Mudar de passeio é, para mim, uma prática habitual. Quem diz mudar de passeio, diz ocupar as mãos com objetos que não causem desconfiança, como o telemóvel, para mostrar que tenho um e que não preciso de roubar, a carteira, para mostrar que tenho uma e que não preciso de dinheiro, ou as chaves de casa, para mostrar que tenho uma casa e que não preciso de forçar nenhuma entrada.
Esforço-me, às vezes mais do que me é conveniente, para que as pessoas que encontro na rua não se sintam observadas, perseguidas ou inseguras. Por causa da minha cor de pele, forcei em mim a responsabilidade de definir estratégias para evitar tensões indesejadas.
Não são raras as ocasiões em que dou conta da linguagem corporal defensiva de certas pessoas com quem me cruzo. Às vezes até estranho quando não sinto um estado de alerta a formar-se no olhar e na postura de quem se apercebe, sob a luz amarela da noite lisboeta, que me estou a aproximar. Seja como for, mantenho-me afastado, escolho outro caminho, se for possível, e pratico a telepatia. Tento dizer, usando apenas a força da mente, que está tudo bem: “cara ou caro transeunte, está tudo bem. Não represento perigo, embora o meu aspeto assim o possa, erradamente, sugerir. Vou a uma loja de conveniência. Sim, eu digo loja de conveniência, ou minimercado, em vez de loja do chinês ou dos indianos. É preciso explicar porquê? Não precisas de ter medo. Não precisavas sequer de reconhecer a minha presença, embora o teu instinto já tenha tratado disso. Já percebeste que sou um homem, talvez na casa dos vintes, talvez com um metro e oitenta. Talvez também já te tenhas apercebido que não sou branco. Isso deixa-te desconfortável? Está tudo bem. Está mesmo tudo bem.”
É impossível saber se funciona, porque nunca recebo mensagens telepáticas de volta. Às vezes recebo um sorriso empático atrás da máscara, um gesto tímido em jeito de cumprimento, ou um silêncio de indiferença. Outras vezes vejo mochilas a passarem das costas para o peito, passos que aceleram subitamente, molhos de chaves a serem empunhados como garras metálicas, e telefonemas que, coincidentemente, começam no momento em que apareço e acabam à porta do prédio para onde as pessoas se dirigem.
Não foi difícil concluir que causo medo nas pessoas tanto por ser negro, como por ser homem. Por ser negro não me surpreende, por ser homem, muito menos.
O que me surpreende é a indignação de muitos homens com a ideia de inspirar segurança nas mulheres em situações de perigo iminente. Estes homens, que dizem ter a consciência tranquila sobre a maneira como tratam as mulheres, consideram absurdo que uns tenham de pagar pelo machismo violento dos outros. Acham que mudar de passeio é assumir, mesmo que por momentos, a culpa do homem que abusa, viola e assassina. Que ninguém os pode submeter à vergonha que é ter de mostrar que não representam perigo. Estes mesmos homens, que afirmam raivosamente em caixas de comentários que são inocentes no que toca a atos de violência sobre mulheres, tendem a achar perdoável o humor estereotipado sobre o sexo feminino que evocam para fazer rir os amigos. Acham que um homem que diz umas piadas e de vez em quando manda uns piropos é menos machista que um homem que persegue e viola. Enganam-se. É menos criminoso, sim, segundo os termos da lei, mas é igualmente imbecil.
No seu último espetáculo de stand up, Daniel Sloss — homem branco, cisgénero, heterossexual — decide posicionar-se publicamente a favor do movimento #metoo, fazendo uma revisão performática da sua base de dados de opiniões desatualizadas sobre o sexo feminino. Para isso visita, no armazém empoeirado da sua memória, o velho Nigel, que serve como bibliotecário na busca do humorista pela verdade escondida dos seus encontros sexuais do passado. Depois de analisar o seu historial de relacionamentos, Sloss conclui que nunca ultrapassou quaisquer limites no que toca a atos de intimidade não consentida. No entanto, é ao expor o crime de violação de um amigo próximo sobre uma amiga próxima que somos alertados para o poder de camuflagem dos predadores sexuais.
O assédio e a violação podem estar horrivelmente próximos de qualquer círculo social e profissional que frequentemos, e são crimes que não podem apodrecer no silêncio. E quando o silêncio é quebrado, não podemos permitir que as histórias das sobreviventes sejam debatidas com descrédito e negação. A culpa de um violador nunca será debatível. É decisivo que nós, homens, participemos ativamente na luta contra a supremacia masculina. É importante que deixemos pesar a consciência pelos crimes que escolhemos não denunciar. Vimos, ouvimos, testemunhámos, e se nada fizemos, a culpa também é nossa.
Mudar de passeio é, para mim, um ato político. Quem diz mudar de passeio, diz prestar atenção às atitudes sexistas dos amigos, colegas e familiares, diz emprestar a voz à luta feminista, diz visitar o Nigel no armazém da memória e garantir que as opiniões e atitudes do passado não se transformem nos crimes do presente.
-Sobre Marco Mendonça-
Marco Mendonça nasceu em Moçambique, em 1995. É licenciado em Teatro pela Escola Superior de Teatro e Cinema. Estreou-se nos The Lisbon Players. Em 2014, começou a trabalhar com a companhia Os Possessos. Estagiou, entre 2015 e 2016, no Teatro Nacional D. Maria II, onde participou em espectáculos de Tiago Rodrigues, João Pedro Vaz, Miguel Fragata e Inês Barahona, entre outros. Em 2017, trabalhou numa criação de Tonan Quito e fez o seu primeiro espectáculo com a companhia Mala Voadora. Em 2019, estreou-se como autor e co-criador em “Parlamento Elefante”, projeto vencedor da primeira edição da Bolsa Amélia Rey Colaço. Atualmente, integra o elenco de “Sopro” e “Catarina e a beleza de matar fascistas”, de Tiago Rodrigues.