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O GAJO da viola campaniça: cordas duplas de portugalidade

A música tradicional portuguesa é um caminho cada vez mais revisitado pelos músicos do presente,…

Texto de Ana Mendes

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A música tradicional portuguesa é um caminho cada vez mais revisitado pelos músicos do presente, como quem descobre um tesouro incalculável, e de seguida o quer revelar ao mundo. O resgate dos instrumentos e sonoridades tradicionais é parte integrante da bagagem que preserva essa portugalidade. E há um GAJO que trilha esse caminho, ao som português de uma viola campaniça, com o vigor de quem descobre uma nova vida no regresso às suas raízes.

João Morais é músico desde 1988, e ao fim de três décadas num registo punk rock, acompanhado de guitarras elétricas vindas de fora, encontrou, num improvável acaso, uma nova vida. Em 2015, num concerto em Beja, conhece a viola campaniça, instrumento tradicional de cordas usado para acompanhar os célebres cantares à desgarrada, nas festas e feiras do Alentejo. E a história d'O GAJO começa.

João Morais, O GAJO, com a viola campaniça, instrumento que o acompanha no seu projeto musical

O instrumento chega até Lisboa, em 2016, para fazer nascer O GAJO, o projeto musical de João Morais, que combina uma linguagem mais tradicional com a sua experiência no punk rock, mantendo intacta a portugalidade. A viola campaniça, também conhecida como viola alentejana, revelou-se uma surpresa para o músico, na sonoridade e energia das criações de música instrumental, que resultam numa fusão de fado, tradição, música urbana e contemporaneidade.

Após o lançamento do primeiro disco d’O GAJO, “Longe do Chão” (2017), e do quádruplo EP “As 4 Estações do Gajo” (2019), surge, em 2020, a oportunidade e criação do “Subterrâneos”, o mais recente trabalho do músico. Com uma nova abordagem criativa e arrojada, o novo disco acontece em formato trio, com a participação dos músicos Carlos Barretto, no contrabaixo, e José Salgueiro, na percussão.

Editado em março deste ano, “Subterrâneos” irá apresentar-se ao vivo nos próximos dias 6 de maio, em Évora, e dia 7 de maio, em Setúbal, no âmbito do festival “Soam as Guitarras”. À conversa com o Gerador, O GAJO desvenda o seu percurso pelas origens da música portuguesa, e revela-nos o processo de composição do novo disco, reflexo de um ano de isolamento, em que fomos desafiados a conhecer o “nosso subterrâneo”.

Gerador (G.) – Após várias décadas a tocar guitarra elétrica, surge uma nova identidade musical. Onde e como aparece “O GAJO” no teu percurso?
João Morais (J.M.) - Depois de 30 anos a tocar a mesma guitarra elétrica, senti que não estava a criar nada de novo, e esse foi o primeiro passo para uma reformulação mais profunda na minha abordagem artística/musical. Eu tinha de ser mais radical na mudança. A chegada da viola campaniça e deste projeto a solo, “O GAJO”, surgem a partir dessa inquietação, dessa vontade de mudança. Se eu tiver de dar uma localização mais precisa à origem deste projeto, será ali entre o meu pulmão esquerdo e o meu pulmão direito.

(G.) - Vens de um universo punk rock, com a energia da guitarra elétrica e um ambiente underground. Depois, descobres a portugalidade da viola campaniça. O que te fez mudar de registo?
(J.M.) - Eu sempre fui eclético nas escolhas da música que ouvia, e já há algum tempo que me tenho vindo a aproximar do mundo da World Music. Havia no meu interior uma vontade de dar uma geografia à música que fazia.

Certo dia assisti, em Lisboa, ao concerto da Anoushka Shankar, filha do Ravi Shankar, e a música dela transporta-nos para a sua geografia ancestral, a Índia. Saí desse concerto a pensar como poderia eu transportar o público para esta minha geografia, se um dia tocasse fora de Portugal? A Anoushka toca um instrumento de raiz tradicional indiana, a cítara, e, por isso, eu teria de tocar um instrumento de raiz tradicional portuguesa. Mas o espírito punk rock mantém-se intacto!

