Afinal, que rendimentos recebem os artistas musicais e as editoras das plataformas de streaming? É isso que a Associação Profissional de Músicos Artistas e Editores Independentes em Portugal (AMAEI) procura esclarecer num vídeo publicado recentemente. E perante o atual cenário, Nuno Saraiva, presidente dessa entidade, adianta que não é preciso reinventar a roda e criar novos direitos digitais para os artistas. Antes, é necessário transpor com sucesso a diretiva europeia que se debruça sobre o mercado único digital, sublinha.
Em entrevista por telefone, o responsável fala ainda sobre as mudanças que a indústria em questão tem registado, a internacionalização dos artistas portugueses e o futuro da música, bem como sobre o chamado value gap entre as diferentes plataformas.
Gerador (G.) – De que modo mudou a indústria da música com o streaming?
Nuno Saraiva (N. S.) – Se voltarmos ao início da era digital, quando apareceram os serviços de partilha de ficheiros, a livre partilha de ficheiros foi vista pela indústria como pirataria. Para mim, nunca o foi. Pirataria é quando alguém copia algo com propósitos comerciais, isto é, para vender de forma ilegal. Para mim, a partilha de ficheiros foi um desenvolvimento tecnológico natural, que permitia ao público partilhar ficheiros e ouvir música gratuitamente. A indústria lutou, de forma contraproducente, contra a partilha de ficheiros e só se começou a habituar ao digital, quando apareceu o iTunes da Apple, que, na altura, ainda assentava no modelo da venda. Neste caso, [vendiam-se] ficheiros MP3. Portanto, aí a indústria começou a perceber que, afinal, o digital não era uma coisa completamente má. A indústria só regressou ao crescimento e ao lucro não com os downloads, mas como o modelo de streaming, que assenta noutro conceito que não a venda: o market share. Ou seja, todos, todos os meses, as plataformas rendem um determinado valor e distribuem esse valor por toda a música que é ouvida neste mês. Esse modelo de market share veio mudar a indústria e está agora sobreposto ao modelo das vendas.
G. – E o que é que isso implica, na prática, para a indústria e para os artistas?
N. S. – As vendas focavam-se mais nas edições novas e na promoção de cada nova edição. Os discos iam para as lojas e as pessoas compravam-nos naquela semana. O market share não é bem a mesma coisa, porque tem todo o catálogo e todo o portefólio disponíveis sempre e em competição com as novas edições. Provavelmente, as pessoas até ouvem mais [o catálogo antigo] do que as novas edições.
G. – Recentemente, publicaram um vídeo que explica como funciona este modelo de market share.
N. S – O vídeo foi feito em resposta a um vídeo que a GDA [Gestão dos Direitos dos Artistas] publicou, com números factualmente errados sobre o streaming ou por falta de entendimento ou por uma má leitura dos números que vieram de Inglaterra. A diretiva do mercado único digital já é conhecida há sete anos, mas o Parlamento inglês não quis ir atrás dela, num cenário pós-Brexit, por razões políticas, porque teriam de admitir que, afinal, a Europa faz as coisas bem-feitas. O Parlamento inglês lançou, portanto, uma série de audiências, no âmbito das quais foram entrevistadas algumas pessoas que sabiam do que estavam a falar e outras que não. Para nos queixarmos de algo, devemos saber, pelo menos, como funciona.
G. – Mas o mundo do streaming ainda é um mistério até para os artistas?
N. S – O vídeo da GDA fala numa distribuição [da remuneração] errada. Primeiro, ignora os autores e compositores, que recebem cerca de 15%. Diz que os artistas só recebem 10%, o que está errado. Os artistas estão sujeitos aos contratos, que assinam com as editoras ou, se for um artista autoeditado, recebe o bolo todo. Por isso, não faz sentido nenhum estar a reinventar a roda com novos direitos para os artistas, porque os artistas já têm esses direitos. Era necessário a AMAEI fazer um vídeo a explicar os números reais do streaming. O streaming foi o mecanismo através do qual, em substituição do modelo das vendas, se restituiu o crescimento do lucro em toda a indústria da música, com o modelo de market share. Não faz sentido estar a criticar uma coisa que “salvou” a indústria da música, no início do digital, quando ninguém sabia qual seria o modelo de negócio.
G. – Há diferenças entre os valores pagos pelas várias plataformas e a AMAEI diz que tal é uma injustiça. Porquê? Não é apenas o mercado a funcionar?
N. S – É essa a questão mais importante. As plataformas como o Spotify e a Apple, para licenciar os conteúdos, sentam-se à mesa com os titulares de direitos (sejam os três grandes ou, no setor independente, a Merlin). Mas existem também certas plataformas que, para além da distribuição da música, também contam com uploads dos utilizadores, como o YouTube. O YouTube não tem obrigação legal de sentar-se à mesa com os titulares de direitos e negociar [a remuneração dos] vídeos que são carregados pelos utilizadores. Isso é desonesto. O user generated content, se não for pago de acordo com a justiça, gera-se um value gap. Dependendo do país, o valor [pago a quem faz uploads para o YouTube] pode ser nove vezes inferior ao do Spotify.
