«Num país com tradição antiga de centralismo, em que os órgãos de soberania sempre tiveram a sede em Lisboa, a transferência da sede do Tribunal Constitucional contribuirá certamente mais para desprestigiar o órgão do que para criar uma “nova centralidade” fora da capital.»
Um “desprestígio”. Foi assim que os juízes do Tribunal Constitucional avaliaram a possibilidade de deslocalização da sua sede de Lisboa para Coimbra. Perante a chance de efetivar um sinal positivo de mudança e um passo para a tão reclamada descentralização, os juízes escolheram diminuir o valor de uma cidade que há muito tem o Direito na sua tradição.
É muito claro – talvez até demasiado – que o Projecto de Lei (PL) n.º 516/XIV/2.ª apresentado pelo PSD surge como um aceno interesseiro à população de Coimbra e tem como objetivo óbvio a conquista de votos nas eleições de hoje. Isso é tão inegável quanto a demagogia do discurso de Rui Rio, que o coloca na posição de defensor incompreendido dos territórios “anexos”. Também não sou muito favorável ao argumento de que a deslocalização reforça o princípio da separação de poderes, pois não me parece que essa separação deva ser medida em quilómetros mas em valores.
Apesar de tudo isso, a concretização desta medida não deixaria de ser um importante sinal para a região Centro, e, sobretudo, para o resto do país. É tão simples quanto isto: quem vive fora das áreas metropolitanas há muito que se sente na periferia do país, afastado de todos os centros de decisão. A mudança de um órgão de soberania com a importância do Tribunal Constitucional - juntamente com o Supremo Tribunal Administrativo e Entidade das Contas e Financiamentos Políticos, que também são visados na proposta - seria um sinal concreto e inequívoco de valorização do território que poderia abrir a porta a novas mudanças. Representaria ousadia e coragem por parte dos responsáveis políticos no cumprimento de mudanças efetivas, algo que há muito os cidadãos não veem acontecer.
É claro que, perante o clamor que se levantou, os juízes do Tribunal Constitucional vieram dar o dito por não dito, esclarecendo que a expressãodesprestígio “não se refere à deslocação para a cidade de Coimbra (ou qualquer outra cidade)”, mas sim ao facto de a proposta apresentada “evidenciar uma diferenciação arbitrária no universo dos tribunais”, particularmente em relação “aos restantes órgãos de soberania com sede em Lisboa”, o que “descaracteriza e desvaloriza gravemente o significado da jurisdição constitucional”.
Torna-se inevitável reagir a isto com um revirar de olhos. Para quem vive há décadas com falsas promessas de coesão territorial, estes argumentos não são mais do que um reflexo do centralismo irredutível que continua a vigorar no país (ou em Lisboa, que aqui surgem como sinónimos).
Compreendo os constrangimentos que esta mudança possa representar para os juízes e trabalhadores do Tribunal Constitucional, Supremo Tribunal Administrativo e Entidades das Contas e Financiamentos Políticos, mas é no mínimo revoltante tentar contrariar mudanças incómodas com acusações de “desprestígio” e até de “inconstitucionalidade”, conforme referiu Jorge Miranda, num artigo de opinião.
É positiva a aprovação desta proposta na generalidade, na Assembleia da República – ainda que seja surpreendente a posição de alguns partidos – mas, nesta fase, está instalado o cepticismo. Conforme noticiado pelo Jornal de Notícias, “após a especialidade, em votação final global, por se tratar de uma lei orgânica, o projeto do PSD só será aprovado se contar com a aprovação da maioria absoluta dos deputados em efetividade de funções”, o que não se apresenta com grandes probabilidades de acontecer.
As mudanças efetivas que são necessárias para a contrariar o enorme problema demográfico nunca serão eficazes e permanecerão reduzidas a cosmética. Pelo menos enquanto a descentralização continuar a ser um conceito “desprestigiante”.
-Sobre Sofia Craveiro-
Espírito esquizofrénico e indeciso que já deu a volta ao mundo sem sair do quarto. Estudou Ciências da Comunicação nesse lugar longínquo que é a Beira Interior, e fez o mestrado em Branding e Design Moda, no IADE/UBI, entre Lisboa e a Covilhã. Viveu tempos convicta a trabalhar na área da Moda até perceber que não tinha jeito nenhum. Apaixonou-se pelo jornalismo ao integrar um jornal local teimoso e insistente que a fez perceber o quanto a informação fidedigna é importante para a vida democrática. Desde essa altura descobriu também que aprecia ser In.so.len.te e que gosta de fazer perguntas para as quais não tem resposta. Encontrou o seu caminho nesta casa chamada Gerador, onde se compromete a suar a alma em cada linha escrita.