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Na senda de Dêmos / Construção do Dêmos

Nas Gargantas Soltas de hoje, Joana Guerreiro da Silva traz-nos uma reflexão sobre a relação entre construção e território.

A curiosidade pelos usos e costumes tem motivado constantes aproximações a amplas valências do povo ao longo dos tempos. Entre desvendar os tempos mais idos e gerar conhecimento sobre a atualidade de uma época ou o documentar de uma realidade passada mas ainda amplamente testemunhável, amarrada pela memória e pelos despojos, várias são as fontes às quais podemos ir beber conhecimento sobre como cá chegámos. Destaque para as Memórias Paroquiais1 - inquérito desencadeado no rescaldo do sismo de 1755 a mando de Marquês de Pombal, que descreve as couzas notáveis da realidade das paróquias portuguesas -, as Cartas Agrícolas dos finais do Século XIX2, conhecidas por Cartas de Pery - levantamento da realidade agrícola onde, além dos usos do solo, podemos observar outras informações como a estrutura fundiária ou a toponímia - e o Inquérito à Arquitetura Tradicional Portuguesa3 - tarefa promovida pelo Sindicato Nacional dos Arquitetos entre 1955 e 1960 com a profunda noção de que é a Arquitetura popular o pano de fundo, resiliente mas não imóvel, sobre o qual decorrem as constantes inquietações das feições eruditas da Arquitetura.

Vários outros, mesmo recentes, ilustram a abrangência e diversidade do que pode ser o estudo do Dêmos4, mas o assunto que vos trago centra-se na articulação entre o território e a construção, entre o lugar e o suporte das funções inerentes à vida.

O passado recente evidencia um período de frequentes ilusões com a inovação e o sentimento de segurança e de evolução que a tecnologia nos tem proporcionado, buscando o aperfeiçoamento e enjeitado a estabilidade resiliente dos costumes, atraídos por um aparentemente tangível e sobranceiro domínio e imunidade sobre a Natureza. 

Por sua vez, a Natureza tem exposto a sua intrépida têmpera a uma escala global mas, contudo, a uma escala mais próxima e muito palpável - como é a construção das nossas casas -  talvez falte ainda interiorizar esta aprendizagem. Estudar o Dêmos, em particular nesta perspetiva, será porventura uma empresa que nos munirá em matéria de respeito e resiliência. No atual contexto de desenraizamento do esteio da vida provinciana, tal não será tarefa sumária. Implicando abarcar uma complexa miríade de fatores segmentáveis como os orográficos, edafoclimáticos, sociais ou económicos, ainda assim a fórmula não é matemática pois, perante tão aparentemente singela realidade, quem a tal se propuser terá de se prover de um persistente e consciente olhar limpo de vícios e preconceitos.

Do observar a placidez, estabilidade, sobriedade, funcionamento e coerência5 da tradição de que há registos ou que ainda nos chega devemos extrair diretrizes para melhor articularmos os nossos habitats com os lugares, conscientes da incontornável necessidade de cooperação com as condições naturais. Temos certamente ainda a possibilidade - apesar de cada vez mais remota - de olhar em volta e procurar modos de restabelecer uma atitude humilde de cooperação com a Natureza6, em que a construção é um - apenas mas muito significativo - dos pilares.

Recentemente tive a oportunidade de calcorrear o concelho de Odemira na mais erudita companhia em busca de património edificado. O tempo curto e a geografia extensa obrigaram a uma triagem que teve por base o cruzamento entre registos e a iminência da perda do património. Facto é que o inexorável - ainda que romântico mas incontornavelmente comovente - abandono subjuga estas construções à sua maravilhosa e quase metafísica capacidade de retorno total e transversal à terra. 

Este pano de fundo de incontáveis vidas que testemunhámos e documentámos veio da própria terra, ancorou-se nos referidos fatores segmentáveis presentes no lugar e contou com a enraizada consciência de que a obsolescência seria demasiado custosa. A isto acrescia a estória, para a qual, mais do que as características do objeto, relevava a identidade de quem o fez com conhecimento e as próprias mãos.  

E tudo isto concretizado com a informalidade dos saberes enraizados na tradição e na transmissão oral, e na empírica experiência e atenta observação do lugar. 

O paulatino e inexorável retorno à Natureza destas construções acontece evidência do desligar da terra e sintomático do desamarrar das memórias. Preterir radicalmente esta aprendizagem aportou ações cujos critérios e expressão no território, na paisagem e no ambiente nos são hoje tantas vezes desconfortáveis - quando não desconcertantes - e cada vez mais auto-flageladores. Cientes de que outras são as demandas atuais, teremos ainda assim algo a aprender com aquele modus ancestral.

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1  Memórias Paroquiais, ANTT
2 Cartas Agrícolas do Século XIX, DGADR
3  ANTUNES, A. A., GOMES, A. A., MENÉRES, A., FREITAS, A. P., ARAÚJO, A., MARTINS, A. P., DIAS, C. C., CASTRO, C., TÁVORA, F., TORRES, F., AMARAL, F. K., DIAS, F. S., GEORGE, F., MALATO, J. J., LOBO, J. H., PEREIRA, N. T., FILGUEIRAS, O. L., PIMENTEL, L. Inquérito à Arquitetura Tradicional Portuguesa. 3.ª Edição. Associação dos Arquitectos Portugueses, 1988.
 4 Elemento de formação de palavras que exprime a ideia de povo. Fonte: Porto Editora – demo- no Dicionário infopédia da Língua Portuguesa [em linha]. Porto: Porto Editora. Disponível em https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/demo-
 5 Retirado de “Inquérito à Arquitetura Tradicional Portuguesa”
 6 Idem

-Sobre Joana Guerreiro da Silva-

Arquiteta e Agrónoma de formação pela Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto (2009) e pela Escola Superior Agrária do Instituto Politécnico de Beja (2022), fez Estudos Avançados em Reabilitação do Património Edificado pela Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (2010). Interessada por fotografia, documentou os dois últimos anos da obra do Campus Wirtschaftsuniversität Wien de onde resultaram várias publicações em diversos suportes. Colaborou em vários ateliers de Arquitetura e atualmente trabalha como Arquiteta da Divisão de Licenciamento da Câmara Municipal de Odemira, desenvolvendo paralelamente atividade de investigação no âmbito do Património.

Texto de Joana Guerreiro da Silva | ZERO
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