Como pode uma pandemia afetar a nossa forma de escutar? E que impacto poderá esta ter sobre os nossos modos de fruir e de criar arte sonora? Novas Cronologias do Som, junta, em Aveiro, artistas e investigadores nacionais e internacionais provenientes diferentes geografias sonoras para um projeto artístico com edição discográfica
Pensar o impacto da pandemia na arte sonora é o mote de partida para o projeto New Chronologies of Sound/Novas Cronologias do Som, que pretende gerar debate, inaugurando-se com a publicação de uma invulgar coleção de peças sonoras baseadas em gravações de campo, fruto de uma encomenda do Teatro Aveirense e da Câmara Municipal de Aveiro à associação Navalha e à sua editora VIC NIC, no âmbito do programa municipal "Cultura em Tempos de (In)Certeza".
Com curadoria de Hugo Branco, diretor artístico da VIC // Aveiro Arts House, o projeto reúne alguns dos artistas e investigadores sonoros mais relevantes desta área, a nível internacional, nacional e local, entre os quais se podem destacar Matthew Herbert (UK), AGF (DE), Lawrence English (AU), Kyoka (JP), Budhaditya Chattopadhyay (IND), Natalia Valencia Zuluaga (CO), Gustavo Costa (PT) ou Diana Combo (PT).
Pensado para formato vinil, CD e digital, o lançamento do projeto terá lugar no próximo dia 12 de junho no GrETUA, em Aveiro, e contará com uma atuação colaborativa dos artistas BJ Nilsen e Diana Combo e Hugo Branco, antecedida por uma mesa redonda com os mesmos interveniente, acompanhados da investigadora Ana Flávia Miguel. O evento conta ainda com um workshop orientado por Gustavo Costa, da Sonoscopia, em tornoda utilização de gravações de campo em contexto artístico.
Novas Cronologias do Som, é por isso uma questão lançada à música do futuro, “Se o “antes” se refere àquilo que temos hoje tendência a identificar com a normalidade, e o durante se refere à atual situação de confinamento, desconfinamento ou reconfinamento (dependendo do contexto), o “depois” insiste ainda - e talvez mais do que nunca -, em se apresentar como enigma absoluto, infinitamente aberto a novas especulações, expectativas e ansiedades. Talvez este conjunto de obras sonoras possa fornecer pistas relevantes para uma reflexão, abraçando uma ampla diversidade de geografias - Amesterdão, Medellín, Nova Iorque, Shizumi, Aveiro e outros lugares - assim como diferentes registos estéticos e latitudes processuais, num espectro que vai desde as paisagens sonoras puras às gravações de campo processadas ou mesmo à utilização mais musical dos sons recolhidos.”, refere a organização.
Na sequência de um apoio da Direção-Geral das Artes e das parcerias estabelecidas com organizações como o MAMM, o INET-md, a MUSA ou o AEJE, o projeto original ramificou-se ainda em outras direções promissoras, tais como uma exposição que se realizará no Museu de Arte Moderna de Medellín, na Colômbia; um banco de sons gratuito, constituído por gravações usadas pelos artistas na composição das suas faixas; e uma seleção de ensaios teóricos intitulada A Collection of Whispers onde se reflete, a partir de uma perspetiva sonora, sobre os impactos que esta pandemia teve na perceção coletiva do tempo.
O Gerador conversou com o responsável do Teatro Aveirense, José Pina, o curador e diretor artístico da VIC NIC, Hugo Branco, e ainda com a artista portuguesa Diana Combo, sobre o que mudou na perceção sobre a música, o que podemos esperar deste evento e como Novas Cronologias do Som pode colocar Aveiro no mapa das práticas experimentais.
Gerador (G.) – Este evento vai criar uma espécie de laboratório da música em Aveiro, qual foi o ponto de partida para criar esta ligação entre as várias entidades?
José Pina (J.P.) – Surgiu através de um convite que foi feito à estrutura artística do projeto para, no âmbito de um programa que a Câmara Municipal de Aveiro desenvolveu em conjunto com Teatro Aveirense, apresentar um projeto que estivesse focado nesta dimensão musical e experimental de pesquisa e trabalho. O convite foi feito em contexto pandémico, tendo sempre uma dimensão que queríamos que fosse para além da realidade de Aveiro. O que nos interessa saber não é só o que as pessoas de Aveiro interpretam, mas também ter uma perspetiva global (partindo do local para o global).
