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Opinião de Shahd Wadi

Shahd Wadi é Palestiniana, entre outras possibilidades, mas a liberdade é sobretudo palestiniana. Tenta exercer a sua liberdade também no que faz, viajando entre investigação, tradução, escrita, curadoria e consultorias artísticas. Procurou as suas resistências ao escrever a sua dissertação de Doutoramento em Estudos Feministas pela Universidade de Coimbra que serviu de base ao livro “Corpos na trouxa: histórias-artísticas-de-vida de mulheres palestinianas no exílio” (2017). Foi então seleccionada para a plataforma Best Young Researchers. Obteve o grau de mestre na mesma área pela mesma universidade com uma tese intitulada “Feminismos de corpos ocupados: as mulheres palestinianas entre duas resistências” (2010).  Para os respectivos graus académicos, ambas as teses foram as primeiras no país na área dos Estudos Feministas. Na sua investigação aborda as narrativas artísticas no contexto da ocupação israelita da Palestina e considera as artes um testemunho de vidas. Também da sua.

No meu carro encostada à parede

Nas Gargantas Soltas de hoje, Shahd Wadi imagina pessoas encostadas à parede por uma sociedade inteira.

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Mamã! Mesmo com as janelas fechadas, o grito invade o carro. Não ouço nada para além de um rapaz a chamar simplesmente pela mãe. No entanto, uma outra, neste caso a minha, que está comigo no carro, sente o medo de um filho, mesmo não sendo o dela:  o rapaz… a mãe do rapaz! Do canto do olho, vejo uma senhora a cair no chão. Os carros seguem o seu caminho, os peões ao lado dela também. Mas não o olhar da minha mãe, que me empurra rapidamente para fora do carro. Assim que chego, a mulher acorda, ninguém está à sua volta a não ser o filho. A movimentação segue como se ninguém estivesse no chão. A minha pressão deve ter baixado. Chegámos de Angola há pouco tempo, e estamos a tratar de tudo. A memórias que esta frase me traz deixa-me também próxima de um desmaio. As horas passadas em prédios burocráticos em busca de um papel ou de uma resposta continuam a pesar no meu corpo, mesmo duas décadas, uma língua e uma nacionalidade depois. Não lhe conto a minha história, opto por um toque no ombro e um bem-vinda, espero que corra tudo bem.

Entro na loja ao lado à procura de “primeiros-socorros”, o vendedor está a porta a observar, sem intervir, talvez apenas a assobiar para os pássaros no céu. Compro uma água e um chocolate. Será que ajuda a subir a pressão? Digo-lhe, incitando-o a uma simples reação. O chocolate custa 1.60 €, quer mesmo comprar? Pago, viro costas em silêncio perante a sua resposta. Imagino-o a pensar: quer mesmo gastar dinheiro com uma “imigrante preta”. 

Ofereço boleia à senhora e ao filho, perguntando-lhes a sua morada. Respondem-me com o nome do concelho onde estamos, um número de uma porta e de um autocarro. A rua não sabemos. Estamos aqui há pouco tempo. Lembro-me que a minha mãe, bastante independente, não sabe o nome da sua rua de cor. Imagino a minha mãe estendida sem que ninguém oiça o grito na sua língua estrangeira. Volto ao carro e digo à minha mãe para decorar a morada e para olhar bem para o chão. 

Dias depois, cai uma outra senhora a minha frente. Dou a mão sem ser empurrada pelo olhar da minha mãe. Desta vez não estou sozinha, aproxima-se uma mulher, uma outra e um outro.  Saem os donos das lojas e oferecem cadeiras e água à senhora, portuguesa branca com pasta na mão. Toda a gente a consegue ver. Desta vez, eu não imagino nada.

Também estava no meu carro quando senti o eco de um estrondo próximo no meu peito. O meu pé, que já se encontrava mergulhado no travão, afundou-se nos meus próprios músculos, para garantir que as rodas não descaiam por cima das duas mulheres na passadeira. Olho para trás para perceber o que aconteceu, vejo apenas os olhos pouco assustados da minha cadela. Saio. Um homem de gola de inverno no rosto levanta-se do chão, afastando a sua mota partida do corpo do meu carro. Está bem? Recebo uma chuva de raiva. Estás aí parada no meio da rua, a mota já foi. As duas mulheres que chegaram em segurança ao passeio, defendem, a mim e às passadeiras, com o seu sotaque brasileiro. Um outro estafeta com mala de entregas intervém, sem falar português e com inglês limitado, culpando o condutor da mota: she good, you bad. 

A não ser o condutor da mota, todos os intervenientes nesta história são aparentemente imigrantes – a condutora do carro, as mulheres na passadeira e a testemunha.  O condutor culpado, aparentemente não-imigrante, apercebe-se que é realmente culpado, agarra de repente na sua mota e desata a fugir. Uma mulher, cuja nacionalidade pouco interessa para a história, aparece, proclamando a sentença final: ele estava de cara tapada, deve ser um imigrante daqueles ilegais, vá a polícia denunciá-lo! Ouço esta frase e fico em silêncio, imaginando-me encostada à parede juntamente com as duas mulheres brasileiras; o homem com a mala de entrega; a senhora angolana e o seu filho; a minha mãe e todos os imigrantes que foram encostados à parede durante quase duas horas na operação na rua do Benformoso. Na minha imaginação, não era apenas a PSP a encostar-nos, mas uma sociedade inteira. 

As posições expressas pelas pessoas que escrevem as colunas de opinião são apenas da sua própria responsabilidade.

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