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Noura Erakat: “É do interesse de muitos países apoiar o projeto israelita, mas não porque se preocupem com a vida dos judeus”

Apesar de acreditar que os portugueses, devido à sua história colonial e esclavagista, simpatizam com a causa palestiniana, a advogada de direitos humanitários, professora e ativista palestino-americana, defende que, em Portugal, ainda prevalece uma visão sionista relativamente a esta comunidade. Face ao agravamento da questão israelo-palestiniana desde os ataques do dia 7 de outubro, o Gerador publica a entrevista com Noura Erakat, realizada no verão, em torno do conflito que já dura mais de sete décadas.

Texto de Mariana Moniz

Noura Erakat. Créditos: Bárbara Monteiro | GERADOR

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*Entrevista original em inglês com tradução de Mariana Moniz.

Filha de emigrantes palestinianos, Noura Erakat cresceu na Califórnia, São Francisco, nos Estados Unidos da América. Viveu grande parte da sua infância numa comunidade de refugiados, admitindo que mal conheceu “pessoas brancas” e que “não cresceu com a ideia de que era menos do que os outros”.

Visitou a Palestina, pela primeira vez, com sete anos. A segunda, com catorze. Ao longo do tempo, foi percebendo que o seu maior obstáculo era a sua família, pois esta tinha medo de se inserir na sociedade americana. Além disso, a pretexto de a protegerem por ser mulher, criaram-lhe diversas limitações. De acordo com as palavras de Noura, as suas primeiras lutas foram com a família e com as restrições que enfrentou na sua realidade.

Foi esse sentimento de injustiça que a levou a tentar perceber de onde vinham determinados preconceitos. Começou por se questionar por que motivo, enquanto mulher, Noura “tinha de ter todas as responsabilidades e nenhum dos privilégios”.

Com o objetivo de se tornar uma ativista pelos direitos das mulheres, ingressou na Universidade de Berkeley em 2002. Três anos depois, estudou na Faculdade de Direito da mesma universidade, pois acreditava que se fosse advogada iria conseguir “resolver todos os problemas da sociedade”. Atualmente, é professora associada no departamento de Estudos Africanos e no Programa de Justiça Criminal da Universidade de Rutgers.

A sua pesquisa incide, maioritariamente, no direito humanitário, nos direitos dos refugiados, no direito de segurança nacional e na teoria da crítica racial. Atualmente, tem vindo a aprofundar a questão do antissemitismo na Europa, para melhor compreender a questão da Palestina.

A sua obra Justice for some: Law as Politics in the Question of Palestine (Stanford University Press, abril de 2019) – na qual Noura analisou as conjunturas que explicam a luta da Palestina pela liberdade – foi distinguida com o Palestine Book Awards e com a medalha de bronze no Independent Publishers in Current Events/Foreign Affairs.

Encontrava-se em Portugal há cerca de uma semana, quando a entrevistámos no Palácio da Cidadela de Cascais, em julho. Noura estava a realizar uma residência artística literária internacional. Tratava-se da sua terceira visita a Portugal, tendo sido a primeira em 2021.

Em entrevista ao Gerador, a escritora e ativista falou do conflito israelo-palestiniano e do seu contexto histórico, social e político. Falou de Direito, das consequências do antissemitismo e das causas ideológicas que estão por detrás do posicionamento dos países ocidentais relativamente a esta crise no Médio Oriente. Além disso, fez referência ao surgimento do regime de apartheid israelita, um termo que a Amnistia Internacional assumiu pela primeira vez, após os ataques de 7 de outubro.

Pedimos ainda a Noura Erakat que se pronunciasse relativamente aos confrontos que ocorreram recentemente em Gaza. Em resposta, deixou-nos esta mensagem:

“A crise atual que está a acontecer na Palestina e em Israel, é uma dura advertência de que tem de existir uma solução duradoura, que envolva levantar o cerco terrestre, acabar com a ocupação e desmantelar o apartheid de Israel. O que este episódio nos mostrou, foi que manter os palestinianos numa prisão ao ar livre – na esperança de que eles possam ser controlados – não é viável. Com este acontecimento, fomos relembrados de que, das duas, uma: ou vamos viver e sobreviver juntos, ou vamos todos sofrer e morrer juntos. Deixem-nos escolher a primeira opção”.