G. – Portanto, o que defendem não é uma uniformização do mercado, mas, antes, abertura para negociar.
N. S – Exatamente e daí ser tão importante a transposição da [referida] diretiva europeia. A diretiva só diz isso, isto é, que a plataforma tem de negociar quer os conteúdos oficiais, quer conteúdos user generated. A diretiva prevê também a exclusão [desse dever] de novas plataformas de streaming e startups, que queiram montar o seu negócio. A diretiva está muito bem pensada. Apresenta um quadro equilibrado para resolver o value gap e para que as pessoas tenham mais acesso e mais opções de serviços de streaming. Da mesma forma que o artista pode escolher a sua distribuidora digital, o público também pode escolher onde é que prefere ouvir música, de modo que não haja uma concentração, por exemplo, no YouTube. Portanto, é preciso sentar as partes à mesa para negociarem em boa fé.
G. – Há já países que transpuseram esta diretiva? Tem alguma explicação para Portugal não o ter feito?
N. S – Houve uma proposta de lei no ano passado, e todas as partes estavam de acordo. Foi até bem vista pela GDA. A única coisa que pode ter atrasado o processo foi [termos ficado] com um Governo de gestão [após o chumbo do Orçamento do Estado para 2022]. Se calhar, o Governo de gestão preferiu não avançar. A meu ver, foi um erro. Poderia ter avançado. Depois, meteram-se as eleições e agora temos um novo ministro da Cultura. Portanto, espero que [a transposição aconteça] em breve.
G. – Disse que não há qualquer necessidade de criar novos direitos exclusivos digitais para os artistas. Como é que isso afetaria os artistas?
N. S – Se olharmos para o bolo do market share, este não cresce só por causa de inventarmos novos direitos. O bolo é o mesmo, mas teria de ser repartido de forma diferente. Essa repartição diferente, havendo novos direitos, seria, sobretudo, danosa não para as plataformas, mas para a indústria fonográfica, cujos contratos deixariam de fazer sentido, porque foram negociados antes. Ao serem renegociados, as editoras receberiam menos, o que significa que os artistas que têm contratos com as editoras receberiam menos e os artistas autoeditados também receberiam menos, porque esses novos direitos seriam cobrados diretamente pela GDA, como é cobrado às rádios. Ora, o que é cobrado às rádios é um valor muito inferior àquilo que já foi negociado pela Merlim e pelas três multinacionais com as plataformas. Estaríamos a deitar fora o bebé com a água do banho. Se já temos dez anos de crescimento no streaming, criar um novo direito não faz sentido. O setor independente seria o que mais sofreria com este tipo de direito. Os artistas, que têm os royalties acordados com as multinacionais, também iriam receber menos, porque as próprias multinacionais iriam receber menos, mas esses iriam sofrer menos do que os artistas independentes, que são os que têm maior usufruto do streaming.
G. – A AMAEI diz também que é preciso fazer crescer o número de subscritores da música em streaming. Como sugerem fazer isso?
N. S – Temos uma população envelhecida e que provavelmente não está online, [o que resulta] numa taxa reduzida de utilizadores premium. Além disso, temos uma população reduzida. Portanto, por um lado, temos de formar as pessoas para saberem estar online e, por outro, temos de internacionalizar a música portuguesa. Se não conseguirmos chegar a novos públicos em mercados maiores, o market share que temos há de ser sempre limitado. Em cidades com muita população, como São Paulo, quando uma música se torna um êxito local, o algoritmo impulsiona essa música para outros mercados e ouvintes. Isso não acontece com a música portuguesa, porque temos poucas pessoas a ouvir as coisas boas que se fazem por cá. Daí termos de encontrar formas de internacionalizar a música portuguesa.
G. – E o que é que é preciso para que tal aconteça?
N. S – Construindo mecanismos de apoio ao marketing digital e à promoção para que a música possa ser ouvida noutras paragens e noutros mercados maiores. Temos um novo ministro da Cultura. Espero que sejam pensados mais apoios, como por exemplo tem a Fundação GDA. A GDA é quem melhor trabalha os apoios aos artistas e à sua internacionalização. Faz um trabalho incrível. Não tem havido uma preocupação do Estado em relação à internacionalização da música e deveria haver.
G. – Como vê o futuro do streaming? Quais são os principais desafios e oportunidades?
N. S – Assumindo que o maior número possível de países da Europa adota a diretiva como deve ser, sem inventar novos direitos – porque isso é perigoso e pode deitar tudo a perder –, e que as plataformas se sentam à mesa, terão de ser feitas inevitavelmente algumas afinações ao streaming e ao futuro da música. Por exemplo, quando alguém está a ouvir uma música, só conta se chegar ao segundo 30, mas na música clássica podemos estar a ouvir uma peça que dura uma hora. Hoje, esse artista só recebe uma vez. Outra coisa que está a ser muito debatida é a questão da divisão. Em vez de o bolo ser dividido por todas as músicas que são ouvidas, utilizar filtros user centric, ou seja, o que é pago no premium ser distribuído só pelas músicas que aquele utilizador concreto ouviu. Não sei se isso é bom ou mau. Temo que isso possa ser ainda mais danoso para o setor da música independente. Há também quem diga que o modelo atual favorece demasiado o repertório antigo. São tudo sugestões, que podem e devem ser debatidas. Mais, o formato através do qual ouvimos música muda de 20 em 20 anos ou de dez em dez anos. Provavelmente, esse ciclo está a acelerar. Não sei se daqui a cinco anos já não há ninguém no Spotify e andamos todos a ouvir música na realidade virtual do metaverso. Tudo isto pode mudar de forma radical. Há que manter a indústria da música unida, porque realmente é uma luta entre David e Golias com as grandes plataformas.