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Nojo de mim, pena dele

Nas Gargantas Soltas de hoje Paula Cardoso, reflete sobre o que o racismo não fala.

A pergunta desarma-me entre sessões escolares de humanização de vidas, tão jovens quanto violentadas pelo racismo. “Porque é que relacionam os negros com roubo, fraude e feiura?”.

Anonimamente, e por escrito, uma das alunas negras presentes na sala de aula partilha comigo – pessoa que está a conduzir o encontro – esse difícil confronto com um racialmente distorcido espelho social. O desabafo impõe-se: “Não é por ter um tom de pele diferente que eu quero roubar, cometer crimes, ou que não posso ser considerada ‘bonita’ pela sociedade”.

Leio-me em cada palavra, e encontro na interrogação e na afirmação traumas de uma beleza invalidada e de uma humanidade renegada.

Devolvo a confiança em mim – depositada numa caixa de “dúvidas sobre o racismo” – com vários exemplos de como é que eu também já habitei um lugar de profunda insegurança, de falta de amor-próprio e de ausência de auto-estima. 

Perguntam-me como é que se sai daí? Como encontramos espaço para amar o que o mundo à volta rejeita?

Continuo a aprender, e a surpreender-me com aquilo que fui reprimindo para evitar sofrer.

Hoje liberto mais um desses pesos, à época – e até há bem pouco tempo – inconfessável.

Blind date a três

Estava na faculdade, talvez no meu segundo ano, e tinha como telemóvel um Mimo cinzento. (Artefacto da Pré-história das comunicações móveis, bem sei, a que se juntam, nas minhas memórias, os outrora todo-poderosos Nokia e os Motorola).

Nesses tempos, havia limite de envio de sms grátis, que a malta reforçava a partir da web. Não me lembro bem como funcionava, mas sei que era tão simples quanto popular. Por isso, sempre que tinha acesso à internet aproveitava para poupar o crédito de mensagens incluído no tarifário da operadora.

Faço o enquadramento para ilustrar como vivia o "virtual" antes das redes sociais.

Nesse clima de quase offline, há uma tarde em que atendo um telefonema de um número identificado, porém desconhecido.

Do outro lado, entre risos, falava um tipo que dizia ter inventado o meu número. Comecei por achar que era tanga, mas a conversa lá foi fluindo. Trocámos cidades (ele vivia no Algarve): amores (ele com namorada, eu sem namorado);

idades (nenhuma diferença relevante); fases da vida (eu na faculdade, ele em experiências de vida militar); e combinámos beber um café quando ele estivesse em Lisboa.

Continuámos a trocar mensagens e telefonemas, sem qualquer outro registo que não o de uma amizade em construção, e, às tantas, ele partilhou que de dia X a dia Y estaria pela capital no quartel Z.

Estava encontrado o momento para o tal café, ao qual se iria juntar um amigo, aparentemente animado com uma espécie de blind date a três.

Até ao encontro, que aconteceu nos pastéis de Belém, eu era uma pessoa divertida e inteligente que valia a pena conhecer. 

A partir do confronto com a minha cor, deixei de ser pessoa.

Talvez o meu amigo por correspondência tenha ficado surpreendido quando me viu, mas não manifestou nada nesse sentido. E da mesma forma que conversávamos ao telefone, e trocávamos sms, estivemos o tempo de um lanche a tagarelar.

Na mesma mesa, em silêncio, de trombas, com toda uma linguagem corporal hostil, o amigo não conseguiu disfarçar – por um segundo que fosse – o quão contrariado ficou ao me ver.

Passe o tempo que passar, nunca me esquecerei daquela expressão. Não foi ódio que senti. Não foi desilusão ou desinteresse. Foi nojo de mim. 

Hoje consigo ter pena dele.

-Sobre a Paula Cardoso-

Fundadora da comunidade digital “Afrolink”, que visibiliza profissionais africanos e afrodescendentes residentes em Portugal ou com ligações ao país, é também autora da série de livros infantis “Força Africana”, projetos desenvolvidos para promover uma maior representatividade negra na sociedade portuguesa. Com o mesmo propósito, faz parte da equipa do talk-show online “O Lado Negro da Força”, e apresenta a segunda temporada do “Black Excellence Talk Series”, formato transmitido na RTP África. Integra ainda o Fórum dos Cidadãos, que visa contribuir para revigorar a democracia portuguesa, bem como o programa de mentoria HeforShe Lisboa. É natural de Moçambique, licenciou-se em Relações Internacionais e trabalhou como jornalista durante 17 anos, percurso iniciado na revista Visão. Assina a crónica “Mutuacção” no Setenta e Quatro, projecto digital de jornalismo de investigação, e pertence à equipa de produção de conteúdos do programa de televisão Jantar Indiscreto.

Texto de Paula Cardoso
As posições expressas pelas pessoas que escrevem as colunas de opinião são apenas da sua própria responsabilidade.

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