Ao regressar a casa deparo-me com um grande borborinho na rua. Carros parados, vozearia, aflição. Um estafeta da Uber jazia no chão, a mota tombada a uma curta distância de um automóvel. O homem quedava-se imóvel, com o capacete ainda na cabeça. Junto a mim ouço quem critique o sucedido pela falta de cuidados de condução dos estafetas: «São uns loucos, não respeitam nenhum sinal, andam a mil!». Lembrei-me logo do que em tempos se dizia, apressadamente, dos trabalhadores da construção civil, tão “propícios” a acidentes de trabalho.
O que então o senso comum não referia é que esses trabalhadores tinham horários de trabalho de Sol a Sol, dados os picos de procura no setor da construção, com apertadas exigências de prazo. Ou a proliferação de trabalho informal e clandestino, através de uma cadeia de subcontratações. Ou a ausência da inspeção de trabalho. Ou, ainda, uma cultura de masculinidade que negligenciava a precaução por a considerar sinal de falta de força e coragem. Nesse contexto, os acidentes naturalizavam-se como normais ou até inevitáveis.
Os estafetas também trabalham em horários diabólicos. De tão mal pagos veem-se obrigados a acelerar a sua prestação. Não têm seguros ou qualquer outro tipo de proteção, dada a ficção de serem considerados trabalhadores por conta própria, supostamente autónomos na gestão flexível do seu modo de trabalhar. Na verdade, são escravizados por um algoritmo que os obriga a carregar no acelerador de maneira que recebam mais trabalho do que os colegas. Imigrantes, na sua esmagadora maioria, sonham em acumular um pequeno pecúlio que possam transferir para a família na origem. E vivem no sonho de, após uns anos de exploração brutal, voltarem aos seus países para um recomeço com algum suporte.
O capitalismo de plataforma é o capitalismo numa das suas mais rudes metamorfoses. Ninguém representa estes trabalhadores: não têm cooperativas, comissões de trabalhadores ou sindicatos. Contudo, os mais politizados têm organizado pequenas manifestações contra as suas degradantes condições de trabalho.
No asfalto, o estafeta não se levantava. Mas logo pararam três, quatro, cinco motocicletas. Os colegas dele se abeiraram, transmitindo-lhe confiança. E ele sorriu, apesar da dor.
-Sobre João Teixeira Lopes-
Licenciado em Sociologia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto (1992), é Mestre em ciências sociais pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (1995) com a Dissertação Tristes Escolas – Um Estudo sobre Práticas Culturais Estudantis no Espaço Escolar Urbano (Porto, Edições Afrontamento,1997). É também doutorado em Sociologia da Cultura e da Educação (1999) com a Dissertação (A Cidade e a Cultura – Um Estudo sobre Práticas Culturais Urbanas (Porto, Edições Afrontamento, 2000). Foi programador de Porto Capital Europeia da Cultura 2001, enquanto responsável pela área do envolvimento da população e membro da equipa inicial que redigiu o projeto de candidatura apresentado ao Conselho da Europa. Tem 23 livros publicados (sozinho ou em co-autoria) nos domínios da sociologia da cultura, cidade, juventude e educação, bem como museologia e estudos territoriais. Foi distinguido, a 29 de maio de 2014, com o galardão “Chevalier des Palmes Académiques” pelo Governo francês. Coordena, desde maio de 2020, o Instituto de Sociologia da Universidade do Porto.