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Ministério da habitação

Nas Gargantas Soltas de hoje, Jorge Pinto fala-nos sobre o novo ministério e direito à habitação.

Opinião de Jorge Pinto

©Luís Catarino

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E eis que, pela primeira vez na história, Portugal tem um Ministério da Habitação. Por si só esta já é uma excelente notícia, reconhecendo-se a importância de um dos direitos fundamentais da nossa Constituição que mais dificuldade temos em cumprir: o do direito a uma habitação digna para todos. A criação deste novo ministério é também consequência do ponto crítico em que o país se encontra no que diz respeito ao acesso à habitação e de como as políticas seguidas até agora falharam na oferta das respostas necessárias ou, em alguns casos, até pioraram as condições de acesso à habitação. Esta decisão do governo de António Costa é uma primeira prova de vontade política em encontrar soluções para a crise da habitação em Portugal, mas concretizar o direito constitucional à habitação vai exigir dinheiro e, sobretudo, coragem política. As boas notícias é que o primeiro parece existir, vejamos agora se existe o segundo.

Não é por acaso que a habitação digna é um direito constitucional. Ter-se um teto próprio (sendo-se proprietário ou não) é uma das principais ferramentas de liberdade e autonomia. Como um casulo, a nossa casa é o local onde nos podemos desenvolver enquanto pessoas e enquanto famílias. Espaço seguro, porto de abrigo, é na habitação que nos ancoramos e onde preparamos a vida, onde berramos as agruras do emprego ou onde partilhamos a felicidade do dia-a-dia. O direito à habitação digna é uma questão de liberdade, de autonomia, de saúde (física e mental), de comunidade; uma questão política em toda a sua extensão, portanto. 

Apesar da sua importância crítica – a nível individual e, acrescente-se, também a nível social – a habitação é, muito provavelmente, o direito constitucional mais desprezado. A isso não será estranho o facto de ser o setor onde o Estado está menos presente. Se ao nível da saúde e da educação, não isentos de problemas é certo, a II República conseguiu garantir um SNS e uma rede escolar em todo o país, os números da habitação envergonham. Com um dos valores mais baixos a nível europeu, a habitação pública em Portugal é de apenas 2%. E este é o ponto de partida para o grande problema no qual nos encontramos. 

De acordo com um estudo publicado pela FCG em 2019, “entre 2011 e 2017, registou -se uma redução da despesa pública na habitação, registando o valor mínimo, entre 2016 e 2017 (0,5% do PIB). No conjunto de todas as despesas sociais, a habitação é a que recebe menos investimento público.” Nesse mesmo estudo é-nos dito que o próprio modelo de propriedade mudou bastante: se nos anos 70 a distribuição entre famílias arrendatárias e proprietárias de habitação era equivalente, em 2011 a grande maioria (73%) era proprietária. Com os preços de venda a aumentar drasticamente e com o agravar das condições de empréstimo, a compra de casa própria é cada vez mais difícil; infelizmente, arrendar casa é tanto ou mais complicado, com as rendas a ter aumentos significativos a cada ano.

Há também um grande problema de fundo associado à própria ideia que se tem de habitação: onde uns veem um direito, outros veem um simples meio de investimento e especulação. Os grandes fundos (imobiliários) serão os principais responsáveis, mas há também alguma responsabilidade por parte dos pequenos investidores. Desde logo, porque, investindo, mesmo que pequenas quantias, em fundos imobiliários que garantem margens de lucro elevadíssimas está-se a contribuir para um permanente aumento de rendas de modo a conseguir cumprir com os pagamentos prometidos aos investidores. Também a compra de segunda casa a preços inflacionados com o intuito exclusivo de beneficiar do aumento generalizado das rendas e esperando assim não só pagar um eventual empréstimo como ainda lucrar com esse investimento tem colocado ainda mais pressão sobre quem procura casas para arrendar a preços justos. Perante este enorme desafio, apenas a ação forte e resoluta do Estado pode servir. Olhemos para algumas das coisas que podem ser feitas.

Comecemos pelos fundos. Num artigo recentemente publicado, Helena Roseta detalha os números mais relevantes: graças ao PRR, o setor da habitação receberá 2600 milhões de euros, 1600 dos quais a fundo perdido. Esta é uma soma elevada que permitirá certamente capacitar a ministra Marina Gonçalves na sua função e no cumprimento da Lei de Bases da Habitação, num momento em que o preço das casas continua a subir mais em Portugal que na restante zona euro. Olhemos então agora para algumas medidas que podem ser tomadas, umas mais imediatas, outras a mais longo prazo e com impacto estrutural. 

