1 - O Dia da Mulher é uma data agridoce. Se por um lado serve – e bem – para nos lembrar das sofridas lutas em prol do essencial direito ao voto, igualdade salarial, trabalho digno, liberdade sexual entre tantas outras coisas, por outro traz ao de cima machismos bacocos, indignações pueris e elogios vazios.
Todos os anos recebo mensagens com a mesma piada: “é Dia da Mulher, mas a loiça não se vai lavar sozinha”. Dir-me-ão que é apenas uma brincadeira, que não há limites para o humor, etc. e tal. Tudo muito bem. Mas se este tipo de memes ainda são considerados cómicos, é porque lhes é reconhecido algum fundo de verdade. Se a premissa não fosse a de ligar a mulher à vida doméstica, nada disso teria qualquer motivo para riso.
Estarei errada? Quando irá esta piada deixar de fazer sentido?
A simples afirmação – óbvia e gasta - de que não nos cabe, à nascença, a obrigação de ser fadas do lar, ainda é motivo de chacota. Mas há mais: piadas sobre a suposta inaptidão feminina para conduzir, a suposta falta de apetite sexual ou a suposta instabilidade emocional são ainda absurdamente banais. Noções quase medievais, mas que ainda se ouvem por esse país fora.
De tal forma estas ideias persistem, que figuras desprezíveis como Andrew Tate ganharam popularidade à custa delas – milhões de seguidores (!!!) - e elevam-nas ao expoente máximo. Repito: o energúmeno que afirmou que as mulheres servem para “ter filhos, estar caladas e beber café” tem um séquito fiel e um sem fim de páginas de fãs que replicam as suas mensagens misóginas, mesmo após ter sido detido por ser suspeito de explorar mulheres e as obrigar a produzir conteúdo sexual.
2 – A par disso, há ainda outro aspecto que gostaria de destacar: o 8 de março traz consigo um significado equiparável ao 25 de abril, mas a forma como é comemorado relembra mais o Dia da Mãe. Ver as mensagens, poemas, imagens e homenagens deste dia é ver, em grande medida, um elogio à delicadeza, à devoção e, mais frequentemente ainda, à maternidade.
Encontrei um texto de opinião, publicado no P3 em 2017, que achei especialmente caricato. É verdade que não é propriamente recente, mas achei-o tão arquetípico e representativo do mindset popular – aquele que não tem lugar em discursos solenes e páginas de jornal -, que não resisti a partilhá-lo aqui (até porque a ideia perdura). É assinado por um professor, João André Costa, e está intitulado “Eu Sou Contra o Dia Internacional da Mulher”. Aqui vai um excerto, que começa com a justificação do tema:
“Porquê? Por não precisar de um Dia Internacional para me lembrar da minha mãe, da minha avó, das minhas irmãs, de ti, Ana, e por todos os dias que passas ao meu lado, da tua mãe, das tuas tias, que também são minhas, das nossas primas, das nossas sobrinhas ainda agora nascidas e já a caminho de uma vida maior, de todas as nossas amigas e de todas as mulheres sem as quais nós, os homens, não podemos estar senão eternamente gratos por esta oportunidade de vida, por este amor, oferecido a troco de nada, todos os dias por todas as mulheres do mundo.”
Vem depois, o mea culpa que continua a ser machista:
“E, no entanto, nós, os homens, achamo-nos maiores. Achamos que merecemos mais, talvez por termos mais músculo (e isto é discutível, experimentem levar com uma mala de senhora no focinho e depois a gente fala) onde devia haver mais cérebro, talvez por uma eterna frustração em redor desta incapacidade de gerar vida que nos faz parecer (e ser) mais primitivos.”
Lindo, não é? Também quase deitei uma lágrima... Aposto que todas as trabalhadoras, as sufragistas, as mulheres negras – cujas reivindicações feministas sempre foram muito distintas, já que antes sequer de pensarem em votar, tiveram de exigir que a sua existência fosse reconhecida -, as deputadas, operárias, empregadas de limpeza, juízas, professoras, ministras, enfermeiras, agricultoras, empresárias (...) todas elas devem ficar absolutamente comovidas com uma homenagem que não destaca mais do que uma função biológica à qual, diga-se, estivemos condenadas desde sempre.
Daí que esta data me provoque sentimentos cada vez mais contraditórios. Se indiscutivelmente ela tem de ser assinalada e me deixa orgulhosa pelo que representa a nível social e histórico, acaba por sucumbir aos clichês da sociedade patriarcal.
-Sobre Sofia Craveiro-
Espírito esquizofrénico e indeciso que já deu a volta ao mundo sem sair do quarto. Apaixonou-se pelo jornalismo ao integrar um jornal local teimoso e insistente que a fez perceber o quanto a informação fidedigna é importante para a vida democrática. Desde essa altura descobriu também que gosta de fazer perguntas para as quais não tem resposta. Vive entre Lisboa e a Covilhã enquanto escreve para diferentes títulos de jornalismo alternativo. Integra ainda o projeto Inocência, de jornalismo de investigação. Encontrou o seu caminho nesta casa chamada Gerador, onde se compromete a suar a alma em cada linha escrita.