G. – Trazerem uma editora jovem como a VIC NIC é uma forma de aproximar o público de Aveiro, o público internacional e o que se produz em Portugal?
J.P. – Não só. Parte de um primeiro objetivo mais amplo e estratégico, daquilo que são as nossas opções de trabalho e do facto de, em Aveiro, estarmos num processo de capacitação e qualificação constante do que é o nosso sistema cultural e criativo. No âmbito do nosso plano para a cultura, que está em vigor desde 2019 e tem uma perspetiva temporal até 2030, algumas das nossas ações são muito relevantes e, é esse lado da capacitação das nossas estruturas culturais e artísticas, onde este projeto se enquadra perfeitamente. Queremos também mostrar ao país e ao mundo que em Aveiro há pensamento interessante nestas áreas, há capacidade de fazer e de programar a uma escala de relevância e excelência - que achamos que este projeto vai ter.
G. – No que é que a pandemia veio mudar a forma como ouvimos música?
Hugo Branco – A quarentena trouxe-nos algumas situações complicadas, mas também agradáveis, como o som do mundo ter abrandado. Por exemplo, uma vez saí à rua e fui até à rotunda principal da cidade às 15h da tarde. Deitei-me no meio da estrada e não haviam carros, ouvia apenas os carros a quilómetros de distância. Estive deitado a apreciar só o momento, parecia que tinha desaparecido toda a gente do mundo e só restava eu. Embora tenha vindo de uma situação negativa, trouxe alguns momentos de beleza rara e de surpresa. Uma investigação realizada a partir de sismógrafos espalhados pelo mundo para detetar a atividade sísmica confirmou uma queda abrupta nos níveis de som habitualmente gerados pelos humanos, já que estes acabam sempre por registar também a o ruído produzido pela atividade das grandes cidades e indústrias. Quando a Câmara me fez este convite para fazer a curadoria de uma coleção de arte sonora, baseada em gravações de campo, pediram para fazer algo sobre a pandemia, como os artistas sonoros estavam a reagir a isto. Decidimos que não queríamos mais um disco sobre a situação que vivemos, por isso pegámos nas questões da escuta e de como este tempo de pandemia afetou a nossa forma de escutar, mas também de criar. Demos esta volta de ir um pouco para a perceção do tempo, e como a pandemia altera as nossas formas de sentir o tempo. Cada artista convidado aborda esta questão de forma diferente. Eu, por exemplo, só captei o som do vento, em contraste com um som feito a partir dos dispensadores de gel espalhados pela cidade. Consegui contrastar o som da paz e da calma com o som que associamos ao medo.
Hugo Branco ao vivo no Teatro Aveirense | Fotografia de Joana Magalhães
G. – No dia 12 vão discutir também o futuro da música. O que projetas para esse futuro?
H.B – Este projeto não aborda tanto do futuro da música como talvez o do som propriamente dito. Penso que nos foi dada uma boa oportunidade para equacionar uma série de questões no que diz respeito à poluição sonora e à possibilidade de espaços sonoros de liberdade, mas não acredito que no geral a tenhamos aproveitado. Ainda que a audição tenha sido um sentido primordial no desenvolvimento da espécie, a sociedade ocidental sempre deu prevalência à visão, e a audição acaba muitas vezes por ser relegado para último lugar. A arte sonora tem estado desde sempre ligada à ecologia acústica, que estuda a relação dos organismos com o meio ambiente desde uma perspetiva sonora. E a escuta permite muitas vezes detetar fenómenos sociais e ambientais que de outra forma poderiam passar desapercebidos. A partir de um projeto de gravações de campo que desenvolvi anteriormente numa região do México —onde quase toda a linha costeira estava ocupada por resorts eco-chic— apercebi-me que nas traseiras destes resorts havia uma série interminável de geradores a gasolina que, simultaneamente, alimentavam e negavam esse suposto ideal de ecologia. Acabei assim por usar as captações sonoras destes geradores para compor e apresentar um trabalho que refletia sobre essa situação. Teria sido ótimo que o facto do mundo se ter calado um pouco pudesse ter contribuído para uma tomada de consciência e para um maior desejo de escutar, mas penso que ainda temos um longo caminho pela frente.
