Na Europa, e um pouco por todo o mundo, as eleições norte-americanas merecem inevitavelmente destaque mediático. Um destaque muito superior ao que têm as eleições europeias, certamente, seja pelo domínio cultural americano, seja pela importância geopolítica que os EUA têm no mundo. Aos holofotes da atenção mundial, Donald Trump acrescenta uma capacidade quase inexcedível de nos fazer olhar sempre para o seu dedo que indica, e raramente para lá do seu dedo.
A atração que sobre nós exerce não é desprovida de sentido. Desde que se soube que havia vencido as eleições, Trump pôs-nos a discutir o nome de um Golfo, a falar da possibilidade de anexação de países vizinhos, de invasão de territórios soberanos de um país aliado ou da ameaça velada a outro, graças ao controlo que quer exercer no seu mais famoso Canal. As implicações que esta deriva imperialista pode eventualmente ter, por virem do líder do país mais militarmente poderoso do mundo, não são despiciendas e merecem, por entre o escárnio, a nossa atenção cuidada. Sem grande margem para perder mais tempo em reflexões inférteis, estas afirmações têm de exigir muito mais ação da parte da União Europeia.
Ao longo do primeiro mandato de Trump, repetiu-se muitas vezes em Bruxelas que haveria que tirar ilações do caminho de isolacionismo autoritário que os EUA seguiam. Mas o interregno de Biden deixou instalar na mente dos líderes europeus a ilusão de terem o luxo da inação – ou o adiamento da concretização de uma estratégia de relançamento político, económico e, também, militar da União. Essa ilusão de que nos poderíamos permitir a que tudo ficasse igual foi aproveitada de forma exímia por aqueles que veem no projeto europeu e nos fundamentos do Estado de Direito e das democracias liberais o seu principal alvo a abater.
A atração pelos holofotes americanos também pode ser explicada pelo desgosto que temos ao ver a imagem desfigurada da Europa que o espelho nos devolve. E o bode expiatório em que o populismo trumpiano se transformou. Realmente, a Europa parece ser o único continente que ainda não compreendeu que o mundo já não é eurocêntrico. Enquanto isso, estamos em vias de ter mais um governo liderado pela extrema-direita, na Áustria, que se junta aos governos de Itália, Hungria, Chéquia, Eslováquia, Finlândia, Croácia e Países Baixos – para além da Suécia, cujo governo assenta no apoio da extrema-direita. Governos e partidos que, após o desastre económico do Brexit, inverteram a sua estratégia de saída da UE e viraram agulhas para a sua transformação – destrutiva – por dentro.
No início deste ano, o Ministro dos Negócios Estrangeiros francês, instado a comentar as interferências políticas e eleitorais de Elon Musk na Europa, respondeu que a União Europeia tinha ao seu dispor todos os instrumentos necessários para combater essas interferências e que prevalecia o princípio da subsidiariedade. A parte que deveria ter feito soar o alarme em Bruxelas foi o que acrescentou a seguir: “se a Comissão Europeia não sabe como proteger [a UE] contra esta interferência ou estas ameaças de interferência, então deve devolver aos Estados-Membros, à França, a capacidade de se protegerem a si próprios.”
Se a ação deliberada de Trump e seus correligionários não foi suficiente para instar a Europa à ação, espero que a constatação crua do ministro francês tenha a capacidade de colocar a Europa no caminho de uma estratégia de autonomização, de reforço da cooperação multilateral – o mundo não são só os EUA – e de aposta num projeto político, económico, social e de defesa que sirva o interesse da população europeia e contrarie a retórica simplista e iníqua da extrema-direita. É o primeiro passo para combater o inimigo populista que se instalou cá dentro. Talvez depois consigamos ombrear com aqueles que se afirmam lá fora.