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Maria Giulia Pinheiro: “Gosto de pensar em obras efémeras, mas não perecíveis. Obras que se transformam a cada encontro”

Poeta, ativista e performer, Maria Giulia Pinheiro entende que o papel do artista é questionar e provocar acima de tudo. Diz que gosta de obras “efémeras”, mas “não perecíveis”, que se desfazem, mas ficam com as pessoas que “estiveram juntas”.

Texto de Isabel Patrício

Fotografia cortesia de Maria Giulia Pinheiro

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É na arte que se dá uma das “maiores batalhas” que enfrentamos: imaginar caminhos diferentes do que aqueles que nos ditam as estruturas “que oprimem”. Quem o diz é Maria Giulia Pinheiro, dramaturga, ativista e poeta, que vive entre Portugal e o Brasil e que venceu a segunda edição do Prémio Nova Dramaturgia de Autoria Feminina.

Em entrevista ao Gerador por escrito, a artista reflete sobre o papel da arte na sua vida, a vinda para Portugal e as dificuldades que ficaram associadas a esse processo. Fala ainda sobre o papel da mulher na dramaturgia (e no meio artístico, em geral), bem como sobre que próximos passos espera dar na sua carreira.

Gerador (G.) – Descreve-se como poeta, ativista e performer. Faz teatro, mas também dedica o seu tempo à academia, sendo atualmente doutoranda na Universidade de Coimbra. Quando e como entrou a arte na sua vida?

Maria Giulia Pinheiro (M. G. P.) – Lembro-me bem da primeira vez que pisei no palco, aos 12 anos, em uma peça de escola, mas a arte entrou como ofício propriamente dito em minha vida em 2012, quando estreei minha primeira peça como dramaturga e diretora. Antes disso, já havia participado de festivais de teatro, como atriz e produtora, mas sinto que foi nesse trabalho que comecei a entender racionalmente o ofício como tal. Escrevo desde muito nova, e o teatro sempre esteve ali, mais ou menos presente desde muito cedo. Mas foi quando comecei a ensaiar essa primeira peça mais autoral, que me vi organizando meus discursos e meus hábitos de forma realmente indissociável da arte e comecei a entender essa que é a minha obsessão até hoje: linguagem é vida, e vida é linguagem. 

G. – Nasceu em São Paulo, mas hoje vive entre o Brasil e Portugal. Como é que essa mobilidade se espelha na sua expressão artística?

M. G. P. – Desde 2019 [que] tenho entendido a minha vida (e linguagem) como a relação entre presença e ausência, entre uma comunicação inimiga da pressa e consciente das limitações do tempo e espaço, que não deseja ser nada além do que consegue nesse aqui e agora. Ou seja, a ideia do nomadismo, do caminhar em busca do que desejo ao mesmo tempo em que aceito o que existe no onde-quando estou, faz parte das minhas obras. Materialmente, isso significa que os resultados dos meus processos são ou performances solos, em que escrevo, atuo e enceno, ou textos dramatúrgicos fechados, que entrego para grupos realizarem já sem a autora presente, ou eventos de poesia periódicos que carrego na mala e faço aonde quer que eu esteja, ou livros publicados, ou, enfim, processos e resultados em que a minha ausência/presença e, portanto, a ausência/presença do outro são marcas ontológicas da obra. São encontros no tempo ou no espaço e que se desfazem fisicamente, mas ficam nas pessoas que estiveram juntas. Gosto de pensar em obras efémeras, mas não perecíveis, obras que se transformam a cada novo encontro.

G. – A propósito, criou o Todo Mundo Slam, “um poetry slam decolonial pensado para cruzar fronteiras”. Que papel pode ter a arte na efetiva descolonização?

M. G. P. – Gosto de pensar em termos de decolonialidade e não descolonização. Descolonial é um contraponto ao colonialismo, ou seja, ao “vínculo de dominação social, política e cultural que os europeus exerciam/exercem sobre os países e povos que conquistaram ao redor do mundo”, segundo o sociólogo Aníbal Quijano. Já decolonial é oposto ao conceito de “colonialidade”: “a compreensão da permanência da estrutura de poder colonial até os dias de hoje.” O Brasil é impressionante nesse [ponto]: não é colónia há 200 anos, mas, dentro, o colonizador e o colonizado permanecem em “perfeita” (com muitas aspas) harmonia. Penso que a arte é responsável por uma das maiores batalhas que temos: a que acontece no campo do imaginário. É na arte e na cultura que alguns valores se perpetuam na nossa subjetividade. O pensamento da colonialidade, assim como o pensamento branco, o pensamento patriarcal e o pensamento capitalista, está presente no nosso imaginário e é, portanto, na desconstrução dessas estruturas através da arte que podemos pensar, sonhar e desejar outros mundos possíveis.