G. – Porque escolheram trazer artistas internacionais e qual foi o processo de seleção?
H.B – O desafio que nos foi lançado pelo Teatro Aveirense passou exatamente por perceber como artistas sonoros em várias partes do mundo estavam a responder à situação presente, abraçando uma lógica de diversidade ao nível geográfico mas também ao nível das latitudes conceptuais e processuais. Se, por um lado, convidámos criadores como Lawrence English e BJ Nilsen, que desenvolveram trabalhos a partir de gravações de campo em estado mais puro, convidámos também artistas cuja utilização dos sons costuma ser mais processada e sequenciada, como é o caso de Laura Romero, AGF ou Kyoka. Embora trabalhe frequentemente com sons gravado por ela própria (pois faz questão de ter o máximo de controle sobre todas as fases da produção) o trabalho de Kyoka costuma estar mais próximo do techno, por exemplo. Procurámos assim incluir uma grande diversidade no que diz respeito a abordagens criativas e processuais. Ao nível nacional, tivemos o prazer de trabalhar com a Sonoscopia, que se encontra aqui representada pelo diretor artístico Gustavo Costa, e com a Diana Combo, que é uma artista sonora natural de Aveiro.
G. – Esta pode ser uma porta de entrada para que Aveiro comece a ser olhada pela sonoscopia, e também uma rampa de lançamento para os jovens?
H.B – Sem dúvida. Embora durante os últimos anos se tenham já dado os primeiros passos nesse sentido, penso que este projeto poderá contribuir para afirmar Aveiro como uma cidade onde se reflete e experimenta de um ponto de vista sonoro. De resto, desde o início do projeto, as Novas Cronologias do Som têm-se ramificado bastante: a iniciativa começou por ser pensada enquanto coleção de arte sonora e entretanto acabou por se materializar em disco, aproveitando o facto de estarmos a desenvolver o projeto editorial VIC NIC, que é já de si também uma ramificação da associação cultural Navalha, responsável entre outras coisas pela programação cultural da VIC // Aveiro Arts House. Algures entre uma casa-museu, uma guesthouse, uma residência artística e um micro-centro-cultural, durante os últimos anos a VIC tem convidado à cidade artistas de diversas áreas e geografias para desenvolver o seu trabalho e para apresentar concertos, performances audiovisuais, sessões de literatura e workshops. A partir de um apoio da DGArtes, arrancou também uma fase do projeto mais ligada à investigação, e que se manifestará na publicação de uma coleção de ensaios, desenvolvida em colaboração com o INET-md, e um banco de sons que iremos disponibilizar gratuitamente online. O envolvimento do curador colombiano Jorge Barco enquanto consultor do projeto acabou por proporcionar também a realização de uma exposição que terá lugar durante o primeiro trimestre de 2022 no MAMM, e fomos também recentemente convidados a participar no festival argentino de cultura digital +CODE. No que diz respeito aos jovens, o Teatro Aveirense já demonstrou vontade de dar continuidade ao projeto no futuro com um evento de maiores dimensões, o que com certeza envolverá ações de formação, de capacitação e de envolvimento das comunidades locais, incluindo os mais jovens.
Diana Combo - Artista Sonora | Fotografia de: Paulo Alexandre Coelho / Fundação EDP 2018