Noura Erakat. Créditos: Bárbara Monteiro | GERADOR

Quão importante é realizares esta residência artística aqui, em Portugal?

É muito importante. Eu represento uma causa. Represento um grupo de pessoas que tem sido diabolizado [os palestinianos], visto como a fonte do seu próprio mal, mas também como a principal causa do problema. Por essa razão, para mim, é mesmo relevante que eu seja capaz de lutar contra todas essas ideias preconcebidas e acredito que até a minha presença aqui possa ajudar.

Mas também tens usado este espaço, em Cascais, para conseguires trabalhar nos teus futuros projetos?

Sim e tenho sido muito bem tratada. Acima de tudo, deram-me um espaço que me permite pensar e trabalhar no meu segundo livro. Não estou cá enquanto ativista, mas sim enquanto escritora, por isso tenho andado a esconder-me um pouco [risos]. E é a primeira vez que estou cá em Portugal durante tanto tempo. Desta vez, estou cá para pesquisar, para escrever, diria, até, para fugir um pouco do mundo. Estou a aproveitar a beleza da solidão, porque acabo por nunca estar sozinha.

O que te fez estudar o conflito israelo-palestiniano?

Publicamente, eu tenho andado a estudar este conflito desde que tinha 18 anos. Eu interesso-me por este tema, porque procuro justiça para todas as pessoas.

Não sei se estás familiarizada com isto, mas, durante os anos de 2020 e 2021, várias organizações de defesa da herança cultural e direito humanitário – bem como organizações de defesa dos direitos israelitas – apresentaram alguns relatórios, concluindo que Israel supervisiona um regime de apartheid [segregação racial]. Esta pesquisa é muito, muito significativa e teve, como base, décadas de trabalho realizado por intelectuais e advogados palestinianos. Atualmente, estou a trabalhar o John Reynolds [ator e escritor norte-americano] de forma a levar essa ideia adiante. O nosso problema principal com esses relatórios é que transmitem a ideia de que Israel está a transformar-se num apartheid ou que falhou na criação de um Estado palestiniano. E que essa “falha” significa, agora, que Israel controla uma população que não é considerada sua cidadã, mas que também não é independente. Desta forma, parece que existe um regime racialmente discriminatório.

Nós discordamos [Noura Erakat e John Reynolds]. Na verdade, acreditamos que, fundamentalmente, essa ideia está a defender que o problema é governamental, quando na verdade é um problema ideológico. Por exemplo, a ideologia sionista defende que os judeus têm o direito de estabelecer uma maioria demográfica exclusiva e étnico-nacional independente no território dos palestinianos. Esta equação, por si só, exige que os palestinianos desapareçam para que Israel exista. Desta forma, nós acreditamos que, se apenas falarmos sobre o facto de Israel ser um país discriminatório, estamos a esquecer-nos da ideologia. Isso sim, é discriminatório. Eu quero mostrar como, historicamente, este tem sido o caso e estou a começar por estudar a Europa antissemita.

Noura Erakat. Créditos: Bárbara Monteiro | GERADOR

Então, esse tem sido o cerne da tua pesquisa atual.

Exato. Onde é que o antissemitismo moderno surgiu? Na Europa. E trata-se de um problema europeu que ainda não foi resolvido, porque acabou por se transformar num problema da Palestina, certo? Então, o que é o antissemitismo? Quais são os seus ideais? Por que razão estão as pessoas antissemitas a viver na Europa? O que é que elas não gostam nos judeus enquanto comunidade? Como é que os intelectuais sionistas respondem a esta questão do judaísmo? Como é que isto ficou repleto de tanta controvérsia, que acabou por se tornar no único sionismo que conhecemos hoje? Um sionismo que é racista, colonial, no qual é correto que os palestinianos sejam assassinados ou no qual as suas terras lhes sejam retiradas. Eles são etnicamente expropriados e as suas oportunidades de vida são muito limitadas! Tudo isto é correto, porque é necessário um Estado judaico [diz com ironia]. Obviamente que eu não defendo isto.

