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O Crocodilo ou o Extraordinário Acontecimento Irrelevante

“Esta não é uma estória para corações fracos”, assim o diz Miguel Raposo quando veste…

Texto de Andreia Monteiro

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“Esta não é uma estória para corações fracos”, assim o diz Miguel Raposo quando veste a pele do narrador no espetáculo O Crocodilo ou o Extraordinário Acontecimento Irrelevante, um texto de Rui Neto a partir de Dostoiévski. O espetáculo, interpretado por Ana Guiomar, Miguel Raposo, Miguel Sopas e Rui Melo estará em cena no São Luiz Teatro Municipal entre 31 de janeiro e 9 de fevereiro e conta a estória de Ivan, que fora devorado por um crocodilo albino, mas que sobrevive dentro do estômago do animal, “que consegue esmagar o crânio de um bovino com uma só dentada”.

O Crocodilo ou O Extraordinário Acontecimento Irrelevante surge de uma reescrita do conto KroKodil, de Dostoiévski, por Rui Neto, que nos explica que encontrou o conto por acaso, numa altura em que queria escrever alguma coisa, mas ainda não tinha descoberto o quê. Sentia alguma urgência em encenar algo e viu refletidas neste conto as condições imediatas para o levar a cena, “porque não tinha muitas personagens, a estória era simples, e tinha alguns elementos que me interessam, como o seu lado mais surreal e cómico.”

A atualidade do conto deste autor e a sua pertinência política, económica e social, encontra no panorama atual português um paralelo perfeito. Inspirado pelo grotesco do animal que engole o Homem, não deixa de ilustrar o maquinismo que identifica na nossa sociedade. “Achei interessante tratar o crocodilo como uma máquina. Se calhar são as máquinas que estão à nossa volta, sejam elas informatizadas, ou o que quer que seja, mas estamos rodeados de máquinas. Se calhar, esses são os nossos crocodilos contemporâneos – as máquinas. Esta coisa parece que nos vai toldando, limitando, aprisionando e expropriando daquilo que, se calhar, temos de mais bonito: os sonhos, a simplicidade e o encontro com o outro.”

Para além das máquinas que nos rodeiam, salienta-se também a crise de valores que o maquinismo em nós acentua, revelando-se numa dificuldade em definir prioridades. “Por exemplo, agora toda a gente segue o ovo que superou o número de gostos no Instagram e pergunto-me qual é a importância disso e como é que isso joga com a minha linha de valores e prioridades. Onde é que eu estou? A seguir o ovo? – pergunta rindo –, parece que reduz o teu ponto de vista sobre as coisas.”

Não deixa, no entanto de retratar o papel do sonhador, que “vive na ilusão de que pode viver na barriga do bicho”, e que é simultaneamente pautado pelo seu desejo em ver o mundo, novas cores e formas de pensar e que canta até lhe faltar o ar, mesmo que o seu amor, Helena, não consiga entendê-lo e se contente com viagens separadas para a lua de mel. “É o querer manter os seus sonhos mesmo num local inóspito, o que é um pouco a condição do artista. Também me descobri nesta personagem (Ivan) por esse lado.”

O trabalho por detrás deste espetáculo remonta a uma residência artística, há três anos. Foi nessa altura que Rui fechou o texto e se reuniu com os atores para uma primeira leitura. Porém, o trabalho de montar o espetáculo só começou por volta de novembro de 2018.

É um projeto mutante envolto pelo ambiente russo da escrita de Dostoiévski, o universo “estrambólico” e criatividade de Rui Neto que se espelha numa escrita pensada especificamente para cada ator e um espaço sonoro, criado por Cristóvão Campos, que se concretiza com o acordeão de Dinis Oliveira, conjugado com o canto e música ao vivo.

A primeira coisa que Rui tem em conta quando escreve a pensar nos atores que vão interpretar os diferentes papéis é as suas vozes. Mas, acima de tudo, gosta sempre de cozinhar um desafio para aqueles que integrem as suas novas aventuras. “Tenho sempre o segredo de querer que os atores que trabalhem comigo tenham uma experiência singular. Que saias deste projeto e que te tenha acrescentado alguma coisa.”

Os recentes projetos levados a cena por Rui Neto (Worms, 2012; Mechanical Monsters, 2015; Catch My Soul, 2017) têm uma forte componente urbana. São espetáculos assentes no ritmo, na velocidade, no lado maquinal e mecânico das sociedades contemporâneas – geralmente visões apocalípticas ou pós-apocalípticas como pano de fundo e motor da ação. No entanto, Rui diz que este foi um espetáculo que ficou fora da sua zona de conforto e do seu universo imagético. Em termos de projetos futuros, não sabe o que virá, mas interessa-lhe que o seu rumo o surpreenda com novos desafios, nos quais tentará sempre encontrar o seu olhar sobre as coisas.

Entre uma voz profunda e quase sussurrada do narrador, as sombras que se adensam, o elemento surreal e cómico da estória e a cabeça do crocodilo desenhada a traços estilizados e metálicos que ocupa a maior parte do palco há a constância de um sonho e de pequenos sinais do dia a dia que nos fazem acreditar que “estamos no sítio onde devemos estar, como se o destino me guiasse os pés”.

Texto de Andreia Monteiro
Fotografia de Mário Galiano

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