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O espaço público e o patriarcado

No passado dia 24 de abril de 2021, inaugurou-se, num dos baluartes da fortaleza de…

Opinião de Helena Mendes Pereira

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No passado dia 24 de abril de 2021, inaugurou-se, num dos baluartes da fortaleza de Monção, BRUMA, da autoria de Ana Almeida Pinto (PT, 1984), uma obra de arte que evoca a memória do comboio que outrora passou por ali. BRUMA é consequência da residência artística que a artista realizou naquele lugar alto-minhoto, integrada no AMAR O MINHO, um projeto com vários eixos de intervenção metadisciplinares no território, promovido pelo consórcio MINHO IN, que integra os 24 municípios da região do Minho, no cruzamento de interesses das comunidades intermunicipais do Alto Minho, Cávado e Ave. A rede de trabalho no caminho dos rios, que se liga ao mar e tem ares de diáspora em todos os seus poros, tem proporcionado um contexto de oportunidades a artistas, de diferentes áreas, para que exponham as suas criações com a visibilidade do espaço público e no estabelecimento de relações diretas com os públicos, usufruindo da sinergia deste coletivo de pensamento e ação concertada. Os artistas foram desafiados a explorar a identidade do território, numa perspetiva ampla e holística, considerando o tanto para além do passado distante, em que se inclui o quase presente porque é de agora tudo aquilo de que se pode ouvir contar na primeira pessoa. O programa de residências artísticas arrancou em junho de 2020 e prolongar-se-á até novembro de 2021, com artistas a trabalhar espaço público, partindo da memória coletiva e do artesanato, mas também na dimensão mais efémera dos palcos e que inclui nomes-referência da música, do som em sentido mais lato, da dança e da produção literária. A esta primeira fase de residências artísticas seguir-se-á uma segunda, com o exclusivo da criação de obras de arte plásticas e visuais para espaço público e com enfoque nos contextos ditos rurais ou nas aldeias. No momento em que foi imaginado, o AMAR O MINHO não previa, como ninguém previa, a situação pandémica vigente. Contudo, a iniciativa reinventou-se e tem sido possível, com o ritmo desejado, programar e, sobretudo, dar sinais de que há possibilidades de um fazer acontecer que vão muito para além dos espaços da arte instituída, devolvendo ao espaço público a primazia de Ágora dos sonhos e alimentando em cada um de nós a (talvez) utopia da democratização do acesso à Arte e à Cultura.

Ana Almeida Pinto é escultora e é mulher. Trabalha com a zet gallery há alguns anos e tem feito parte, também, das nossas escolhas para intervencionar o espaço público. Por estes dias, a zet gallery, projeto para as artes visuais do dstgroup, trabalha num projeto que tem como objetivo a inventariação, catalogação e sinalética de todas as obras de arte em espaço público do Município de Braga, referentes aos séculos XX e XXI. Com a apresentação a aproximar-se, algumas conclusão: em 101 obras inventariadas, apenas seis vêm a sua autoria atribuída a artistas mulheres, quatro, neste caso, havendo nomes que se repetem. Ana Almeida Pinto é uma das que bisa. As duas obras de arte que a cidade exibe dela tratam-se, contudo, de projetos do dstgroup e da zet gallery. Nas nossas opções temos, aliás, sido exímios nessa distribuição de encomendas por homens e mulheres. Não o fazemos conscientemente. Limitamos-nos a fazer bem o trabalho de casa e a conhecer o maior número de nomes possível e se elas, nós, a partir de uma dada época da nossa história recente, estão em maior número nas universidades e começam a medir forças na presença em coleções e/ou exposições, porque razão não terão direito a expandir os seus processos para o espaço público? Somos uma exceção e orgulho-me disso. Mas, como em tudo, o espaço público parece ter sido atribuído, por definição, ao patriarcado, como se partir pedra ou soldar metais não estivesse ao nosso alcance ou, ainda, não soubéssemos igualmente estabelecer relações de cooperação com os contextos industriais tão presentes na produção artística contemporânea de espaço público.

A percentagem de Braga (94% de obras com autores homens para 6% de autoras mulheres) não é diferente no resto do país e, em muitos casos, talvez até estejamos a falar de um hiato maior. Mas se pensarmos, por exemplo, na arquitetura e nas grandes obras, não há referenciais femininos, pelos menos dignos de prémios e menções. Exceção, já em termos internacionais, para Zaha Hadid (1950-2016) e muito pouco para além disso. No caso português sabe-se que há muitas mulheres arquitetas mas estão, na sua maioria, na dependência da função pública ou no anonimado dos gabinetes. Circulamos pelas cidades e é sempre de homens que falamos: arquitetos, artistas e até mesmo, no caso do espaço público, dos homenageados com a estatuária, com raras exceções a uma ou outra escritora, uma ou outra figura histórica feminina que nos é apresentada quase como mitologia de que devemos desconfiar. É como se tivéssemos sido sempre, de facto, o tal “segundo sexo” como irónica e sagazmente escreveu Simone de Beauvoir (1908-1986).

