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Mudatuga: “A compostagem é extremamente fácil, o desafio é sair da nossa zona de conforto”

Descomplicar as regras da reciclagem de resíduos orgânicos e formar ninjas da compostagem é a missão da Mudatuga, start-up fundada em 2020, em Coimbra. Fomos recebidos na casa da cofundadora e diretora-executiva Carolina Bianchi, que nos explicou o movimento pelo fim dos aterros sanitários e a urgência de mudar os hábitos individualistas da nossa sociedade para efetivamente combater as alterações climáticas.

Texto de Analú Bailosa

Fotografia da cortesia de Mudatuga

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Um recipiente para guardar o lixo orgânico e diversos compostores tomam conta da atual cozinha de Carolina Bianchi, adepta da compostagem há doze anos. No entanto, a bióloga deparou-se com outro cenário em 2017, quando mudou de São Paulo, no Brasil, para Portugal. Depois de viver em casas que ignoravam o depósito nos ecopontos e realizavam a compostagem indevidamente, desiludida com as baixas taxas de reciclagem do país, onde até 60 % dos resíduos urbanos vão parar a aterros, Carolina aproveitou a pausa nos trabalhos imposta pela pandemia para criar um projeto com o qual há muito sonhava.

Mais de 1500 pessoas educadas em formações são prova do impacto dos quase três anos de atividade da Mudatuga, que é ainda responsável pela gestão de dois compostores comunitários em Coimbra e uma loja online. Em entrevista ao Gerador, a diretora-executiva da empresa simplificou a prática da compostagem e reiterou a necessidade de pressionar as autarquias para a criação de iniciativas para toda a comunidade. “Não é preciso investir muito, principalmente nas cidades mais rurais, que é onde se menos faz compostagem, mas onde mais se tem espaço. Para a maior parte do território português, ninguém precisa de comprar um compostor”, garante Carolina.

A start-up Mudatuga já formou mais de 1500 pessoas desde 2020. Fotografia da cortesia de Mudatuga.
Gerador (G.) – No que consiste o processo da compostagem?

Carolina Bianchi (C. B.) – Em linhas gerais, da mesma forma que se recicla o plástico, reciclamos os resíduos orgânicos e obtemos os nutrientes numa forma passível de ser absorvida pela raiz das plantas. Na verdade, não é uma coisa que o ser humano inventou. A compostagem é o que chamamos bio mimética do que acontece nas florestas. Nós tentamos imitar o que acontece na porção mais superficial do solo, chamada manta morta, em que caem folhas secas, folhas verdes, frutos e fezes de animais etc., dentro de um ambiente urbano ou de uma usina. Por isso, quando fazemos compostagem, há regras. Quanto melhor imitamos o que acontece na floresta, menor a probabilidade de ter alguma dor de cabeça, como mal cheiro ou moscas.

G. – Qual o impacto ambiental dessa prática?

C. B. – Quando o resíduo orgânico, que pode chegar a ser até 50 % do caixote de lixo, decompõe em condições anaeróbicas, que é o aterro sanitário, ele gera muito gás metano e outros gases que agravam o efeito estufa. Claro que o plástico, quando não é reciclado, tem um impacto, mas ele demora tanto para decompor que não é isso que está a gerar gases de efeito estufa. Se pensarmos bem, o que mais tem impacto nos aterros sanitários é o resíduo orgânico, que é o mais fácil de tratar, porque é o único tipo de resíduo que a pessoa pode reciclar em casa – claro que será necessário combinar várias soluções, como recolha porta a porta, compostagem industrial, comunitária, etc. Só depois que surgiu a diretiva 851 da Comissão Europeia, em 2018, a qual obriga os países-membros a estimularem a reciclagem de resíduos orgânicos, Portugal começou a falar de compostagem, então esses resíduos foram ignorados por décadas.

G. – Na tua opinião, porquê a adesão à compostagem ainda não é popular?

C. B. – Isso é complicado. Há o motivo que as pessoas falam e o motivo real, intrínseco, que é o que eu tento estudar. O motivo verdadeiro mesmo acho que é um bocado de preguiça, porque, se não, teríamos uma taxa de reciclagem a 100 %. Se o ecoponto está ao pé de nossa casa e já não se leva o plástico para o ecoponto, eu não consigo acreditar quando a pessoa diz que não faz compostagem porque vive em apartamento. Posso parecer má a dizer isso, mas é a verdade [risos].