O GAJO explora a música territorial e regional, no uso de um instrumento de raiz tradicional, como a viola campaniça

(G.) - A viola campaniça é uma extensão d’O GAJO, que transforma o projeto num trabalho “a dois”. Fala-nos de como descobriste este instrumento. Que mestria exige ao tocar, que o torna tão singular?
(J.M.) - Com esta ideia da geografia da música já a fervilhar na cabeça, e as minhas antenas no ar, o meu projeto de rock “GAZUA” atuou em Beja, em 2015. A abrir esse concerto estava o Paulo Colaço, que é um conhecido tocador de viola campaniça. Eu não conhecia o instrumento, mas adorei o som e a abordagem dele. No final do concerto, ficámos um pouco à conversa, e ele explicou-me que a viola era um cordofone de raiz tradicional portuguesa, e que se pode mandar construir uma viola nos poucos luthiers, em oficinas um pouco por todo o país, onde ainda as fazem. Percebi que tinha encontrado aquilo que procurava, e a primeira coisa que fiz, ao chegar a Lisboa, foi contactar um amigo meu que tem uma escola de música tradicional no Alentejo, o Marco Vieira, que prontamente me deixou ficar com uma viola campaniça que tinha encomendado.

A partir daí, encerrei-me na sala de ensaios até encontrar uma afinação adequada, e explorei alguns caminhos para definir o meu trajeto. As cordas duplas da viola campaniça, e o facto de serem cinco ordens, em dez de seis, requerem algum tempo de adaptação. O maior desafio é passar a tocar só com o som acústico, sem processamentos, porque exige muito mais precisão e uma técnica mais apurada.

(G.) - Há alguma história na tua viola que queiras partilhar?
(J.M.) - Estas violas são sempre uma surpresa… Não há uma igual a outra! A história surreal que vivo hoje é que, a única viola que mandei fazer à minha medida, e onde gastei mais dinheiro, é a única que não consigo adaptar à minha abordagem. As outras quatro não me deram qualquer problema. Isto é um pouco sinistro…

(G.) – Passando à música instrumental que crias, que particularidades e desafios encontras na ausência de palavras numa música?
(J.M.) – Eu, neste momento. estou mais entusiasmado com a criação de música instrumental porque me obriga a ser mais expressivo no toque, e as minhas composições enriqueceram muito, pois é a viola que conta a história, e há que criar uma narrativa. É a viola que tem de gritar, falar, correr, chorar, sussurrar, etc. Com o som acústico e muito cru, temos de ser nós, com o corpo, com os dedos e com a respiração a criar todas essas sensações. É um exercício de intensidade e envolvência que supera, em muito, a abordagem mais rockeira e speedada da distorção.

Acerca do disco "Subterrâneos", O GAJO diz-nos que " é por dentro que está o que verdadeiramente somos e isso nem sempre é um bom reflexo".

(G.) - Quando, em 2020, a cultura parecia estagnada, decides compor e gravar o novo álbum “Subterrâneos”. Em que contexto ele surge e que narrativa podemos encontrar neste novo projeto?
(J.M.) - “Subterrâneos” só existe porque apareceu a pandemia. Foi uma resposta à paragem do país. A música e a viola, ao longo dos anos, foram sempre o meu bote salva-vidas em situações de maior stress. Não tendo ficado com as mãos acorrentadas, decidi avançar para a construção de um novo disco. Tinha de transformar este grande desastre em algo positivo e luminoso. Consegui um primeiro apoio à Criação do Fundo Fomento Cultural do Ministério da Cultura, que ajudou no arranque, e, mais tarde, consegui um apoio da Sociedade Portuguesa de Autores para a gravação do disco em estúdio.

O nome do disco representa o encontro que todos tivemos com o maior isolamento. De uma forma geral, somos seres sociais, mas a pandemia cortou esse elo com os outros e ficámos entregues a nós e àquilo que guardamos no nosso interior, nos nossos “Subterrâneos”. Esse encontro nem sempre foi o mais agradável.


A obra chama-se “Em marcha de escarlate” do artista plástico de Arcos de Valdevez, Mutes, e representa as “figuras subterrâneas que podem ser cada um de nós”. 

(G.) - Nos outros discos, “Longe do Chão” e os EPs “As 4 Estações do Gajo”, escutamos uma relação entre ti e a viola campaniça. Agora resgatas dois convidados especiais, o Carlos Barretto e o José Salgueiro. Fala-nos de como foi este processo musical.
(J.M.) - Para começar, eu não queria fazer um disco parecido com os anteriores, e por isso a fórmula de trabalho tinha de mudar. Depois de uma colaboração pontual com o Carlos Barretto, em 2019, decidi lançar-lhe o desafio de me acompanhar neste trabalho. Ele é um músico de grande nível, de grande sensibilidade, e com uma carreira extraordinária em Portugal e no estrangeiro. Eu estava disposto a aproveitar esta paragem para abraçar um grande desafio, e convidar o Carlos Barretto foi o primeiro passo para atirar a fasquia bem lá para cima. O José Salgueiro é outro músico excecional e de grande destaque no nosso panorama, e chega a este disco por intermédio do Carlos.

