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Não nos visualizarmos como merecedores de afeto é uma herança colonial

Nas Gargantas Soltas de hoje, Sandra Baldé reflete sobre a construção da autoestima e afeto para pessoas negras.

É muito bom sentir-me bem na minha própria pele. Pena que levei quase 20 anos para o sentir.

O processo de autoestima para um jovem negro é doloroso e pode ser também muito solitário. Para mim foi exatamente assim. Habituei-me. Nunca conversei com os meus pais e nem com mais ninguém sobre a rejeição e a negligência que me era servida até aos meus 20 e poucos anos. Eles, na correria da vida, também não tinham muita disponibilidade para perguntar. Hoje, com 25, eu entendo como a vida adulta do imigrante com filhos já é demasiado angustiante e não dá para dar conta de tudo. Não haviam livros que me falassem sobre cabelos, cor e tolerância. Não havia rodas de conversa nas escolas onde falassem sobre raça. E assim se normalizou o absurdo e eu fui engolindo a seco todas as humilhações. Sabia que aquilo não era certo, mas eu simplesmente não sabia como me defender.

Crescemos e as cicatrizes crescem connosco. A vida continua a testar-nos. Na faculdade, no trabalho. Quando procuramos casa, quando vamos tratar da documentação. Pela nossa cor assumem o nível da integridade, do intelecto e da beleza. Cansativo. Cria-se uma casca grossa. A patada já vem pronta, antes mesmo de alguém abrir a boca. Como se aprende a amar depois de tantas violências? Sem darmos conta, dificilmente nos visualizamos como merecedores de afeto, e isso é uma herança colonial. Afinal, um preto aguenta todas as dores do mundo. Da chicoteada ao parto desumanizado, fomos o berço e o chão do mundo.

Quando chegam a mim meninas negras que, assim como eu num passado não muito distante, se sentem completamente frágeis porque sentem-se incapazes de (se) amar, o meu coração aperta. É aí que eu revisito com muita força todo o caminho que percorri para me libertar. Passei por 4 fases importantes que foram decisivas na minha vida. E quero partilhá-las com vocês.

1. Descolonizei o conceito de beleza

Para uma africana que nasceu e viveu toda a sua vida na Europa, devo dizer que este foi um dos processos mais desafiantes de desconstruir. Afinal, quando se vive numa determinada realidade, há muitas coisas que tomamos como verdade absoluta. E não é assim, ou pelo menos não tem de ser. A Europa mentiu-nos. Não há nada de errado com os nossos traços, nem com o nosso cabelo, nem com o nosso tom de pele. A branquitude não é o centro de tudo. Desconstruir esse ideal eurocentrado é o passo mais importante de todos, não só a nível físico, mas também mental.

2. Procuro conhecer a verdadeira história africana

Felizmente, os meus pais sempre tiveram a preocupação de não me fazer esquecer que éramos filhos de África, e nada nem ninguém no mundo poderia mudar isso. Precisei crescer para entender o valor dessa mensagem. As escolas portuguesas estão completamente despreparadas e desinteressadas em mostrar às suas crianças que o continente africano não começou com as invasões que ironicamente chamam de descobrimentos, nem com a era escravagista e muito menos com as guerras. Há muito mais para além da pegada colonial naqueles países.

3. Parei de me colocar em situações desconfortáveis para deixar os outros confortáveis

Houve um momento da minha vida em que eu me anulava ao máximo para me encaixar em grupos. Queria ser mais uma entre todos os outros e por isso aceitava ir para dentro das caixinhas em que me colocavam. Tornei-me figurante da minha própria vida e isso quase acabou comigo. Hoje em dia não faço fretes. Não, não vou rir da piada preconceituosa “inofensiva” para não criar mau ambiente. Não, não vou sentar-me por horas a educar um “racista em desconstrução” que na verdade já é um marmanjo de 30 anos completamente capaz de buscar informação, mas que não está disposto a isso e prefere movimentar-se de forma performativa e desonesta. Se não me faz bem, vou retirar-me. Se me faz bem, irei abraçar por completo.

4. “Matei” o conceito de mulher preta guerreira

Não que a mulher preta não o seja, mas isso é consequência de uma narrativa racista que não nos dá outra escolha. Romantizar isso é extremamente violento e triste. Essa ideia não permite à mulher preta errar, sentir dor, baixar a guarda e sentir-se protegida. No meio de tantas lutas diárias, como fica a saúde mental? Não quero ser guerreira, quero ser doce, viver amores tranquilos, ter a oportunidade de demonstrar afeto e ser amada de volta.

Pabllo Vittar cantou em AmarElo a letra que mais ilustra o que eu vivi nos últimos 20 anos.

“Permita que eu fale

Não as minhas cicatrizes

Elas são coadjuvantes

Não, melhor, figurantes

Que nem devia tá aqui

Permita que eu fale

Não as minhas cicatrizes

Tanta dor rouba nossa voz

Sabe o que resta de nós?

Alvos passeando por aí”

Ainda tenho feridas, mas hoje são bem mais pequenas que eu. Quando me cruzo com meninas e mulheres negras que ainda estão a aprender a amar-se. Abraço-as e digo-lhes que vai ficar tudo bem. E a verdade é que esse abraço é para mim também. Haverá de ficar.

-Sobre Sandra Baldé-

Escritora, DJ, e empreendedora digital, começou o seu percurso no digital em 2013 com o blog Diário de uma Africana, uma plataforma voltada para discussões raciais & de género e para autocuidado de pessoas negras. Em 2021 autopublicou o seu primeiro livro intitulado "Para Que Fique Bem Escurecido" cujo enredo gira em torno dos desafios da mulher negra num país maioritariamente branco. 

Texto de Sandra Baldé
A opinião expressa pelos cronistas é apenas da sua própria responsabilidade.

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