Perdi o comando.
Procurei no sofá, entre o assento e o apoio do braço. Levantei a almofada do encosto.
Virei as outras almofadas. Meti as mãos nos interstícios todos que encontrei no móvel. Descobri que os espaços mais seguros, aqueles onde repousamos o corpo e a alma, podem ter em si armadilhas inesperadas. Teria o comando sido absorvido num microburaco negro localizado na geografia do consolo?
O comando não estava no meu lugar de refúgio, que organiza a sala. Não faz sentido, pois costumo tê-lo displicentemente abandonado na zona de conforto.
Levantei-me. O comando deve ter ficado por baixo da televisão. Imediatamente por baixo não estava. Mas podia estar na prateleira inferior. Pus-me de cócoras, à procura. Encontrei dois ou três objetos que não via há algum tempo, mas o comando não estava lá. Nem por baixo da estante.
Comecei a sentir uma vaga inquietação. Costumo deixar o comando em lugares óbvios. O quotidiano merece rotinas, as rotinas fazem-nos ganhar tempo e oferecem segurança, ou pelo menos assim se pensa. Se não estava no sofá nem ao pé da televisão, onde poderia estar?
Posso ter-me levantado com ele na mão para ir fazer qualquer tarefa não relacionada. Levei-o comigo, deambulei, pousei-o em sítio improvável. Mas porque faria uma coisa dessas?
Bem, não se pode excluir a distração dos passos rotineiros. Decidi escrutinar a sala. Não estava em cima da mesa. Nas cadeiras. Nas prateleiras. No rebordo das janelas. Por baixo dos móveis? Também não? Ridículo. Porque sairia da sala com o comando?
Não é impossível, claro, se calhar tinha de ir à cozinha, ao quarto ou assim, e tinha o comando na mão quando me lembrei que tinha outra coisa qualquer para fazer. Afinal, nem sempre, quando se tem o comando na mão, se faz o que se quer fazer com o comando.
Podia ter ido buscar um copo de água à cozinha? Pois na cozinha também não estava. Nem na bancada, nem por cima de coisa nenhuma. Talvez na casa de banho. Também não. No quarto, em cima da cama? Mas não tenho televisão no quarto. Se calhar fui ao quarto buscar qualquer coisa. Mas não. Idem no escritório. Na mesa do computador, na estante dos livros.
Percebi, por alguma razão que me escapava, o comando não só tinha desaparecido do universo inteiro do sofá como não se mostrava nos territórios conhecidos do resto da casa.
Talvez estivesse tão distraído que o tivesse levado comigo no momento em que fui procurar qualquer coisa dentro de uma gaveta e o metesse lá dentro?
Decidi fazer uma segunda pesquisa domiciliária, agora mais sistemática e exaustiva. Abri, uma por uma, cada gaveta. Passei das gavetas aos armários e dentro destes, às prateleiras. Uma hora mais tarde, tive de reconhecer a minha crescente perplexidade.
É que me lembro, sem dúvida possível: eu tinha o comando há bocado. Com toda a autoridade, mudei de canal. Aumentei e diminuí o som. Fiz zapping. Consultei o teletexto e as diversas funções.
Concluí, a partir desta experiência, que não é boa ideia ter só um comando. Eu só tenho (tinha) este comando. Agora não sei onde está. E com a certeza de não ter saído para a rua a passeá-lo.
O comando não se passeia. Guarda-se bem guardadinho no quente do espaço onde se habita.
Agora, fiquei sem ele.
É muito estranho perder o comando. Não consigo fazer zapping com as mãos vazias. E afinal de contas, é tão bom poder mudar de canal quando nos apetece.
-Sobre Jorge Barreto Xavier-
Nasceu em Goa, Índia. Formação em Direito, Gestão das Artes, Ciência Política e Política Públicas. É professor convidado do ISCTE-IUL e diretor municipal de desenvolvimento social, educação e cultura da Câmara Municipal de Oeiras. Foi secretário de Estado da Cultura, diretor-geral das Artes, vereador da Cultura, coordenador da comissão interministerial Educação-Cultura, diretor da bienal de jovens criadores da Europa e do Mediterrâneo. Foi fundador do Clube Português de Artes e Ideias, do Lugar Comum – centro de experimentação artística, da bienal de jovens criadores dos países lusófonos, da MARE, rede de centros culturais do Mediterrâneo. Foi perito da agência europeia de Educação, Audiovisual e Cultura, consultor da Reitoria da Universidade de Lisboa, do Centro Cultural de Belém, da Fundação Calouste Gulbenkian, do ACIDI, da Casa Pia de Lisboa, do Intelligence on Culture, de Copenhaga, Capital Europeia da Cultura. Foi diretor e membro de diversas redes europeias e nacionais na área da Educação e da Cultura. Tem diversos livros e capítulos de livros publicados.