Ano passado, 7,2 % de todos os resíduos em Portugal tiveram como destino final a compostagem ou digestão anaeróbia – a APA nem separa os dados de compostagem e produção de biogás – e reciclamos 14 %. Cinquenta e sete por cento de todos os resíduos orgânicos produzidos nas cidades – não estou a falar de resíduo industrial, apenas de resíduo doméstico – foi parar em aterro sanitário. Como vou acreditar em quem me diz que não faz compostagem porque dá trabalho? Dizem que é difícil, que cheira mal, que atrai mosca, que não têm varanda ou o que fazer com adubo, etc.

Resíduos de compostagem bokashi. Fotografia da cortesia de Mudatuga.
G. – No fundo, o problema é a desinformação?

C. B. – Com certeza, por isso que nós oferecemos tanto material gratuito. Fizemos um zilhão de formações gratuitas, temos um Instagram e um blog cheio de conteúdo, e isso é uma das coisas com as quais eu sempre me preocupei. Para mim, é mais importante que todo mundo saiba o que é e como fazer compostagem do que ganhar dinheiro. Já vi muita gente a fazer manuais copiados do Google, que não vão a fundo na questão, e isso gera mais problemas do que soluções. Uma prova de que falta informação são as queimas mal geridas de resíduos de jardim naquela altura antes do verão, para limpar os terrenos, já que tudo isso poderia virar compostagem.

G. – Esclarece-nos, então, qual o primeiro passo para começar a compostar. É necessário fazer um grande investimento?

C. B. – O primeiro passo é fazer uma auditoria do resíduo que se tem em casa. Há famílias que geram zero resíduo orgânico porque trabalham 12 horas por dia e nem comem em casa, enquanto há famílias que comem 300 quilos de vegetais por semana, gerando muitos resíduos. É preciso entender quanto do caixote de lixo realmente é composto e quais são as suas opções – se mora em apartamento ou casa, se tem acesso a um compostor comunitário, ao jardim de um vizinho ou de um parente para levar o composto, etc.

Depois de estruturar isso, a pessoa vai conhecer o seu resíduo orgânico, saber o que é cozinhado, o que é casca de frutas e se tem citrinos, para aí tomar a decisão de comprar ou não um compostor, de construir um – disponibilizamos vídeos com tutoriais do it yourself para todos os tipos de compostores – ou de simplesmente delegar para outras pessoas fazerem a compostagem, através da Share Waste, por exemplo.

G. – Um dos valores da Mudatuga é a construção de comunidade. Qual o vosso impacto comunitário?

C. B. – Brincamos com o movimento dos ninjas da compostagem, que é realmente criar um grupo que é tão apaixonado pela causa que, em vez de ser uma ou duas pessoas da Mudatuga a trabalhar com isso, tenho um exército a cobrar as entidades públicas.

Também há a questão da responsabilidade partilhada. Na minha opinião, vivemos num sistema muito individualista e vemos o nosso resíduo como um problema que não importa para os outros. Sinto que só vamos conseguir alcançar todas as metas de economia circular e descarbonização da economia se sairmos dessa lógica. Por exemplo, os carros elétricos geram mil problemas, porque ainda são carros com bateria de lítio. Autocarros elétricos já são uma outra história, porque duram mais tempo e levam mais pessoas. A compostagem é extremamente fácil, o desafio é sair da nossa zona de conforto, passar a viver em comunidade e conectar-se mais com os nossos vizinhos – daí o nosso nome. É uma questão que demoraria gerações para mudar, então eu sou muito pessimista. A minha função é um bocado adiar o fim do mundo. Há uma mentalidade de que o ambiente vai acabar, mas não, o planeta Terra continua, quem vai morrer somos nós.

Francisca Silva, diretora de marketing digital, e Carolina Bianchi, cofundadora e diretora-executiva, são parte da equipa Mudatuga. Fotografia da cortesia de Mudatuga.
G. – Mencionaste o trabalho com as autarquias. De que forma trabalham com o poder público?

C. B. – A compostagem tem de ser o resultado de um esforço das pessoas e do governo. O governo reclama que as pessoas não separam o resíduo e as pessoas reclamam que o governo não dá oportunidade de destinar o resíduo ou o adubo. A Mudatuga, para mim, trabalha muito como ponte entre os dois.

Percebo que falta informação para o próprio pessoal das câmaras e muitas contratam-nos para dar formação aos técnicos municipais. Porém, ao mesmo tempo, sinto que muitos organismos públicos estão a fazer projetos pilotos de compostagem mal pensados, parece que só para falar que fez um relatório.