Mais habitação pública. Portugal tem, como já referido, uma percentagem de habitação pública de cerca de 2%, valor muito abaixo daquele observado noutros países europeus. Aumentar o parque habitacional público permitirá garantir mais habitações de qualidade e a preços justos. Uma (boa) parte do PRR poderia assim ser utilizada neste sentido, dando preferência à reabilitação e reconstrução em detrimento da construção de raiz. O diminuto parque habitacional público em Portugal, bem como os baixos salários, fazem com que no país, em particular no Porto e em Lisboa, se verifiquem dos maiores valores de percentagem do salário médio necessário para o pagamento de uma renda.

Limitar o valor das rendas. Como medida urgente e de implementação imediata, o governo deveria decretar o congelamento e um teto às rendas. Esta medida, podendo ser temporária, teria um impacto muito concreto e necessário no acesso imediato à habitação a um preço justo. Poderia também limitar o preço das rendas de casa compradas com o exclusivo intuito de entrar no mercado de arrendamento. E se é certo que ter uma segunda casa arrendada como forma de poupança é lícito, não podemos aceitar que este mecanismo de poupança se faça às custas dos arrendatários. A vontade de obter lucro não se pode sobrepor ao direito à habitação.

Limitar a especulação. Tal como já acontece noutros países, também em Portugal a especulação imobiliária faz com que atualmente seja (bem) mais rentável ter um imóvel vazio esperando a sua valorização que o ter arrendado. No já citado artigo de Helena Roseta, a arquiteta afirma que “o excedente em casas vazias, excluindo naturalmente as residências secundárias, é superior a 700.000 alojamentos.” Este número será resultado de um conjunto muito díspar de circunstâncias, mas seria importante perceber, até pela sua magnitude, quantos se devem a especulação imobiliária, forçando a sua entrada no mercado. 

Outras políticas possíveis de combate à especulação incluem também medidas como a recentemente aprovada no Canadá, onde os investidores estrangeiros estão proibidos de comprar casa, ou ainda o aumento do imposto sobre as mais valias no momento da venda de imobiliário que não seja primeira habitação. 

Facilitar o arrendamento a baixo custo e a longo prazo. O programa de arrendamento acessível não teve o sucesso esperado, com o número total de contratos ao abrigo deste programa a corresponder a 0,4% do total (sendo a meta de 20%). O governo anunciou no final do ano passado a revisão deste programa, estando ainda pendentes algumas medidas e não sendo claro se esta nova versão, que não tem previstas novas regalias para os proprietários, será capaz de melhores resultados, quando uma das razões para o falhanço do programa de arrendamento acessível parece ser o da ganância dos proprietários. Outra medida importante neste capítulo é assegurar que uma parte substancial dos novos empreendimentos é arrendada a preços acessíveis.

Apostar na habitação cooperativa. Depois de um pico em que a habitação cooperativa albergava cerca de 5% da população, este valor diminuiu drasticamente. Há uma série de razões que ajudam a perceber este facto, desde logo a facilidade no acesso ao crédito para comprar de habitação. O governo, em parceria com as autarquias, deveria agora relançar o movimento cooperativo, em particular no formato de propriedade coletiva, pondo à disposição dos cidadãos terrenos e habitações, tanto do Estado central como ao nível local, no formato de concessão a longo prazo, com as obras necessárias a ficarem a cargo das próprias cooperativas. Um programa nacional de apoio às cooperativas nestes moldes poderia também envolver o setor da economia social, em particular a Santa Casa da Misericórdia, detentora de um grande parque habitacional. 

Perspetiva holística a nível territorial. Por fim, uma medida mais estrutural e que se prende com a organização territorial do país. Apostar na regionalização e no fortalecimento das cidades médias retirará pressão dos grandes centros urbanos e permitirá um desenvolvimento mais equitativo e equilibrado do país, ajudando também a dar resposta à crise da habitação que afeta principalmente as grandes cidades. 

A tarefa da nova ministra da habitação não será fácil. Mas tem todas as condições para conseguir dar resposta a um dos mais prementes problemas do país. Assim o consiga, para bem de todos nós. 

-Sobre Jorge Pinto-

Jorge Pinto é formado em Engenharia do Ambiente (FEUP, 2010) e doutor em Filosofia Social e Política (Universidade do Minho, 2020). A nível académico, é o autor do livro A Liberdade dos Futuros - Ecorrepublicanismo para o século XXI (Tinta da China, 2021) e co-autor do livro Rendimento Básico Incondicional: Uma Defesa da Liberdade (Edições 70, 2019; vencedor do Prémio Ensaio de Filosofia 2019 da Sociedade Portuguesa de Filosofia). É co-autor das bandas desenhadas Amadeo (Saída de Emergência, 2018; Plano Nacional de Leitura), Liberdade Incondicional 2049 (Green European Journal, 2019) e Tempo (no prelo). Escreveu ainda o livro Tamem digo (Officina Noctua, 2022). Em 2014, foi um dos co-fundadores do partido LIVRE.

Texto de Jorge Pinto
Fotografia de Luís Catarino
A opinião expressa pelos cronistas é apenas da sua própria responsabilidade.

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