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Mila Simões de Abreu: “Com o Côa, nasceu a ativista”

Mila Simões de Abreu divide a sua vida em dois momentos: antes e depois do Côa. A luta pela preservação da arte rupestre em Vila Nova de Foz Côa centrou atenções nacionais e internacionais, e deitaria por terra a intenção de ali construir uma barragem. A arqueóloga da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, que em meados da década de 1990 enfrentou a ira de uma população confiante no progresso prometido pela barragem, continua a bater-se pela salvaguarda do património. A reabertura da Linha do Corgo e a suspensão do parque eólico previsto para a Serra de Passos, em Mirandela, são duas das suas lutas atuais. Faz parte do Conselho para a Reflexão e Ação sobre o Interior, cuja primeira reunião aconteceu a 27 de maio, em Mesão Frio.

Texto de Redação

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O Movimento Internacional para a Salvaguarda da Arte Rupestre do Vale do Côa teve um impacto brutal. De que modo influenciou a forma como se vem a olhar para o património desde essa altura?

Acho que foi um daqueles momentos poéticos que nós temos em Portugal, como o 25 de Abril. Foi um movimento extraordinariamente transversal na sociedade.

E internacional.

Essa dimensão internacional é aquela por que me sinto mais responsável. Eu vivia em Itália naquela altura, e reconheço que essa dimensão se deveu à minha outra vida, ao passo que o movimento em Portugal foi outra coisa. O importante é que mostrou que uma coisa tão específica, e praticamente um nicho (quem sabia o que era a arte rupestre?), foi absorvida pela sociedade, para o bem e para o mal.

Mesmo as pessoas do Vale do Côa estavam distanciadas desse património?

As pessoas do Vale do Côa estavam completamente contra as gravuras. As sondagens da época eram alucinantes. Isso é um ponto muito interessante de se discutir: até que ponto a ditadura da maioria pode pender para o mal.

Reconhecia-se a importância da barragem para a região? Era esse o argumento?

Completamente. É natural: durante anos, a ditadura vendeu-nos as barragens como um símbolo de progresso. Quando durante anos te mostram a barragem de Castelo de Bode como exemplo de desenvolvimento, é natural que as pessoas abarquem essa visão. E depois, há uma questão económica. Muitos dos terrenos não valiam quase nada, e depois já valiam mais. Se a população local tivesse a palavra final, hoje havia barragem com certeza, porque 70 % da população era a favor.

Depois houve uma mudança nesse pensamento?

Acho que a questão se foi diluindo no tempo, mas mesmo nos últimos dias era [uma situação] muito agressiva, ainda. Às vezes digo que na minha vida tenho duas ou três coisas que me fazem, provavelmente, bastante importante, e uma é que me fizeram um boneco e queimaram. Não é para toda a gente. Mesmo quando foi proferida a decisão, naquele dia a polícia teve de me salvar, tive de ser retirada pela GNR.

Hoje, a importância desse património já é vista com outros olhos?

Talvez não se consiga entender a dimensão do que aquilo foi para o resto do mundo. Nós somos, ainda hoje, apontados como um exemplo positivo, que é muito bom. O IFRAO (Federação Internacional das Organizações de Arte Rupestre) teve ontem [26 de maio] a sua reunião anual, online. E todos os anos me perguntam a mesma coisa: como está o Côa? E eu este ano disse que não tínhamos chegado aos 80 mil visitantes [no Museu do Côa]. Em fevereiro, bateu-se o recorde de visitantes num dia, com mais de 800. Os representantes das outras organizações disseram-me que os números se estavam a aproximar dos 100 mil que eu tinha prometido, porque eu prometia 100 mil visitantes. Lá chegaremos. Também não quero milhões! Eu sabia que aquilo podia ter muitos visitantes, que era um input económico.

Então foi uma trajetória.

Demorou, e há de demorar muito. O Museu apareceu muitos anos depois. Acho que talvez só se possa avaliar daqui a 50 anos. Olha o que se passa com o 25 de Abril: duas gerações depois, ainda há muitas coisas que temos consciência de não estarem resolvidas.

O Plano Ferroviário Nacional prevê a possibilidade da reabertura da Linha do Corgo (Chaves - Vila Real - Peso da Régua). Mas este não foi o único troço a fechar na região. A Linha do Tua, por exemplo, também fechou. Que impacto estes encerramentos tiveram?