Eu luto por todas as pessoas e certamente pelos palestinianos. Na verdade, em grande parte, a minha luta pela Palestina não começou pelo facto de eu ser palestiniana, mas sim, porque queria lutar pelos direitos das mulheres [risos]. A minha ideia inicial era lutar por elas, pelos refugiados, por todas as pessoas! Entretanto, à medida que fui crescendo e comecei a estudar na faculdade, percebi que ninguém falava da Palestina! E eu achei que alguém tinha de o fazer. Sendo assim, as minhas pesquisas não têm que ver com o facto de eu pertencer ou não a essa comunidade, mas sim com o facto de eu acreditar na justiça. A minha crença na liberdade da Palestina é, na verdade, uma crença holística que permite a liberdade de todos.

Foi essa crença na liberdade que te fez querer ser uma advogada de defesa de direito humanitário?

Eu achava que o facto de me tornar advogada iria ajudar [risos]! Mas estava enganada.

Porquê essa afirmação?

Acreditei, ingenuamente, que se recorrêssemos ao Direito, conseguiríamos dar a volta aos problemas políticos. O que eu descobri, obviamente, é que o Direito é política. São inseparáveis. Não consigo lutar por um caso numa sala de tribunal desprendida de todo o contexto político, do racismo ou do colonialismo que está à nossa volta. O Direito e a política estão completamente conectados e eu tenho de ser capaz de as avaliar e gerir ao mesmo tempo. Sim, posso usar o Direito. Mas não posso usá-la enquanto ferramenta pura. Tenho de a usar de uma forma estratégica, como parte de um movimento. Aliás, essa foi a questão que abordei no meu primeiro livro [Justice for some: Law as Politics in the Question of Palestine].

O Direito é uma ferramenta, tal como o jornalismo, o cinema, a fotografia ou até mesmo os nossos discursos. Mas não são a solução para nada. Não existe uma poção mágica que vá resolver o problema. Podemos ter uma visão e um compromisso. Podemos tentar sobreviver e criar o mundo que desejamos. Podemos resistir. E eu estou convencida de que não existe nenhum regime opressivo que sobreviva. É impossível. Eles sobrevivem se forem inteligentes. Os Estados Unidos sobreviveram, certo? Mas não conseguiram manter a escravatura ou as leis de Jim Crow [leis estatais que impunham a segregação racial no sul dos Estados Unidos da América durante os séculos XIX e XX]. Agora tentam fazê-lo de outras formas, mas vê só a quantidade de protestos que tem havido. A opressão não é viável e Israel pratica uma opressão total e explícita. Os israelitas são a causa do seu próprio mal. Eles torpedearam os estados palestinianos sozinhos. Eles sempre falaram em supremacia judaica, migraram para regiões já ocupadas e impuseram a sua jurisdição civil e militar, anexando esses territórios. Os israelitas têm mantido a Faixa de Gaza [cidade palestiniana] sob cerco terrestre e bloqueio naval desde 2006, bombardeando-a sistematicamente com armas tecnologicamente avançadas. Para mim, é inacreditável que as pessoas assistam a isto, mas, a partir do momento em que ouvem a palavra Hamas, já considerem esses ataques israelitas aceitáveis ou de pura autodefesa. Não. Isto são crimes contra a humanidade.

Noura Erakat. Créditos: Bárbara Monteiro | GERADOR

És da opinião de que os sistemas judiciais federais – nomeadamente os dos Estados Unidos da América – são tendencialmente preconceituosos para com os palestinianos. Como é que chegaste a essa conclusão?

