Onde se descreve o carácter transgressor de certas obras de arte,
sem nunca se explicitar que é sobre arte que aqui se trata;
e onde se retomam, sem o dizer: a afirmação de Proust de que
os bons livros são escritos numa espécie de língua estrangeira
e a constatação de Rilke de que há obras de arte que clamam “Muda a tua vida!”
1.Teorema:
Um elemento estranho a um determinado organismo, depois de acolhido como hóspede, altera as qualidades, não apenas do conjunto, mas de cada um dos membros que o constituem. Essas alterações permanecerão, mesmo depois da retirada desse corpo estrangeiro.
2. Demonstração:
Uma família italiana da burguesia industrial abastada, mas “pobre em espessura e tonalidades”. Pai, mãe, filho, filha e empregada. Em tudo, membros de um grupo social que os enquadra, reconhece e classifica. Todos no seu lugar. Um dia, recebem em casa um hóspede. Parece esperado, já conhecido, mas há nele a dimensão do estrangeiro. Tem a estranheza da beleza excepcional: “Observando-o bem dir-se-ia, de facto, ser estrangeiro, não apenas pela sua estatura e pelo azul dos olhos, mas por ser totalmente desprovido de mediocridade, não existir qualquer possibilidade de identificação e de vulgaridade (...). Ele é, em suma, socialmente misterioso, embora ligue perfeitamente com todos os outros que estão à sua volta naquele salão (...). A sua presença ali, naquela festa absolutamente normal, é por isso quase escandalosa: mas de um indecoro ainda agradável e carregado de um suspense benévolo.”(...) “Enfim, dele não saberemos nada; e, aliás, não é necessário sabê-lo”[1]. O que ao fim saberemos é que os membros daquela família serão transformados pela sua presença, pela relação com aquele hóspede estrangeiro. Para todos tornar-se-à instrumento de reeducação: o que implica a desaprendizagem, a desordem e a reconstituição do horizonte de possibilidades, e do modo de nele se orientar. O amor e a entrega ao hóspede misterioso não deixarão pedra sobre pedra.
3. A ideia de si.
O hóspede vem destruir a ideia que tinham de si mesmo. E consegue-o porque, como lhe diz um dos membros, “tu te dás inteiro a cada um”. É uma estranha “presença consoladora” que destrói a lei dos papéis sociais para reconstituir a figuração que fazem de si, dos outros, da existência. Destrói sem maldade. Destrói porque a casa estava mal fundada sobre areia. A podridão escondia-se por detrás da fachada asseada, e ele revela a verdade. Sem sombra de mal. Ele não representa. Ele é, simplesmente, aquele que é. E parte como chegou, de repente. Não voltará. Deixa-os consigo mesmo. Tornam-se santos, artistas, promíscuos, doentes... Outros. O acolhido, afinal, revela-se como aquele que “estrangeira”. É o mediador que permite a cada um perceber o outro que transporta em si.
4. Testemunho:
“Estou destruído, ou pelo menos transformado
ao ponto de não me reconhecer, porque em mim
está destruída a lei, que
-até este momento-
me tornara irmão dos outros
(...).
É, portanto, através da destruição de tudo isso
que me tornava igual aos outros,
que eu me torno
-coisa inaudita e inaceitável – um DIFERENTE”[2].
5. Corpo.
Esta demonstração do Teorema foi realizada por Pier Paolo Pasolini em 1968. Era-lhe evidente – como aos estudantes nas ruas de Paris - que a mudança nunca poderia ser algo de mental ou pretensamente espiritual, desenraízada do corpo. A revolução da vida implica uma alteração da vivência incarnada. Uma relação nova com o mundo através da fragilidade e da força da sexualidade, da afectividade e do desejo. Experiência de nudez. As verdadeiras revoluções não alteram apenas a linguagem, mas também o corpo. Aliás, ele é a porta da alter-ação, pessoal e social. Corpo em abertura – que não nega um reduto de segredo, e que recusa a coisificação.
6. Presença.
O modo de presença do hóspede estrangeiro é hospitalidade. E nada mais sedutor e perturbador. Acolheu cada um e guiou-os para o deserto[3]. O lugar onde puderam sentir: “eu estou repleto de uma pergunta a que não sei responder”[4].
[1] Pier Paolo Pasolini, Teorema. trad. de Ana Tanque. Vila Nova de Famalicão: quasi edições, 2005, pp.21-22 (romance escrito durante a realização do filme com o mesmo nome).
[2] Ibidem, p.73
[3] e não por acaso, a citação que acompanha o filme e o livro é Êxodo 13, 18.
[4] Ibidem, p.141
-Sobre Paulo Pires do Vale-
Filósofo, professor universitário, ensaísta e curador. É Comissário do Plano Nacional das Artes, uma iniciativa conjunta do Ministério da Cultura e do Ministério da Educação, desde Fevereiro de 2019.