No dia 17 de maio, tivemos uma aula aberta na minha universidade, promovida por um aluno, por causa de uma coisa que ele achou que era muito importante, e nós também. Na Linha do Corgo, entre a Régua e Vila Real, o último pedacinho, que está ao pé da estação de Vila Real, protegido como rede Natura 2000, estava em risco de ser alcatroado, com a desculpa das ciclovias. Nós agora temos um problema, que é o greenwashing. Com a desculpa do “verde”, estamos a fazer as maiores barbaridades. Esse aluno lançou uma petição contra a ideia de alcatroar aquele quilómetro e meio - não é preciso, podes andar de bicicleta e a pé tranquilamente, não tem problema nenhum. Quarenta e oito horas depois, a Câmara asfaltou. O diálogo foi zero. Tu vês uma coisa feita pelos jovens, com o movimento dos cientistas e dos investigadores a apoiar, e a Câmara, de propósito, 48 horas depois, faz aquilo que nós pedíamos que não fizesse. Provavelmente vai dar uma queixa para a Europa.

Como era esse troço antes?

Era uma ciclovia de terra! E agora asfaltaram, contra todos os princípios possíveis e imaginários. E se há a perspetiva de aquilo [a linha de comboio] ser reaberto? Não faz sentido gastar dinheiro para depois retirar o alcatrão.

O Côa mudou-me a vida porque eu pertenci àquele grupo de pessoas que vivia entre as pedras e as bibliotecas. O resto do mundo não me interessava praticamente nada. Com o Côa, nasceu a ativista, porque eu percebi que podia fazer uma diferença. Cada um de nós pode fazer uma diferença.

Desde essa altura até agora, tem-se revelado mais difícil chegar ao diálogo com os poderes públicos?

Tem sido cada vez mais difícil, mas o mês passado ganhei uma [luta]. Às vezes perco, mas ganhei uma muito boa, que foi o parque eólico na Serra de Passos.

Já existe uma decisão final?

Está no tribunal, suspenso. O Côa também foi suspenso, primeiro. Uma das coisas que eu digo, em todas as lutas em que me envolvo, é que comigo podem contar só com a legalidade. Tudo o que faço é dentro da legalidade, e dentro do que eu acho que é uma ação de protesto com um fundamento científico. Quando não sei, vou à procura dos que sabem. Do caminho-de-ferro não sei nada, mas falei com muitas outras pessoas. Depois, acho que é muito importante não saltarmos etapas. Eu começo com o local, com o Presidente da Câmara, vou à Assembleia e vou subindo até onde tenho de subir. E também não tenho problemas em escrever ao primeiro-ministro. Muitas vezes não percorremos esta escala, e temos de percorrer. Na Serra de Passos, um deputado disse-me que nunca tinha ouvido falar daquilo. E eu disse-lhe que lhe tinha escrito e ele me tinha respondido. Se não leu, já não é problema meu.

Quando se trata de instalar grandes infraestruturas, como barragens ou parques eólicos, há sempre uma dicotomia entre uma ideia de progresso versus conservação? Como se combate isto?

Eu não sou contra os parques eólicos, eu sou contra aquele parque eólico. E também não sou contra as barragens - as grandes barragens sim, porque sei que o impacto é extremamente elevado. A minha formação é de Arqueologia, e as pessoas perguntam-me por que passo a vida toda a fazer as coisas do presente quando estudo o passado. Eu estudo o passado, para mais o passado muito remoto mesmo, de há milhares de anos, exatamente por causa disso. Como arqueóloga, consigo talvez prever melhor o futuro do que se calhar uma pessoa que vive na Sociologia, no presente. Uma barragem dura 70 anos, e os parques eólicos têm uma vida de 25 anos. Neste momento, nos EUA, já há cemitérios de pás que não se sabe onde pôr porque aquilo é fibra de vidro, não desaparece. Portanto, vamos alargar a escala temporal e ver o que acontece daqui a 100 ou 200 anos. É difícil para os políticos, claro, porque vivem numa lógica de quatro anos.

E também têm a pressão de acabar com os combustíveis fósseis. É possível conciliar as dimensões do progresso e das energias limpas, desde que haja um pensamento mais estruturado?

Dentro desta lógica, não existe só isto ou isto. Acho que é preciso demonstrar que há um espectro de alternativas. Por exemplo, no caso da Serra de Passos, são 30 milhões de euros [de investimento]. E se pegássemos naqueles 30 milhões e déssemos painéis solares a toda a gente do concelho de Mirandela? Se calhar, do ponto de vista da energia era igual, e era uma coisa mais direta, porque é no transporte que muitas vezes se perde, em termos energéticos. Às vezes é preciso ir à procura de alternativas. Nessa discussão que tive com os nossos alunos e com colegas a semana passada, o vereador que veio defender a Câmara dizia que [a ciclovia] ia ser muito boa para a mobilidade dos alunos nas trotinetes. Um jovem que estava no painel connosco fez uma sondagem imediata, e daqueles cento e tal jovens que estavam ali, só três é que usavam trotinete. Todos os outros usavam transporte público, e queixavam-se de não haver autocarros suficientes. Então se calhar mais valia pôr autocarros elétricos! Às vezes é nisso que temos de pensar: há outras alternativas.

Entrevista por Cátia Vilaça

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