G. – O Compostuga é o vosso projeto de compostor cuja toda a cadeia de valor é baseada na economia circular. Qual o ponto de situação do desenvolvimento desse produto?

C. B. – Ele saiu da lista de prioridades por várias coisas. Já temos uma loja que vende compostores e a Mudatuga não é uma empresa que vende baldes, mas uma empresa que muda pessoas, então estávamos a perder um pouco o foco da missão. Acho muito mais interessante voltar a focar na educação, onde começámos, mesmo que isso signifique uma demora a mais para crescermos. A chave que precisamos virar não é um compostor novo. O projeto está lá e, eventualmente, se alguém quiser investir, faremos, mas fomos por outro lado e criámos uma aplicação, que está em teste agora, para ajudar a rastrear a nossa compensação carbônica. A ideia, em 2023, é procurar financiamentos relacionados a blockchain para conseguirmos provar o impacto da compostagem doméstica em Portugal.

Minhocas utilizadas na vermicompostagem. Fotografia da cortesia de Mudatuga.
G. – Qual será a dinâmica da aplicação?

C. B. – O objetivo é o habit tracking. [O sistema] vai medir o impacto individual das pessoas e servir como uma bengala para essa mudança de comportamento que queremos ver. Também haverá um ranking de todos os utilizadores, porque uma coisa é ver o seu impacto, outra é olhar para todos os utilizadores e ter esse senso de comunidade e de relevância dos nossos atos. A aplicação foi feita por um grupo de estudantes da Nova SBE como uma dissertação de mestrado. Depois dos testes, vamos procurar um investidor.

G. – No vosso site, explicam que, em Portugal, a partir de 1 de janeiro de 2024, a valorização dos resíduos orgânicos será obrigatória. O que isso significa na prática?

C. B. – Uma das coisas que essa lei quer garantir é que os orgânicos sejam recolhidos separadamente, porque o tratamento mecânico biológico tenta separar os orgânicos da recolha indiferenciada, mas resulta num adubo de má qualidade.

Será obrigatório que as câmaras estimulem a separação de resíduos orgânicos na fonte geradora – no caso, a nossa cozinha –, e ofereçam a recolha seletiva desses bioresíduos. Mas não está escrito que o destino final terá de ser a compostagem – pode ser, por exemplo, o biogás. A lei também não diz como cada câmara municipal deve fazer isso. Estudos prévios da APA sobre as medidas possíveis falam numa combinação entre a recolha porta a porta e os contentores castanhos, podendo recorrer à compostagem comunitária, doméstica, de jardim, etc. Para mim, é muito difícil de acreditar que essa lei vai ter grandes resultados em Portugal, porque uma coisa é criar uma campanha que obrigatoriamente põe todo o município a fazer compostagem, outra é estimular as pessoas, o que é muito vago.

A empresa disponibiliza serviços de sensibilização ambiental para instituições de ensino, empresas e municípios. Fotografia da cortesia de Mudatuga.
G. – Num artigo do ano passado, lamentas a falta de iniciativas centradas nos adultos e nos idosos para que se mudem os hábitos que não nos deixam avançar nessa questão. Continuas a achar que a missão de salvar o mundo é muito mais voltada para os jovens?

C. B. – Sim, e ainda mais. Não adianta incentivar a compostagem na infância. Quando as crianças de hoje forem adultas, nós estaremos fadados ao fracasso e à catástrofe climática. Já estamos a viver a catástrofe climática, mas as pessoas não percebem isso. Precisamos, hoje, que toda a gente faça compostagem para ter alguma mudança que reverta a situação atual, o que é impossível. Não deve ser uma carga apenas para a futura geração, temos de começar por todo o mundo ao mesmo tempo. Por isso que, para a Mudatuga, é muito importante trabalhar com os jovens, nas escolas, universidades, empresas e com o público sênior, que é, realmente, o público mais difícil. Nas aldeias, muitas pessoas de idade, infelizmente, acabam por queimar os resíduos de jardim. Se houvesse programas, de custo baixíssimo, com um triturador municipal, por exemplo, que se pudesse emprestar, todos faziam compostagem. Além de tudo, a compostagem também é uma atividade que pode ser um hobby e que ajuda a saúde mental, porque há o contato com a natureza. Unimos o útil ao agradável, melhorando a nossa qualidade de vida e reduzindo a emissão de gases de efeito estufa.

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