Após trabalhar enquanto advogada durante sete anos, reingressei na faculdade para obter respostas sobre a relação que existe entre o Direito e o Poder. Tirei um mestrado em Direito de Segurança Nacional e ainda outro em Ensino Jurídico. Atualmente, sou professora, não pratico advocacia. Tomei essa decisão, pois quis responder a determinadas perguntas. Como funciona a relação entre o Direito e o Poder? O que é que essa relação nos diz acerca da luta pela liberdade da Palestina? No meu livro, apresentei uma pesquisa de 100 anos de história – entre 1917 e 2017 – e provei que, ao longo desse período, o Direito tem sido sempre usado em prol dos israelitas. Basicamente, desenhei uma linha cronológica e dividi-a em cinco conjunturas críticas. Estas, por sua vez, serviram para analisar os momentos-chave nos quais o Direito teve influência e moldou a nossa maneira de pensar este conflito. Um dos debates que surgiu entre os críticos de Teoria Legal, relacionou-se com a questão: será que Direito é mesmo Direito se não tiver o poder de punir e de regular? Obviamente que, no contexto da Palestina, o Direito não está a punir nem a regular nada [diz com ironia]. Então, alguns críticos defendem que, na verdade, [as leis israelitas] não se tratam de Direito. Eu não penso assim. Claro que é Direito! Mesmo que não esteja a regular comportamentos de forma explícita, ajuda a construir certas ideias e a moldar a ordem pública.

Num dos capítulos do livro, falo da guerra de 1967 [conhecida como a Guerra dos Seis Dias]. Esse conflito resultou no estabelecimento de um novo regime israelita e eu quis provar que, apesar de as pessoas considerarem que Israel viola o Direito e consegue sair impune, também consegue usar as suas próprias leis em seu benefício! Por exemplo, Israel nunca teria conseguido criar empresas sem a Lei da Ocupação [lei que prevê que os territórios palestinianos ocupados estão sob o domínio militar israelita] que, por sua vez, lhes concedeu o direito de construir nessas regiões.

Em suma, nunca iremos ganhar esta guerra numa sala de tribunal. Eu não consigo sequer ganhar enquanto advogada. Posso dizer-vos tudo, posso dar-vos todos os factos. Mas se vocês não conseguirem, espiritualmente, entender a humanidade dos palestinianos e aceitar que existe uma forma de viver no mundo sem que haja o domínio de outro, então não consigo convencer-vos. Vocês podem entender tudo isto e até sentir-se mal pelos palestinianos, mas continuarão a dizer que “está tudo bem” ou que “o Holocausto foi mau e, por isso, precisam de um Estado judaico”. É assim que os europeus pensam, é assim que a União Europeia pensa e é assim que o Governo americano pensa.

E para ti, quais são as razões para a permanência e propagação desse pensamento?

Claramente tem que ver com o capitalismo e com o colonialismo, mas também com os interesses nacionais. É do interesse de muitos países apoiar o projeto israelita, mas não porque se preocupem com a vida dos judeus. Donald Trump, por exemplo, não quer saber da vida dos judeus, mas quer saber de Israel. Há uma diferença. Porquê? Porque os Estados Unidos querem armas, querem ter um sistema de segurança tecnologicamente avançado… no fundo, querem ter acesso ao projeto que Israel está a exportar para o mundo. E isso representa um futuro militar, que se baseia na falta de direitos humanos e no qual apenas sobrevive a supremacia étnico-nacional. É muito assustador! Não só para os palestinianos. Claro que nós iremos pagar o preço mais alto, mas todos deveriam ter medo deste futuro.

Noura Erakat. Créditos: Bárbara Monteiro | GERADOR

Não acho que os supremacistas brancos americanos considerem Israel um país aliado. Eles gostam é da ideia de que possa haver uma supremacia branca na Europa, onde não querem mais imigrantes – a não ser que sejam ucranianos, porque têm olhos azuis e cabelo loiro, certo? Esta ideia também se reflete em Israel, porque é sempre mais fácil criticar os outros países. Mas, a partir do momento em que se afirma que são os judeus que querem isto, parece que o nosso pensamento crítico cai por terra. E isso pode justificar-se pelo facto de nunca termos pensado que o Holocausto foi um acontecimento que resultou da supremacia cristã europeia, da supremacia branca e de uma história colonial que marcou os povos indígenas em todo o mundo. Nós nunca examinamos estas heranças. Não examinamos a expulsão dos judeus da Andaluzia ou até de Portugal, por exemplo. Ao invés disso, achamos que existiu apenas um único homem [refere-se a Adolf Hitler], que era muito mau, que apareceu do nada e que decidiu matar judeus. Assim é fácil! Mas isso não evidencia, de forma crítica, a ideia de que o conceito nazi veio dos Estados Unidos da América e do seu racismo. Ou que veio das colónias europeias e do seu racismo. O antissemitismo e o genocídio na Europa refletem a história do mundo, e esses nem foram os primeiros holocaustos. Basta pensarmos no apartheid sul-africano ou no comércio transatlântico de escravos.

