Com o lançamento de “Nada Pode Ficar”, de Maria João Guardão, celebrou-se, ontem, em confinamento, os 30 anos do atelier RE AL, projeto artístico de João Fiadeiro.
Foi, assim, numa atmosfera de inegável irrealidade profundamente condicionada pelo distanciamento social e pela interdição da expressão dos afetos que, em sensivelmente duas horas, se pretendeu refletir sobre o final de ciclo de um dos projetos mais importantes para o desenvolvimento e a consolidação da dança contemporânea em Portugal.
Vale a pena recordar a este propósito que a dança contemporânea apenas foi reconhecida como expressão artística passível de financiamento público com a Fundação do Ministério da Cultura em 1995 e, naturalmente, com a implementação do primeiro enquadramento normativo para a atribuição de financiamentos ao setor artístico.
Vale a pena lembrar também que este esforço de reconhecimento e legitimação se deve muitíssimo aos nomes pioneiros de João Fiadeiro, Vera Mantero, Francisco Camacho, Clara Andermatt e Paulo Ribeiro, que desde o início dos anos 90 construíram os primeiros contextos de criação possível, em condições de marginal precaridade que nesses tempos eram designadas como alternativos.
É verdade que já se punham em marcha, na mesma altura, alguns propulsores que auxiliaram esse movimento, a Nova Dança Portuguesa, no seu processo rumo à legitimidade. Um dia, espero não muito longínquo, se investigará e se escreverá sobre a importância do Festival Europália ou da Fundação Gulbenkian neste processo da Nova Dança, e das pessoas que nele vislumbraram características artísticas singulares, responsáveis pela enorme ressonância que aqueles criadores alcançaram no espaço internacional, antes mesmo de qualquer gesto relevante dos poderes políticos.
Lembro-me do poderoso efeito que teve em mim “Retrato da Memória Enquanto Peso Morto”, obra que vi em estreia absoluta na Bienal Universitária de Coimbra de 1989! Sim, nesse tempo, um dos projetos culturais nacionais mais marcante para as artes performativas tinha lugar em Coimbra!
Obra iniciática no percurso de João Fiadeiro, embora tenhamos hoje que a olhar com o distanciamento que o tempo inevitavelmente impõe, reunia, desde logo, um grupo de intérpretes e criativos de exceção, todos eles inconformados com o tempo que se vivia na criação contemporânea em Portugal e, sobretudo, ligado por um profundo sentido de comunidade, ditado, é certo, pelos afetos, mas sobretudo por valores, inquietações e questionamentos partilhados.
Foi, portanto, este sentido de comunidade como sinónimo de procura, de investigação, de pensamento, de experimentação que perpassa por toda a vida da RE AL como projeto cultural singular.
Valerá tanto a pena um dia, que espero não muito longínquo, escrever sobre o valor dos LAB como dos projetos mais emblemáticos e simbólicos desse statement. O que representaram em liberdade de criação e em generosidade na transmissão de um legado. Os LAB foram, sem sombra de dúvida, um dos projetos, senão o projeto mais importante na formação de gerações de novos criadores, não apenas em dança contemporânea, mas, de forma mais abrangente, em criação artística. É imperioso que a utopia que os guiou como magma fundamental para a criação artística, volte a colocar-se como fundamental prioridade de um setor demasiado condicionado a uma lógica de produção imposta pelo sistema e, logo, vergado à ditadura do real.
Agora que a fragilidade foi dolorosamente exposta resta-nos recuperar a irrealidade como o mais urgente e tangível dos destinos.
-Sobre Miguel Honrado-
Licenciado em História pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e pós-graduado em Curadoria e Organização de Exposições pela Escola Superior de Belas Artes de Lisboa/ Fundação Calouste Gulbenkian, exerce, desde 1989, a sua atividade nos domínios da produção e gestão cultural. O seu percurso profissional passou, nomeadamente, pela direção artística do Teatro Viriato (2003-2006), por ser membro do Conselho Consultivo do Programa Gulbenkian Educação para a Cultura e Ciência – Descobrir (2012), pela presidência do Conselho de Administração da EGEAC (2007-2014), ou a presidência do Conselho de Administração do Teatro Nacional D. Maria II (2014-2016). De 2016 a 2018 foi Secretário de Estado da Cultura. Posteriormente, foi nomeado vogal do Conselho de Administração do Centro Cultural de Belém. Hoje, é o diretor executivo da Associação Música, Educação e Cultura (AMEC), que tutela a Orquestra Metropolitana de Lisboa e três escolas de música.