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Na Livraria Aberta, conta-se a História Queer para que não mais seja apagada

O mês de junho estava já em contagem decrescente para se encontrar com julho quando Paulo Brás, investigador em literatura comparada, e Ricardo Braun, tradutor e encenador, abriram pela primeira vez a porta da livraria que pensaram em conjunto. Entre a Igreja da Lapa e o Metro Faria Guimarães, passou a existir uma montra que muda todas as semanas e que dá pistas sobre o que se encontra nas estantes: livros que convidam à reflexão, que convidam os leitores a ser livres, alguns deles com chaves para vidas que precisam de abrir algumas portas. Desde 28 de junho, Dia Internacional do Orgulho LGBTI, têm contribuído para que a literatura das margens venha para o centro e se encontre com os seus leitores.

Texto de Carolina Franco

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Até a Livraria Aberta abrir, o Porto tinha já algumas livrarias independentes e com literatura que não se encontra em grandes superfícies. Entre os vários géneros literários encontrava-se, porém, uma brecha aberta. Não havia grande oferta de literatura Queer, muitos dos livros procurados por quem se interessa por questões de género e sexualidade eram comprados, muitas das vezes, online. Nos tempos em que não havia a facilidade de encomendar livros pela internet, eram adquiridos em viagens pessoais ou de amigos. Até a Orfeu Negro editar Judith Butler e Paul B. Preciado essa era a realidade de muitos dos que os procuravam, ter de os encontrar fora de Portugal. 

No contexto editorial da cidade do Porto, Aida Suarez tinha já aberto a Confraria Vermelha - Livraria de Mulheres, que tinha inclusive algumas autoras que hoje habitam nas estantes da Livraria Aberta. Neste momento, a Livraria Aberta é a única livraria no Porto com um foco mais assumido nas questões de género, e a única livraria Queer em Portugal, depois da Esquina Cor-de-Rosa, fundada em setembro 1999 pela ativista Jo Bernardo em Lisboa, ter encerrado em 2005. Numa videochamada entre Porto e Lisboa, Paulo Brás, cuja entoação das palavras não deixa esconder de onde vem, partilha que não sabe até que ponto se sentiria falta de uma livraria Queer na cidade do Porto até a sua abrir — “não podes sentir falta daquilo que nunca existiu”, diz. 

Abrir uma livraria não era propriamente um sonho antigo que, num dos anos mais difíceis da última década, teve a sorte de concretizar com Ricardo. A ideia surgiu naturalmente, quando ambos decidiram que se criam dedicar aos seus percursos pessoais e procuravam um espaço comum. Foi quase uma inevitabilidade. E tal como não se sente falta daquilo que não se conhece, a partir do momento em que esse conhecimento é travado e toca a vida dos que por ele são atingidos de alguma forma, é difícil, agora, que algum dia deixe de fazer falta. Paulo e Ricardo montaram uma livraria com uma linha editorial interseccional, onde todas as pessoas cabem, um espaço acessível, arejado, que deixa a história de cada livro respirar. E que deixa a História Queer ser contada sem que volte a ser silenciada. 

Um editor dita quem fica na História, um livreiro quem alimenta a alma

Nas estantes, ou nas suas redes sociais - Instagram, Facebook ou Twitter - vemos um catálogo que nos fala do que está lá atrás e do mundo que está por vir. “Hoje, de vez em quando aparece-nos alguém na livraria que diz ‘não sei onde é que arranjaria este livro se não fosse aqui’”, partilha Paulo. Encontramos clássicos da Penguin, como Virginia Woolf, lado a lado com vozes jovens dissidentes que chegam a Portugal graças às opções editoriais de Paulo e Ricardo, como Elizabeth Duval, escritora espanhola, autora de Despues de lo Trans, ou Shon Faye, autora de The Transgender Issue e “uma das grandes vozes do Reino Unido, neste momento”.  “Se eu abrisse uma livraria há dez anos é possível que eu não tivesse tantos livros trans que pudesse comprar, mas hoje há; e se há, tenho obrigação de os ter lá”, comenta com o Gerador.

Em português existem livros sobre questões de género, racismo, lutas de classes. Provavelmente todos os que foram editados nos últimos anos no contexto nacional. A procura por livros em espanhol ou inglês deve-se ao facto de alguns autores não estarem ainda traduzidos para o português - e talvez possam nunca vir a ser. Para Paulo, “quem está, neste momento, a correr os maiores riscos editoriais são as grandes editoras independentes”. Destaca o catálogo da Língua Morta e o trabalho dedicado à América Latina da Livraria Snob. Também Paulo e Ricardo querem editar alguns livros que preencham lacunas no seu catálogo, que considerem peças fundamentais para “perceber o que está para trás” - seja porque têm personagens queer, porque são de autores queer ou porque refletem temas relacionados com género e não se encontram disponíveis. Paulo compara esta vontade que tem surgido nas pequenas livrarias para editar o que faz falta com a necessidade que existia no século XIX por parte de livrarias da cidade, como a Lello ou Chardron - “ainda bem que está a surgir novamente”, diz.