Sentes que todos esses marcos históricos são esquecidos, ao contrário do que acontece com a Segunda Guerra Mundial?

São esquecidos, porque o Holocausto da Segunda Guerra aconteceu na Europa. Refletiu-se na história europeia. Foi o momento em que vocês pensaram: “Meu Deus, será que somos assim tão horríveis”? Mas depois esquecem-se de que já tinham uma história de colonialismo e de escravatura antes. Isso já não vos fez pensar que eram horríveis? Ainda estamos todos a lutar contra estes regimes coloniais e imperiais que se baseiam na supremacia europeia e na supremacia da civilização ocidental.

Sim, eu represento uma causa difícil. Mas claro que também faço parte deste cenário maior, no qual todos vivemos atualmente! Acontece que, nós, palestinianos, acabamos por representar uma manifestação muito mais grosseira e muito mais explícita desse cenário. Mas pensa nas prisões dos Estados Unidos. Essa manifestação é muito mais subtil, porque as pessoas não veem o que realmente acontece nessas prisões. Não veem a violência, não veem famílias negras a serem separadas, devido aos altos níveis de segurança que existem nos Estados Unidos da América. Por outro lado, as pessoas veem, claramente, o que está a acontecer aos palestinianos e ainda tentam arranjar justificações.

Noura Erakat. Créditos: Bárbara Monteiro | GERADOR

No início de julho, em Jenin [cidade na Cisjordânia], houve um ataque a um campo de refugiados no qual estavam onze mil pessoas. Meio quilómetro quadrado foi destruído com aviões, mísseis, gás lacrimogéneo e escavadoras. Houve soldados que lançaram gás lacrimogéneo em três hospitais palestinianos e dispararam contra jornalistas. A reação internacional foi: “Israel tem o direito de se defender”. A primeira pergunta que um correspondente da BBC [British Broadcasting Corporation, canal de televisão inglês] fez a um amigo meu foi: “Porque é que os palestinianos têm armas nos campos de refugiados?” Ou seja, as pessoas querem saber o que há de errado connosco, enquanto nós é que somos atacados e alvo sistemático de expulsão!

Sinto que cheguei a um ponto em que simplesmente aceitei que o mundo está tão cansado, que já não sabe como falar sobre isto. O mundo só quer fechar os olhos, esperar que os palestinianos desapareçam, para depois seguir com a sua vida. O que as pessoas não entendem, é que esta guerra não é só nossa [dos palestinianos]. Não é algo isolado, mas sim exportado. As armas são exportadas, as ideias supremacistas são exportadas, as formas de vitimização e militarização são exportadas, as leis da guerra são exportadas.

Todas essas questões que evidencias estão, de alguma forma, conectadas à tua pesquisa sobre a teoria crítica racial?

Sim. A minha análise não está enraizada numa só causa nacional. Penso muito na forma como a supremacia branca é nossa inimiga, como o colonialismo é nosso inimigo. E os judeus sofrem com isso! Nos Estados Unidos, em 2018, o atirador que entrou numa sinagoga de Pittsburgh [cidade na Pensilvânia] e matou 13 judeus enquanto estes rezavam era um supremacista branco. É este o perigo que os judeus enfrentam. E é o mesmo perigo que os palestinianos enfrentam ou que os negros, os migrantes ou que os povos indígenas enfrentam. Posto isto, a minha causa está conectada a todas estas lutas. Eu não quero apenas um Estado palestiniano e o resto do mundo em chamas. Qual seria o objetivo disso? E não nos podemos esquecer de que, dentro da própria Palestina, também nos prejudicamos uns aos outros. Eu sou uma mulher que vive numa comunidade patriarcal. Posso até vir a ter um Estado, mas ainda viverei numa sociedade que me diz como me mexer, o que fazer com o meu corpo, como devo falar, onde posso falar. Então, para mim, não é possível separar nenhuma destas lutas. Os meus estudos estão todos conectados e refletem a forma como eu entendo tanto a questão da Palestina, como a nossa potencial liberdade.