Talvez Monção, município pelo qual tenho tanto carinho, possa ser uma espécie de exceção. Há uns anos, também numa parceria com o dstgroup, homenageou, através de uma obra de João Cutileiro (1937-2021) a enorme Deu-la-Deu Martins, a estratega da vitória de Monção (e dos portugueses) sobre os castelhanos, no contexto das guerras fernandinas, entre D. Fernando, rei de Portugal, e D. Henrique de Castela, no último quartel do século XIV. Agora, escolhe Ana Almeida Pinto para o seu plano de arte em espaço público e, nomeadamente, para este tão importante tema do comboio e da linha férrea, presente no imaginário dos muitos que ainda contaram episódios à nossa artista, durante as duas semanas da sua residência artística. Ana Almeida Pinto concebeu e executou a sua obra, acompanhou todo o processo de implementação, pensou-a da essência à plasticidade. Chegados a Monção, sobretudo com a luz do dia a ir-nos, somos surpreendidos por uma estrutura de natureza estruturalista, minimal na forma mas com um referencial à figuração, uma escultura para habitar e percorrer, para viajar no tempo. Estou certa de que se tornará num local de visita obrigatória e num forte contributo para a construção da marca Monção, da marca Minho e da marca de Portugal no mundo. Mas, mais importante que tudo, com este ato de resiliência, este olhar atento ao espetro tão alargado de artistas, retiraremos o patriarcado da exclusividade do espaço público. Igualdade precisa-se em cada detalhe e, de preferência, também da democracia da rua, na poesia própria do sem teto que nos é de todos.

-Sobre Helena Mendes Pereira-

Helena Mendes Pereira (n.1985) é curadora e investigadora em práticas artísticas e culturais contemporâneas. Amiúde, aventura-se pela dramaturgia e colabora, como produtora, em projetos ligados à música e ao teatro, onde tem muitas das suas raízes profissionais. É licenciada em História da Arte (FLUP); frequentou a especialização em Museologia (FLUP), a pós-graduação em Gestão das Artes (UCP); é mestre em Comunicação, Arte e Cultura (ICS-UMinho) e Doutora em Ciências da Comunicação (ICS-UMinho), com uma tese sobre a Curadoria enquanto processo de comunicação da Arte Contemporânea. Atualmente, é diretora geral e curadora da zet gallery (Braga) e integra a equipa da Fundação Bienal de Arte de Cerveira como curadora, tendo sido com esta entidade que iniciou o seu percurso profissional no verão de 2007. No âmbito da educação e mediação cultural orienta, regularmente, visitas a exposições e museus de Arte Contemporânea, tendo já lecionado o tema em várias instituições de ensino. Integra, desde o ano letivo de 2018/2019 o corpo docente da Universidade do Minho Leciona, desde setembro de 2018, na Universidade do Minho, nomeadamente no Instituto de Línguas e Ciências Humanas (Mestrado em Tradução e Comunicação Multilingue) e na Escola de Arquitetura (Licenciatura em Artes Visuais), como Professora Convidada. É formadora sénior e consultora nas áreas da gestão e programação cultural. Publica regularmente em jornais e revistas da especialidade, tais como o quinzenário As Artes entre as Letras, nas revistas RUA e MINHA. Com mais de 13 anos de experiência profissional é autora de mais de 80 projetos de curadoria, tendo já trabalhado com mais de 200 artistas, nacionais e internacionais, onde se incluem nomes como Paula Rego (n.1935), Cruzeiro Seixas (n.1920), José Rodrigues (1936-2016), Jaime Isidoro (1924-2009), Pedro Tudela (n.1962), Miguel d’Alte (1954-2007), Silvestre Pestana (n.1949), Jaime Silva (n.1947), Vhils (n.1987), Joana Vasconcelos (n.1971), Helena Almeida (1934-2018), João Louro (n.1963), entre tantos outros. Tem larga experiência em estudos de coleções, produzido e publicado extenso trabalho crítico sobre arte e artistas contemporâneos, onde se incluem catálogos e outros resultados de investigações mais profundas sobre artistas e contextos de curadoria. É membro fundador da Astronauta, associação cultural com sede e Guimarães. Tem publicados dois livros de prosa poética: “Pequenos Delitos do Coração” e “apenas literatura e não outra coisa qualquer”.

Texto de Helena Mendes Pereira
Fotografia de Lauren Maganete

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