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Mesão Frio: O que guarda a paisagem do Douro?

Na vila de Mesão Frio, sede do município conhecido como a «Porta do Douro», a vista do rio e da serra do Marão faz circular turistas deslumbrados com as paisagens da região demarcada. Os pouco mais de 1600 habitantes da freguesia que integra, no entanto, ainda esperam por um olhar mais atento de quem contempla a geometria das vinhas, guardiãs da história das suas gentes.

Texto de Analú Bailosa

©Sara Ferreira

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O concelho de Mesão Frio aparece pela primeira vez na história em 1093, aquando da entrega do Condado Portucalense a D. Henrique, tendo a vila recebido o primeiro foral de D. Afonso Henriques, em fevereiro de 1152. Meison Frigido, Meygion Frigido e Meyon Frio são algumas variações, encontradas em documentos antigos, do nome que, segundo os registos, sempre manteve.

Com apenas 26 km², o município divide-se em cinco freguesias e caracteriza-se pela homogeneidade do setor agrícola, 90 % dedicado ao vinho, o qual atingiu o ápice depois da demarcação Pombalina da Região Vinhateira do Alto Douro, no século xviii. Em 1950, como reflexo da alta atividade, é fundada a Adega Cooperativa de Mesão Frio, a primeira da zona em questão, mantendo-se ativa e prestigiada até hoje.

©Sara Ferreira

Sem exceções à regra do êxodo rural, a freguesia de Santo André, na qual está inserida a vila de Mesão Frio, viu a sua população reduzir em 16% nos últimos dez anos, de acordo com os censos mais recentes. Dada a pequena extensão do território, trata-se de um concelho unificado não só economicamente, mas também na vida em comunidade. Os seus agentes culturais de maior relevância são a Casa do Povo de Barqueiros e a Associação Cultural e Desportiva de Vila Marim (ACDVM), que reconhecem no trabalho da agricultura a origem das tradições que celebram, ao mesmo tempo que identificam uma sensação de invisibilidade no povo, agravada pelo recorrente turismo de passagem.

Uma riqueza em risco de esquecimento

Uma das primeiras do país, a Casa do Povo de Barqueiros nasce em 1934, como resposta do Estado Novo aos movimentos anarcossindicalistas vindos do Porto que tentavam entrar no Douro, cuja principal bandeira eram as oito horas de trabalho diário. De maneira a reafirmar os fundamentos do regime ditatorial da altura, o seu rancho folclórico surge no ano seguinte. Hoje, perto de assinalar 100 anos, o organismo configura-se como uma associação cultural, composta pelos agricultores da terra e focada na divulgação do cancioneiro ligado à vida do rio e aos barcos rabelos, usados no transporte dos barris de vinhos.

©Sara Ferreira

Há, porém, um desafio apontado por Pedro Monteiro, presidente da Casa do Povo, relacionado com o valor que os próprios locais dão à sua cultura. Ainda que assumam a importância das atividades para a vida comunitária, os residentes não conseguem «extrapolar para o verdadeiro significado que aquilo pode ter para quem vê de fora», afirma, compreendendo ser algo normal num sítio «muito esquecido». «Temos de devolver isto às pessoas, de forma que elas olhem para o seu quotidiano e que o possam transformar em algo que mostrem com orgulho e que lhes devolva a autoestima», conclui.

De acordo está Nelson Fonseca, da ACDVM, que acrescenta o facto da palavra cultura, para os habitantes, carregar o peso de algo erudito e inacessível. As pessoas são mais recetivas à palavra tradição, diz o presidente do grupo que, desde 2015, continua a atividade de uma anterior associação juvenil, de salvaguarda dos costumes da freguesia e do concelho.

©Sara Ferreira

A solução, acredita Pedro Monteiro, passa pelo investimento num turismo de profundidade, que procure a compreensão da paisagem e um contacto direto com a vivência da comunidade de Mesão Frio. «Quem nos visita tem de perceber que, sendo a paisagem muito bonita, ela tem um custo», assegura. O chefe da direção da Casa do Povo de Barqueiros realça que, apesar dos avanços nas condições de trabalho após o 25 de Abril, trabalhar no Douro continua a ser duro e o seu agricultor segue ignorado: «Se hoje temos as oito horas de trabalho, continua a haver muita gente que sai de casa às três para fazer um caminho até um determinado ponto, apanhar duas horas por estradas sinuosas e trabalhar das sete da manhã até às quatro da tarde, e ainda tem de levar com três horas de caminho até casa.»

Levando também ao êxodo rural, tal realidade contribui para um «desfasamento muito grande entre o potencial do concelho e aquilo que os nossos jovens estão a crescer a pensar em ser», continua o presidente. Para despertar a ideia de que a riqueza do município está na vinha e no seu aproveitamento, Pedro Monteiro admite que é preciso um trabalho a nível regional para, na educação, transformar o «capital de cultura popular» e reconhecer o setor agrícola como oportunidade. «O Douro está um pouco neste marasmo de tio com vícios de rico, que não percebe que está a empobrecer e que a sua grande riqueza vai ficar por terra, porque não tem ninguém que trate dela», lamenta.