Para Paulo, o que se torna mais desafiante para vozes dissidentes é ver os mesmos livros a receberem reedições vindas de diversas editoras. Um exemplo claro foi a reedição de A Quinta dos Animais e 1984, de George Orwell, quando a obra do autor entrou para domínio público. “Há problema de haver doze traduções diferentes e doze capas do mesmo livro? Não há problema nenhum, para quem gosta de ter várias edições, para quem gosta de fazer uma leitura comparativa, como investigador, o que  é preciso saber é que para aquele dinheiro ter sido investido naqueles doze livros por aquelas doze editoras diferentes significa que pelo menos dez autores não foram publicados, porque em vez daquele poderia ser publicada uma mulher, uma mulher negra, uma mulher trans, qualquer outra pessoa que não um autor que seja já muito conhecido, muito divulgado, que é já premiado”, contextualiza. 

Na sua perspetiva, é importante que não se caia num discurso ilusório de que as vendas e livros lucrativos não são necessários no circuito literário, mas acredita que é possível que exista um equilíbrio entre as obras que têm sucesso e vendas garantidos e os que podem representar riscos. Num primeiro momento, o editor é o responsável por esse risco, que depois pode ser apresentado aos leitores pelo livreiro - que, em alguns casos, pode até ser a mesma pessoa. Por isso, está certo de que “um livreiro não é apenas alguém que se limita a vender livros”. Um livreiro é também um guardião de um saber que se quer partilhado e, por vezes, um ouvinte. Também por isso, quer que a Livraria Aberta represente um espaço seguro, “onde as pessoas se sentem à vontade para estar, para levar amigos, relações amorosas, familiares, para poder falar sobre outras coisas”. 

“Às vezes, ser livreiro também é estar presente em determinado momento, é sugerir a leitura certa em determinado momento. Não estamos cá para ensinar ninguém ou estar a impor às pessoas um sermão pedagógico, mas quando a pessoa está aberta, se pudermos vamos dar o nosso contributo para que haja leitores mais conscientes e, acima de tudo, cidadãos mais conscientes - se o pudermos fazer desde pequeninos, melhor”.

 Ser empático desde a infância 

Em O Perigo da História Única, Chimamanda Ngozi Adichie recorda os livros que lia na infância, que contavam histórias de raparigas loiras que comiam maçãs, e que em quase nada se assemelhavam à sua história. Quando encontrou referências nas quais se encontrava, passou a ver-se de uma forma diferente. Encontrou um lugar para si na literatura. Na conversa por videochamada com Paulo, Chimamanda surge na conversa. “[Paul B.] Preciado diz-nos no seu livro mais recente, Can the Monster Speak? que se tornou em quem é através dos livros que leu.  Foi ter lido a Monique Wittig, O corpo lésbico, foi ter lido a pessoa com quem ele esteve, a Virginie [Despentes]. Há livros que podem ser muito importantes na nossa formação enquanto pessoas.”

Na livraria, espera que não só quem procura encontrar-se nos livros decida entrar, mas também quem procura ler para gerar empatia. Quer que todas as pessoas se possam sentir confortáveis neste espaço que está desenhado de acordo com as escolhas do seu catálogo: “é uma livraria que ninguém percebe bem se é uma livraria, já nos perguntaram se somos uma associação, uma biblioteca, uma loja pop up da Marcha do Orgulho, cujo espaço está sempre a mudar a sua organização, que não quer fechar-se numa configuração”. 

Na organização do espaço, encontram-se estantes de literatura para adultos e infanto-juvenil. “Há um lado infantil e há um lado que não é infantil, e essa separação é importante para saberem para onde ir, mas não há portas fechadas”, explica. Na reportagem “Abrir as páginas de um mundo diverso, tal qual é, com os livros da infância”, publicada em dezembro de 2020 no Gerador, perguntávamos se existia “cedo demais”. A resposta era consensual: pode falar-se sobre tudo, adequando o discurso. É também assim que Paulo olha para o catálogo infantil e para a relação entre a literatura e as crianças. “Acho que há diferentes coisas para falar com diferentes idades, mas são todas abordagens diferentes de uma coisa principal, que é a nossa formação enquanto seres humanos, pessoa com sexualidade, com identidade, só que é sempre possível ir sempre por caminhos diferentes. E é possível falar de tudo com toda a gente, só é preciso perceber de que maneira falamos sobre o assunto”, diz. 

E se de facto “os livros têm a capacidade de os ajudar, pôr em palavras ou organizar mentalmente aquilo que sentimos”, na Livraria Aberta não faltam opções para nos encontrarmos. É provável que se volte com mais conhecimento, clareza de ideias e a cabeça a fervilhar.

Texto de Carolina Franco
Fotografias da cortesia de Livraria Aberta

*Esta entrevista foi inicialmente publicada a 30 de novembro de 2021.

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