das pessoas trans, nem da preta retinta. Vivemos ainda o eco do colonialismo (...). Gisberta Salce é mais do que um símbolo esvaziado de vida. É triste que ela seja só lembrada pela morte, está fixada na violência e tortura. Ela era uma ativista.”

Em Olhando o Sofrimento dos Outros, Susan Sontag caracteriza o ato de recordar como sendo um ato essencialmente ético, com valor ético em si mesmo, e afirma que esta crença está profundamente conectada com a natureza humana. Mas relembrar a injustiça, de forma constante, é insustentável — há simplesmente demasiada, por toda a parte. Por isso, escolhemos a proximidade sem risco; aceitamos que esquecer, em tempos, é a única forma de suportar. Ainda assim, abandonar a dor alheia pesa-nos e envergonha-nos, como se estivéssemos a suspender a nossa empatia em nome da autopreservação. E então, porque nos pesa, lembramos – mas compartimentalizamos, achatamos, contamos a experiência das mulheres periféricas como esta se esgotasse na sua desumanização. O início, o fim, e tudo pelo meio: o vácuo ou o trauma.

Recordamos e reproduzimos as histórias de violência de Gisberta e Cláudia também porque queremos escoar a nossa culpa coletiva. Porque, por vezes, confundimos relembrar e invocar com nunca ter esquecido, nunca ter falhado. Mas esquecemo-nos, e falhámos. A memória, em si mesma, não nos absolve. Dar visibilidade ao sofrimento, sem mais, não o repara. É também Sontag que o escreve: a compaixão é uma emoção instável, que tem de traduzir-se em ação. Caso contrário, murcha.

À Gisberta e à Cláudia devemos permanência, mas também movimento. Às mulheres negras e às mulheres trans, ímpeto de Revolução, devemos abertura para escutar, centrar e dignificar as suas justas reivindicações. Pelo direito a poder resistir, e a poder descansar. Pelo direito a uma vida emocional complexa e a imaginar possibilidades além de. Pelo direito à alegria e à autonomia. Por poder exceder, deixar a dor de parte, viver sem perímetros, querer tudo. À Gisberta e Cláudia devemos a total subversão do padrão, a destruição das amarras coloniais. Mais do que esvaziar a sua intelectualidade, é nosso encargo torná-las o áxis da luta pela libertação, a essência de todos os marços.

-Sobre Miriam Sabjaly-

Miriam Sabjaly é jurista. Trabalhou como técnica de apoio a pessoas migrantes vítimas de crime em Portugal e a pessoas vítimas de crimes específicos, como os crimes de ódio, tráfico de seres humanos, discriminação, mutilação genital feminina e casamento forçado. Foi assessora da Deputada não inscrita Joacine Katar Moreira entre março de 2021 e março de 2022. Atualmente é mestranda em Direitos Humanos, dividindo o tempo entre Gotemburgo (Suécia), Bilbao (Espanha), Londres (Reino Unido) e Tromsø (Noruega). 

Texto de Miriam Sabjaly
A opinião expressa pelos cronistas é apenas da sua própria responsabilidade.

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