Mamã! Mesmo com as janelas fechadas, o grito invade o carro. Não ouço nada para além de um rapaz a chamar simplesmente pela mãe. No entanto, uma outra, neste caso a minha, que está comigo no carro, sente o medo de um filho, mesmo não sendo o dela: o rapaz… a mãe do rapaz! Do canto do olho, vejo uma senhora a cair no chão. Os carros seguem o seu caminho, os peões ao lado dela também. Mas não o olhar da minha mãe, que me empurra rapidamente para fora do carro. Assim que chego, a mulher acorda, ninguém está à sua volta a não ser o filho. A movimentação segue como se ninguém estivesse no chão. A minha pressão deve ter baixado. Chegámos de Angola há pouco tempo, e estamos a tratar de tudo. A memórias que esta frase me traz deixa-me também próxima de um desmaio. As horas passadas em prédios burocráticos em busca de um papel ou de uma resposta continuam a pesar no meu corpo, mesmo duas décadas, uma língua e uma nacionalidade depois. Não lhe conto a minha história, opto por um toque no ombro e um bem-vinda, espero que corra tudo bem.
Entro na loja ao lado à procura de “primeiros-socorros”, o vendedor está a porta a observar, sem intervir, talvez apenas a assobiar para os pássaros no céu. Compro uma água e um chocolate. Será que ajuda a subir a pressão? Digo-lhe, incitando-o a uma simples reação. O chocolate custa 1.60 €, quer mesmo comprar? Pago, viro costas em silêncio perante a sua resposta. Imagino-o a pensar: quer mesmo gastar dinheiro com uma “imigrante preta”.
Ofereço boleia à senhora e ao filho, perguntando-lhes a sua morada. Respondem-me com o nome do concelho onde estamos, um número de uma porta e de um autocarro. A rua não sabemos. Estamos aqui há pouco tempo. Lembro-me que a minha mãe, bastante independente, não sabe o nome da sua rua de cor. Imagino a minha mãe estendida sem que ninguém oiça o grito na sua língua estrangeira. Volto ao carro e digo à minha mãe para decorar a morada e para olhar bem para o chão.
Dias depois, cai uma outra senhora a minha frente. Dou a mão sem ser empurrada pelo olhar da minha mãe. Desta vez não estou sozinha, aproxima-se uma mulher, uma outra e um outro. Saem os donos das lojas e oferecem cadeiras e água à senhora, portuguesa branca com pasta na mão. Toda a gente a consegue ver. Desta vez, eu não imagino nada.
Também estava no meu carro quando senti o eco de um estrondo próximo no meu peito. O meu pé, que já se encontrava mergulhado no travão, afundou-se nos meus próprios músculos, para garantir que as rodas não descaiam por cima das duas mulheres na passadeira. Olho para trás para perceber o que aconteceu, vejo apenas os olhos pouco assustados da minha cadela. Saio. Um homem de gola de inverno no rosto levanta-se do chão, afastando a sua mota partida do corpo do meu carro. Está bem? Recebo uma chuva de raiva. Estás aí parada no meio da rua, a mota já foi. As duas mulheres que chegaram em segurança ao passeio, defendem, a mim e às passadeiras, com o seu sotaque brasileiro. Um outro estafeta com mala de entregas intervém, sem falar português e com inglês limitado, culpando o condutor da mota: she good, you bad.
A não ser o condutor da mota, todos os intervenientes nesta história são aparentemente imigrantes – a condutora do carro, as mulheres na passadeira e a testemunha. O condutor culpado, aparentemente não-imigrante, apercebe-se que é realmente culpado, agarra de repente na sua mota e desata a fugir. Uma mulher, cuja nacionalidade pouco interessa para a história, aparece, proclamando a sentença final: ele estava de cara tapada, deve ser um imigrante daqueles ilegais, vá a polícia denunciá-lo! Ouço esta frase e fico em silêncio, imaginando-me encostada à parede juntamente com as duas mulheres brasileiras; o homem com a mala de entrega; a senhora angolana e o seu filho; a minha mãe e todos os imigrantes que foram encostados à parede durante quase duas horas na operação na rua do Benformoso. Na minha imaginação, não era apenas a PSP a encostar-nos, mas uma sociedade inteira.