G. – Por outro lado, como se comparam, na sua visão, as oportunidades oferecidas aos artistas em Portugal com as disponibilizadas no Brasil?

M. G. P. – É difícil comparar espaços de tamanhos e contextos tão diferentes. O Brasil é enorme, e eu venho de São Paulo, onde, por um lado, a federação e o mercado internacional e nacional depositam desigualmente seus investimentos e atenções em relação ao resto do país e, por outro lado, a luta dos artistas é razoavelmente organizada e acirrada política e esteticamente, de forma a provocar discussões e estruturas específicas de dinâmicas no mercado cultural. Em Portugal, só posso falar enquanto artista migrante. Existe muita oferta artística e poucas, muito poucas, oportunidades e menos ainda vontade de que essas oportunidades sejam ocupadas por pessoas como nós. Sinto que dez anos de uma carreira considerável no Brasil não são suficientes para que as portas se abram. Cheguei aqui em 2019 e, agora, com muito custo, começam a abrir frestas para oportunidades aqui para mim.

G. – Venceu a edição de 2022 do Prémio Nova Dramaturgia de Autoria Feminina. Antes de mais, que importância teve conquistar essa distinção?

M. G. P. – Sinto e percebo que, enquanto dramaturga, migrei para Portugal apenas em 2022 e por causa desse prémio. Trabalho como tal desde 2012, dou aulas de dramaturgia desde 2016, tenho mais de cinco peças encenadas, cheguei no país em 2019, mas foi só quando a Cepa Torta e o júri composto pelas generosas e generoso Patrícia Portela, Joana Craveiro e Francisco Frazão leram e deram valor ao meu texto que consegui, finalmente, estar em Portugal como dramaturga. Essa alegria de finalmente ser vista por aquilo que me dá tanto prazer e alegria, aquilo que é linguagem e vida para mim, isso é o que essas pessoas fizeram por mim e serei sempre muito grata. 

G. – Venceu esse prémio com o texto Isso não é relevante, que é descrito como “convite a ouvir o que pensamos e não conseguimos dizer”. Que mensagem quis passar com esse seu trabalho?

M. G. P. – Acho que não quis passar mensagem nenhuma. Quis mais dividir minhas dúvidas e inquietações com quem ler, quem materializar a peça, com quem aceitar entrar nesse mundo de contradições e buscas. Tenho muito medo de uma arte que sabe. Não sei nada, só quero perguntar. Acho que a profissão do artista é de um provocador, de quem pergunta, questiona, duvida. Posso contar algumas das dúvidas que passaram por mim ao longo da escrita: E se Penélope fosse e Ulisses ficasse? O que é o desejo? É possível desejar sem violentar o outro? O que é a família? Qual a diferença entre a dinâmica da família e do desejo? E do dinheiro? E do serviço? Como a linguagem afeta o desejo? Como a linguagem aprisiona? Como liberta? Enfim, entre outras.

G. – Essa “incapacidade” de não conseguir dizer o que se pensa é mais grave entre as mulheres, tendo em conta que os papéis que lhes foram sendo impostos durante séculos? De que modo?

M. G. P. – Existe uma psicóloga brasileira que tenho lido bastante ultimamente, a Valeska Zanello, que fala sobre isso, sobre os processos de saúde mental das mulheres contemporâneas e a forma como os silenciamentos que nós sofremos ao longo da vida, sejam os concretos, físicos, psicológicos, sejam os que aprendemos como “certo para mulher”. O dizer é muito poderoso. O dizer inaugura mundos. Quando a gente diz, algo acontece e acontecer é irreversível. Acho também que é importante a gente buscar o nó do silêncio. Entender o porquê de às vezes ser tão difícil a ação que antecede a palavra. E compreender o contrário: que a palavra sem ação não é muito. Discurso sem prática não é vida. É só linguagem. No fundo, acho que é sobre isso também o Isso não é Relevante e meus trabalhos mais recentes.