©Sara Ferreira

As atividades da ACDVM, como a celebração do Entrudo, do magusto e a realização de caminhadas pela região, serviram de âncora, afirma Nelson Fonseca, para que a tradição do concelho não desaparecesse. «Qualquer atividade que nos seja solicitada, estamos sempre presentes», garante, em defesa da pertinência de ações associativistas para a manutenção do espírito comunitário num concelho em que as «forças vivas», em termos culturais, «praticamente não existem».

O presidente da associação constata igualmente que a profundidade turística é pouco expressiva, caracterizada por visitantes que «passam, olham e vão», o que requer um investimento na massa empresarial. «É preciso fazer um trabalho que, por vezes, as entidades locais não têm capacidade, devido à nossa escala territorial, demográfica e económica. Podemos é criar condições para que um empresário ou uma associação venha a Mesão Frio e se consiga desenvolver», considera.

Enquanto as complexas mudanças não se concretizam, as organizações juntam forças para inovar da maneira que lhes é possível. No entanto, Pedro Monteiro expõe-nos os desafios envolvidos na dinamização do interior através das instituições, muitas vezes enfrentados individualmente por quem as dirige: «Temos aqui uma série de instituições que vão vivendo muito do esforço de pessoas singulares, que depois perdem força e energia. Neste momento, sinto esse fardo de puxar para vários lados e encontrar, eventualmente, ajudas durante um tempo limitado.»

Para o presidente da Casa do Povo de Barqueiros, o segredo está em experimentar propostas diferentes, como a apresentação, organizada pela câmara municipal, de Sonho de Uma Noite de Verão, peça de teatro do século xvi, escrita por William Shakespeare, que, inesperadamente, reuniu mais de uma centena de pessoas às margens do rio Teixeira. «Isso é o que explica fenómenos como o Bons Sons ou o Andanças. Alguém sonhou com uma coisa diferente e, de repente, tens o interior a funcionar de outra maneira e a transformar-se numa centralidade, numa vanguarda e numa referência», diz.

©Sara Ferreira

O potencial de uma pequena vila

Após a Segunda Guerra Mundial, as dificuldades de comercialização levaram a que pessoas influentes da vitivinicultura instalassem um modelo cooperativista na terra, importado de Espanha e posteriormente replicado em outras localidades da zona demarcada do Douro. A Adega Cooperativa, estabelecida em 1950, hoje conta com cerca de 500 associados, representando 50 % dos agricultores do município, e também foi pioneira no engarrafamento de vinho em Portugal.

Responsável por levar Mesão Frio à mesa dos seus clientes, a empresa de pequenos lavradores mostra-se como um pilar na comunidade. O seu presidente, Pedro Pires, realça o interesse de organizar visitas em conjunto com os alojamentos locais, por exemplo, como forma de promover a atividade económica do concelho e solucionar o que acredita ser um turismo de circuitos predefinidos e com pouca abertura para explorar novas experiências. «Há muitos turistas nesta terra, mas falta prender o dinheiro deles. Eles ficam aqui a dormir, mas depois vão pôr o dinheiro noutras localidades», lamenta ao também apostar no setor empresarial como um aliado, além de encontrar nos imigrantes, atraídos pela paisagem, esperanças num movimento contrário ao êxodo rural.

Quem muita relação estabelece com aqueles que vêm de fora é André Silva, proprietário da Tasca do Zéquinha, que nasce na década 50, nas mãos do seu tio, e passa para o seu pai, conhecido como Zé, 15 anos depois. O nome atual surge em 1997, quando, sem perder a vertente de taberna, o negócio familiar decide modernizar o espaço e abrir o segundo piso da sua casa para, na sala de jantar, servir refeições mais compostas.

©Sara Ferreira

Gerido por André e pela irmã, a chefe de cozinha dona Alice, o restaurante é reconhecido como paragem obrigatória por quem passa pela vila. «As pessoas vêm à procura do espaço em si», afirma o gerente, explicando que, sendo uma zona de vinho, a região não é rica em pratos típicos. Na Tasca, destacam-se a feijoada de tripas à moda do Porto, a vitela e o anho assado, os rojões de porco e o bacalhau, mas André admite que o maior atrativo será sempre o encanto e o sossego das ruas de Mesão Frio.

Para os portugueses ou os estrangeiros, a gastronomia detém igualmente o poder de contar a vida do Douro e de quem lá trabalha. «Eu não estou aqui só para servir. Começa-se a falar e, às vezes, [os turistas] perguntam do vinho. Eu explico que a vindima é feita na altura marcada e que há um trabalho árduo durante todo o ano, para eles se aperceberem do que é realmente a cultura do Douro vinhateiro», conta o proprietário, que vê a verdadeira beleza do seu negócio, marcado como ponto de encontro entre os locais e os visitantes, no convívio entre os diferentes públicos.

Depois do almoço, um passeio pela avenida principal leva-nos a cruzar com os comerciantes que, nos vários minutos entre uma venda e outra, contam, sem pressa, a história de uma vila que se sente esquecida. O resultado da jornada de agricultores, que agora descansam reunidos nos pequenos cafés, mantém-se constantemente à vista e exibe a riqueza artesanal de um saber especializado que urge pela continuidade nas novas gerações.

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