G. – Como é que a pandemia influenciou, se é que influenciou, o teu processo criativo?
Diana Combo – Sem dúvida, a pandemia influenciou de uma maneira além da "esperada". Estava a trabalhar como programadora de música num teatro em Lisboa e pude continuar a trabalhar em casa (porque continuámos a desenvolver conteúdos digitais e a reunir de forma virtual), o que me deu um certo conforto porque tinha uma atividade remunerada. Isto permitiu manter um espírito de missão e alguma tranquilidade num contexto de muita incerteza. Como não tinha de fazer viagens para Lisboa, fiquei com mais tempo livre e comecei a ter aulas de música online, coisa que não tinha considerado antes porque pensei que este regime não ia servir para aprender desde zero instrumentos quase inexistentes no nosso país. O confinamento levou-me a considerar que esta seria mesmo a única maneira. Comecei a ter aulas de instrumentos (tombak, daf e tanbur), de idiomas (turco e persa) e de canto (música clássica persa, árabe e música tradicional curda). Se a minha perspetiva e abordagem criativas, até então, tinham sido sempre muito intuitivas e experimentais, há um ano que estou a receber formação e isso tem influenciado a minha maneira de criar e, obviamente, que novos instrumentos também me dão outras possibilidades e vão mudando os sabores do que estou a fazer. De certa maneira, a pandemia permitiu que o meu dia fosse sempre criativo. Não só a escuta se foi refinando, como foi marcando a minha maneira de criar, ou de estar disponível para a criatividade. O meu desafio, agora, é abraçar esta espécie de regresso à vida fora de casa sem cortar com a nova rotina criativa.
G. – A forma como as pessoas ouvem música também mudou, têm mais tempo para escutar?
D.C. – Eu não posso falar por toda a gente, e nesta altura é difícil dizer que a pandemia veio transformar-nos a nível coletivo, porque acho que nos esquecemos muito facilmente de grandes conquistas que podem ter acontecido, como o facto de nos apercebermos da poluição sonora à nossa volta. Passei recentemente uns dias em Lisboa, onde morei, e, agora que estou numa cidade muito mais tranquila, não sei como consegui viver lá tanto tempo. Ou seja, a suspensão sonora que pode ter acontecido durante períodos de confinamento, é um episódio passado. Rapidamente se regressou à “anormalidade”. Acredito que ao nível da escuta criativa certas coisas foram alcançadas, e conquistadas, mas penso que apenas uma minoria tem o privilégio (as condições e a vontade) para pensar, fazer e concretizar uma transformação que é mais permanente.
G. – Como vês este evento para a cidade de Aveiro?
D.C. – O que é específico neste evento, a meu ver, é a variedade de geografias e de propostas de reflexão, e de tal acontecer na cidade onde nasci - uma cidade que parece não acompanhar culturalmente os tempos que correm. Aveiro é uma cidade que parece viver bem com pouca oferta cultural e alternativa. No entanto, a VIC, que pensa localmente, e ao mesmo tempo, ao nível nacional e mais global ainda, tem feito um contraponto ao que acabei de referir. Há um lado muito punk na VIC, e, ao mesmo tempo que tem uma maneira muito própria de se sustentar, consegue estabelecer bons contactos e parcerias que permitem que estes eventos aconteçam. É um trabalho muito refinado o que se faz na VIC, e penso ainda na maneira como somos (artistas, amigos, hóspedes) acolhidos e tratados. É muito especial. Um evento como este e outros que a VIC tem organizado permite colocar Aveiro no mapa das práticas experimentais.
G. – O que pensaste criar quando o projeto te lançou este desafio?
D.C. – Estavam duas coisas em cima da mesa e acabei por fazer uma outra. A ideia de trabalhar com gravações de campo feitas em Aveiro, que me seriam sugeridas, acabou por não se realizar. A proposta de criar algo novo, fruto do impacto do cenário pandémico, levou-me a reflectir sobre a minha prática em torno das gravações de campo e a fazer uma viagem ao meu arquivo até encontrar uma peça que representa o sentimento de suspensão que estava a experimentar. E então pensei que este contexto era ideal para publicar uma peça pela qual tenho muito carinho. Falei com o Hugo sobre o facto da pandemia nos levar a regressar aos arquivos e a reflectir sobre o que tínhamos vindo a fazer e, especialmente, sobre o que gostaríamos de poder vir a fazer. A peça Mosso, poco mosso, quasi calmo é composta por gravações de címbalos montados numa espécie de varanda-quintal do Ex Cinema Mele Aperto, um cinema desativado em frente ao Mar Mediterrâneo em Pizzo (Calábria, Itália), com a ideia de "recolher" o ambiente e as suas reflexões, a própria arquitetura do lugar e a sua paisagem. As gravações foram feitas por mim e pelo John Grzinich, que usou microfones construídos por ele.
Texto de Patrícia Nogueira
Fotografia da cortesia do evento
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