G. – Aliás, criou a ZONA Lê Mulheres, um sarau em que todas e todos podem ler. Por que razão quis criar esse espaço?

M. G. P. – Penso que uma das práticas feministas mais importantes é louvar a tradição feita por mulheres. Nos museus, nos teatros, nas bibliotecas, nos cinemas, a gente normalmente vê homens, criados por homens, pensados por homens. Quando vê mulheres, na sua grande maioria, foram criadas e pensadas por homens. Quantos nus femininos existem num museu e quantos quadros assinados por mulheres existem nesses mesmos museus? Por isso, ao promover que qualquer pessoa leia, escute, veja, assista, entre tantos e tantos verbos, criações de mulheres, cultivamos aos poucos e divertidamente, a nossa própria rede de referência e podemos criar uma cultura baseada em uma tradição na qual nós nos identifiquemos ética e esteticamente. Isso também é uma das bases de trabalho do Núcleo de Dramaturgia Feminista, espaço virtual em que dou aulas de Dramaturgia Feminista.

G. – Que papel e espaço ocupam hoje as mulheres na poesia e na dramaturgia? Como podem ganhar mais afirmação na sua perspetiva?

M. G. P. – É importante a gente pensar não em termos de não existência das mulheres, mas em termos de apagamento histórico e em silenciamento. As mulheres criam. Por um lado, criamos obras de arte enquanto criamos filhos, damos conta da casa e de todo trabalho doméstico não remunerado e geramos renda para poder sobreviver. Mas, por outro lado, na hora de sermos avaliadas por nossas obras, somos avaliadas como “mulheres”, e não como “artistas”. Ao mesmo tempo, não temos referências, exatamente por conta do apagamento das que vieram antes e do silenciamento das que estão ao nosso redor. Penso que, como medida de afirmação, precisamos de dar dinheiro para que as mulheres criem seus projetos de forma digna. E precisamos que os homens assumam algumas responsabilidades deles, que são delegadas às suas respetivas mulheres, nomeadamente cuidem das próprias roupas, façam suas comidas, cuidem de suas crias, tomem conta da casa, façam as tarefas sem demandar carga mental das suas mulheres, marquem seus próprios médicos, não tenham posturas autodestrutivas em termos quotidianos como hábitos nocivos e violentos. De preferência, também que façam terapia.

G. – Passou pelo teatro, mas especializou-se também em guiões para a televisão. Tem também um podcast. Não está, portanto, “amarrada” a um medium particular. Porquê? Sempre teve essa flexibilidade artística?

M. G. P. – Tive uma formação bastante diversa mesmo. Estudei jornalismo, fiz alguns anos de ciências humanas, fiz teatro, especializei-me em educação, em guiões, em direção. No fundo, sou uma curiosa. Faço o que preciso fazer, o que sinto que o conteúdo do trabalho pede que se faça, muito mais do que a forma. Formalmente, sou uma fraude. Uma mentira, não sei nada. Mas, se sinto necessidade de fazer algo, vou lá e experimento, estudo o que dá, aprendo na prática, no erro, na tentativa. Admiro pessoas virtuosas. Não é meu caso. Sempre tive, sim, essa flexibilidade e sinto que não adianta fingir: se amanhã perceber que o que quero dizer precisa ser dito em formato audiovisual, mesmo que não saiba nada a respeito, farei. Ou tentarei fazer. E, se der tudo errado, talvez seja essa a obra possível aqui e agora e esse “errar” é o caminho para encontrá-la.

G. – Para quem nunca leu o seu trabalho, que temas predominam nos seus textos?

M. G. P. – Sinto que falo maioritariamente sobre a morte, a linguagem e o desejo. Tenho uma certa obsessão com Deus, com esse mistério, e muita vontade de silêncio, de entender o que é isso que vem antes do verbo. Mas as minhas condições concretas, físicas, tudo aquilo que impede a minha liberdade e amor, perpassam esses assuntos também.

G. – O que se segue na sua carreira? Qual o próximo sonho a concretizar?

M. G. P. – Em 2023, serei artista residente na Biblioteca de Alcântara, o que me deixa muito honrada. Penso que, nesse momento da carreira aqui em Portugal, o que desejo é aproveitar esse espaço tão lindo para materializar projetos, para conhecer artistas portugueses e estrangeiros que vivem aqui e fazer parcerias e novos espetáculos. Sonho em conseguir montar textos meus aqui, em ter mais parceiras e parceiros com vontade de criar e trocar. Meu sonho é com as coisas banais, risos, com trabalhar dignamente e receber por isso, perto de pessoas que admiro. Não é muito, mas é o que desejo.

*A entrevistada escreve em português do Brasil.

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