Entrevista a Noura Erakat. Créditos: Bárbara Monteiro | GERADOR

Achas que os cidadãos portugueses compreendem o conflito israelo-palestiniano de uma forma clara?

Não, não acho. Mas penso que os portugueses simpatizam com a causa, devido à sua história colonial e esclavagista. Por essa razão, eu espero que as pessoas em Portugal tenham uma ideia do que se está a passar neste conflito. Sim, vocês podem ter uma grande comunidade de judeus a viver aqui, mas eles também estão a lutar pela sua justiça. Sendo assim, acho que a perspetiva sionista ainda prevalece em Portugal. Não consigo precisar se os portugueses falam muito ou pouco sobre isto, mas, pelo que vejo, subsiste a ideia, preconcebida, de que todos os palestinianos são muçulmanos ou de que todos os muçulmanos são terroristas. Acho que os portugueses ainda não compreendem bem quem são os palestinianos.

E de um modo geral, o que sentes que ainda falta compreender acerca desta guerra?

Fundamentalmente, as pessoas têm de compreender que os palestinianos são uma comunidade com um território no qual querem permanecer. E eles irão continuar a lutar por ele. Mas a sua liberdade está a ser-lhes negada. Essa é a questão fundamental. Os palestinianos recusam-se a desparecer e por isso é que são vistos como uma ameaça. As pessoas têm de perceber que não estamos a ser comandados pelo ódio ou pelas ideologias. Estamos a ser comandados pelo nosso sentido de sobrevivência, pelo nosso amor uns pelos outros e pelo nosso compromisso em permanecer nas nossas terras. Nós também fazemos parte deste mundo. O problema é que somos vistos como sendo demasiado selvagens para nos autogovernarmos ou mesmo para existirmos!

Em Portugal, foi criado o Movimento pelos Direitos do Povo Palestiniano e pela Paz no Médio Oriente (MPPM), uma organização não-governamental. Qual a importância de existirem estes movimentos fora da zona de conflito?

Acho que, como todos os movimentos que vão surgindo, este também quer influenciar as pessoas a questionarem as normas hegemónicas. Por essa razão, acho que é mesmo importante que o MPPM exista. Mais importante ainda, é o facto de esse movimento em específico ser constituído por portugueses, ou seja, torna-se mais fácil para a comunidade palestiniana conectar-se com a cultura portuguesa, com os valores, com a história e com o próprio sistema de Portugal.

Noura Erakat. Créditos: Bárbara Monteiro | GERADOR

Afirmas que “o nosso presente é o culminar das conquistas da sociedade”. Que objetivo esperas atingir quando falas e escreves sobre este conflito?

Bem [suspira]… existe esta ideia de que queremos ser capazes de partilhar a verdade e revelá-la às pessoas. Posto isto, o meu objetivo principal é a educação, a provocação. Não estou aqui para fazer propaganda, mas talvez eu consiga provocar-vos ao ponto de olharem para o vosso interior. O meu silêncio seria sinónimo de rendição. E eu recuso render-me. Não só pelos palestinianos, mas por todos nós. Ultimamente, tenho lutado ao lado das pessoas que pretendem um mundo melhor. Não acredito que este mundo, no qual vivemos atualmente, seja o melhor que possamos ter. O meu objetivo é encorajar outros a ter fé e fazê-los crer que existem boas pessoas.  

E ainda acreditas que a mudança será possível?

A cem por cento. Acredito que a mudança é a única coisa que é inevitável. Tudo muda e nós temos esse poder. Só não conseguiremos trazer uma boa mudança, se continuarmos a viver com medo. Temos de ter coragem e temos de ter fé.

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