Vivemos num país dominado pelo futebol – não pelos desportos, apenas por este em específico. É temática para abrir telejornais generalistas em primetime, para ter vários canais próprios, para se apresentar em incontáveis e intermináveis conversas, debates, mesas redondas, comentários antes e depois de jogos que têm a duração de 90 minutos per si. É em canais de futebol que a maior parte dos restaurantes e cafés do país têm as suas televisões ligadas, não surpreendendo quando aumentam o volume se o jogo é considerado ainda mais relevante. Para o comum cliente, a quem esta prática não apraz, o melhor a fazer é tentar com dificuldade algum estabelecimento “sem televisão incorporada”.
Posto isto, sabemos que a prevalência de dificuldades em saúde mental tornou-se, definitivamente, uma grande preocupação para a saúde pública, com aproximadamente um quarto da população adulta a enfrentar actualmente alguma forma de dificuldades no seu estado de espírito, na vivência diária, no auto-controle, no acumular de dúvidas e incertezas. No momento, essas dificuldades, que incluem ansiedade e depressão, são mais commumente tratadas com intervenções farmacológicas ou psicológicas.
Cada vez mais se ouve falar de alternativas. Programas baseados no contacto com a Natureza a serem prescritos devido ao vulgo “transtorno por défice de natureza” (nature deficit disorder), muitos coachers a assumirem-se como alternativas à manutenção de uma boa saúde mental, inúmeros actores na área do chamado “desenvolvimento pessoal”, entre tantos outros. Mas a prática de exercício físico como pilar para uma boa saúde mental vem de longe. O mens sana in corpus sanus, promovido desde a antiguidade clássica, evoluiu para os nossos dias como um verdadeiro torpedo justificativo para a proliferação de ginásios, maratonas, corridas, etc. Em momento nenhum a correspondência entre a libertação de adrenalia (ou epinefrina) provocada pelo exercício físico e a adição ao mesmo... é comentada.
É importante reter que essa libertação bioquímica pode induzir à dependência, como qualquer droga. O que é vendido como poder mágico, ou mesmo super poder do exercício físico em relação à saúde mental e à saúde em geral, devia ser posto no seu lugar e, de uma vez por todas, oferecer às pessoas alguma literacia em relação à sua relação com qualquer desporto. Afinal, ele pode tornar-se numa dependência quando começa a ser descontrolado, quando não se consegue viver sem o praticar, quando a mente gira à sua volta. Como em tudo, até o exercício físico deve ser usado com conta peso e medida e, claramente, não o será para todas as pessoas que o praticam ou abusam. Conhecendo vários aditos em actividades desportivas, nomeadamente corrida, bicicletas ou idas ao ginásio, é preocupante não existir ainda uma maior observação comportamental para procurar tratamento para tantos casos.
Mas a questão não passa apenas pelos que o praticam. Não existindo estudos nacionais sobre a matéria, (que conheça) e a dependência da população ao fenómeno do futebol, o que é sabido é que estádios enchem para descarga de adrenalina. O Futebol provoca, em massa, alienações colectivas, um escape, uma fuga. O cariz comercial (diria até quase Industrial) que lhe foi sendo imputado, tornou este desporto numa máquina económica pesada, importante, e com enorme impacto na saúde mental da sociedade. Porquê? Basta olhar em volta.
Se as qualidades que lhe eram inerentes e saudáveis — estar em grupo, jogar de forma saudável como entretenimento, motivação psicossocial, bem estar físico e mental, socialização e até o mero estar ao ar livre – se tranformaram, tudo deveria ser repensado e um step-back seria desejável. Desejável e obrigatório!
Quando temos um fenómeno de alienação colectiva, dominante, omnipresente, que à falta dele toda uma sociedade se ressente mentalmente, deprime, fica em estados de ansiedade, percebemos claramente que em muito se passou o limite do objectivamente saudável.
Deixando este alerta, é também óbvio que as políticas públicas de saúde mental devem considerar seriamente programas baseados em exercícios físicos que são alternativas eficazes a alguns tratamentos. Vale a pena pensar um pouco nisto tudo.
*Texto escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico
-Sobre Ana Pinto Coelho-
É a directora e curadora do Festival Mental – Cinema, Artes e Informação, também conselheira e terapeuta em dependências químicas e comportamentais com diploma da Universidade de Oxford nessa área. Anteriormente, a sua vida foi dedicada à comunicação, assessoria de imprensa, e criação de vários projectos na área cultural e empresarial. Começou a trabalhar muito cedo enquanto estudava ao mesmo tempo, licenciou-se em Marketing e Publicidade no IADE após deixar o curso de Direito que frequentou durante dois anos. Foi autora e coordenadora de uma série infanto-juvenil para televisão. É editora de livros e pesquisadora. Aposta em ajudar os seus pacientes e famílias num consultório em Lisboa, local a que chama Safe Place.