Eu comecei por estruturar as ideias na viola e, numa primeira fase, trocámos alguns áudios mp3 por email. Consegui perceber logo que estávamos no bom caminho. O Carlos Barretto foi acertando sempre em cheio nas bases do contrabaixo, e foi abrindo espaço para uma viola que estava acostumada a ocupar o espaço todo. A percussão foi, e é, sempre uma imprevisibilidade que torna cada passagem das músicas uma surpresa. O processo foi muito fluído e, com músicos deste nível, a minha preocupação não era o que vamos fazer, mas sim em saber deixar-me levar pelo que tiver de acontecer. Uma experiência nova, mesmo como eu gosto!

(G.) - O “Electro Santa” é o primeiro single do álbum “Subterrâneos”, e já conta com um videoclipe do Francisco Noras. Conta-nos como foi a construção visual, que nos transporta para uma espécie de caos psicadélico.
(J.M.) - Este tema “Electro Santa” surge a partir de um texto de um poeta beat portuense, Artur Rockzane. Os seus textos são bem fortes, caóticos e psicadélicos. Quando avançámos para o videoclipe, e tendo em conta as limitações que o confinamento exigia, o que pensei foi em ter a banda a tocar num espaço onde pudéssemos projetar imagens rápidas e intermitentes. Tivemos o apoio da EGEAC na cedência de uma sala no Cinema São Jorge, e o Francisco Noras foi muito certeiro no que era pretendido. Algo simples, mas movimentado, e que acompanhasse bem a pulsação da música. Fiquei muito satisfeito com o resultado. Simples e eficaz.

(G.) - O projeto “As 4 Estações do Gajo”, em 2019, trouxe uma dimensão mais urbana, com a apresentação dos EPs em quatro estações de comboio de Lisboa. Este comboio d’”As 4 Estações do Gajo” levou-te para um processo de internacionalização, com a participação em dois festivais europeus. Como foi essa experiência e o que absorveste dela?
(J.M.) - Esse processo de internacionalização é algo que se constrói lentamente e requer muita persistência, pelo menos num projeto menos convencional, como é O GAJO. As várias experiências que tive fora de Portugal foram sempre muito enriquecedoras, pois abrem-nos muito a panorâmica do mercado. Tanto o Eurosonic, na Holanda, como o Reeperbahn, na Alemanha, são festivais onde se reúnem profissionais da indústria musical em conferências, workshops, showcases, e há muita troca de ideias e experiências. Por um lado, vim muito mais bem preparado para compreender o nosso próprio mercado, mas também mais focado na minha área de ação, que é tocar, e delegar as outras áreas de ação, como o agenciamento, a edição, a comunicação, o publishing, a pessoas com as devidas competências para cada uma dessas áreas. É isso que percebemos já estar a acontecer nos países com mercados mais afirmados e consistentes. Claro que temos de ser versáteis, mas um maior conhecimento sobre o nosso contexto ajuda a escolher melhor os nossos parceiros de trabalho, e uma boa equipa alcança mais e melhores objetivos.

O GAJO, numa edição fotográfica de Jorge Buco

(G) - Sentes que existe uma maior procura, por parte dos músicos, desse retorno às sonoridades tradicionais portuguesas, quer na utilização de instrumentos regionais ou mesmo na influência musical?

(J.M.) - Sem dúvida que há hoje uma maior procura por sonoridades tradicionais! Acho que é uma tendência crescente e fico muito feliz com isso! Cresci a ver bandas portuguesas a quererem ser iguais às bandas estrangeiras e, pior do que isso, a querer vencer nos mercados de origem dessas bandas, ou seja, sem nada de original para acrescentar e condenadas ao insucesso. Não vale a pena levar areia para a praia.

Portugal é muito rico em tradições culturais e é algures por aí que está a fórmula para uma identidade que possa ser reconhecida e apreciada a nível global. Não sei qual é a fórmula exata, mas a sensação que tenho é que o segredo está aqui mesmo à mão. Teremos apenas de largar os preconceitos, abrirmos a mente e sermos críticos, muito mais críticos! O que vem de fora não é sempre melhor do que o que fazemos cá dentro, e temos estado demasiadamente contaminados com as superficialidades comerciais americanas e anglo-saxónicas que, com certeza, têm coisas boas, mas que não podem dominar o nosso mundo criativo.

Texto de Ana Mendes
Fotografias de Jorge Buco e da cortesia de O GAJO

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