É em direto, no Facebook e YouTube, que, todas as quintas-feiras, O Lado Negro da Força se reúne para criar um lugar de fala para comunidade negra em Portugal. O ativista Mamadu Ba, a socióloga Cristina Roldão, a artista Mirza Lauchand, a deputada Joacine Katar Moreira, ou o realizador Guenny Pires… São já quase 70 os nomes que já participaram neste talk show, que pretende dar a conhecer pessoas racializadas, das mais variadas áreas, bem como dar-lhes voz – aquela que é, muitas vezes, silenciada nos meios de comunicação tradicionais.
Com mais de meia centenas de emissões, as tertúlias, conduzidas por um painel rotativo de anfitriões, discutem estereótipos raciais, micro agressões do quotidiano, o impacto do racismo institucional, entre muitos outros assuntos sobre os quais os negros também têm opinião.
Numa destas quentes tardes de domingo, conversámos com o fundador e host José Rui Rosário e com a também anfitriã Paula Cardoso, na Casa do Capitão, onde, durante vários domingos, O Lado Negro da Força ganhou uma dimensão presencial, de braços dados com o Mercado Afrolink.
Um lugar de fala para os negros, em Portugal
O formato mudou, mas o objetivo manteve-se: “dar lugar de fala à nossa comunidade”, explica o criador d’O Lado Negro da Força, que nasceu, inicialmente, com um espaço de entrevistas no YouTube. José Rui, que é também músico, poeta e funcionário público, chegou ainda a realizar dois episódios – um com Gisela Casemiro e outro com Corsino Fortes – mas, devido ao “investimento necessário”, acabou por guardar o nome e arrumar a ideia, dedicando-se ao ativismo nas redes sociais, através do perfil e de alguns grupos no Facebook.
A vontade de relançar o projeto surge, entre o final do ano de 2019 e o início do ano seguinte, com o despoletar de uma série de casos de violência racial. As agressões no Bairro da Jamaica e a Cláudia Simões aumentaram a indignação, e a morte de George Floyd, nos Estados Unidos da América, foi a gota final – ainda homicídio de Bruno Candé estaria por acontecer. “Houve ali um período, depois da morte de George Floyd, em que tive mesmo um apagão e, quando voltei, disse que tinha que fazer alguma coisa, porque não podemos ficar só nesta cena de ir a manifestações e mandar desabafos”, conta. Foi nessa altura que propôs ao jurista Pedro Filipe e ao músico Alfredo Costa, companheiros em manifestações e na luta antirracista, que criassem um formato descontraído e em direto, em que transpusessem as conversas que já tinham entre si, para um espaço onde pudessem chegar a mais pessoas.
A ideia efetivou-se, mas de uma conversa entre três amigos, o conceito evoluiu para um espaço de encontro e de fala de pessoas racializadas e de outras tantas que, em comum, têm a luta antirracista.
Mamadou Ba, do SOS Racismo, foi, em junho de 2020, o primeiro convidado d’O Lado Negro da Força, no formato que conhecemos atualmente. O músico Timóteo Santos (NBC), a deputada Beatriz Gomes Dias, o ativista Gitelles Ferreira, o investigador Brito Guterres, a jornalista Joana Gorjão Henriques ou o humorista Diogo Faro, foram outras das quase 70 personalidades que já passaram por este talk show, emitido semanalmente, no Facebook e YouTube, às 21h.
Trazer diferentes vivências e perspetivas é o principal objetivo do projeto, onde não existe limite de idade, como clarifica: “Há pessoas que não têm experiência de vida, mas que têm algo para dizer, e o nosso princípio é sempre esse: tens coisas para partilhar, tens algo para dizer”.
Diferentes gerações, as mesmas problemáticas
Em setembro desse ano, o projeto ganhou um lado feminino, com a entrada da host Paula Cardoso, que tinha sido uma das primeiras convidadas do programa e que, apesar de perceber o porquê do painel inicial não integrar nenhuma mulher, sublinha a importância de haver uma “voz feminina” neste projeto de tónica antirracista: “Somos todos seres humanos, claro. Estamos todos na luta antirracista, mas trazemos vivências diferentes, e há um nível de opressão que também é diferenciada a partir do género”, diz a ativista, ex-jornalista e fundadora do Afrolink, dando conta que acompanhou o projeto logo desde o início. “Se estás a trabalhar nesta questão da luta antirracista, estas coisas aparecem, naturalmente, no teu radar.”
Danilo Moreira e Laura Alves completam hoje o painel de apresentadores d’O Lado Negro da Força, do qual já não faz parte Alfredo Costa, nem a influencer Mariama Injai. “Com a saída da Mariama e com a inclusão da Laura, conseguimos tocar já as gerações quase todas, e isso é giro. Cinquentas, quarentas, trintas e vintes. Já temos pessoas que estão nestas idades, e todos temos vivências e perspetivas diferentes.”, refere José Rui. “E que viveram estas questões de maneiras diferentes”, acrescenta Paula.
Porém, apesar das diferentes idades, os anfitriões notam que “as questões são quase sempre as mesmas, e os problemas são os mesmos”, o que os leva a crer que “muito pouco está a mudar nestas cinco décadas” que representam.
Os negros têm opinião (e não é só sobre racismo)
Para além da conversa onde se pretende conhecer melhor o convidado e a sua vivência das questões e dinâmicas raciais, as tertúlias d’O Lado Negro da Força incluem um segundo momento em que todos os participantes comentam um tema, normalmente, lançado por José Rui.
“O que sentimos, enquanto pessoas negras, é que, quando somos chamados para falar, é sempre para falar sobre a questão racial. Não é para mais nada. Portanto, só nos reconhecem voz para essas questões, e mesmo assim reconhecem com muitos travões”, garante Paula. “Ouvem-te até certo ponto. Quando começas a questionar demasiado, já estás a ser muito radical e, se calhar, já não é muito fixe estar a dar-te esse espaço.”
Na reta final do programa, há ainda um espaço para notas finais, “e nessas notas finais também cabe trazer outros temas que não tenham sido abordados”, clarifica, reforçando a importância dos vários momentos do talk show que permitem “expressar uma série de dimensões” da identidade das pessoas racializadas “que, normalmente, não são olhadas, não são acolhidas”.
José Rui acrescenta que os negros tendem a não ter espaço para comentar nos meios de comunicação tradicionais, principalmente nas televisões, até “mesmo sobre as suas questões”, mas reforça que esses não devem ser os únicos temas para os quais devem ser chamados: “Nós não comentamos só sobre as questões do racismo – também comentamos e, quando o é, é relevante. Mas há outras coisas relevantes de que nós também falamos”.
A internet e as redes sociais – que podem hoje ser equacionadas como novos meios de comunicação social – possibilitaram a criação desse espaço, mais democratizado, através de projetos, de vincado carácter ativista, como este. “Achámos que também devia haver esse espaço de comentário, que dá uma dimensão diferente ao facto de nós também termos direito a opinião. E ter direito à opinião não é só dizer que tens, mas também abrires um espaço em que as pessoas possam falar abertamente”, defende o fundador.
Este não é só "o lado" dos negros
Desengane-se quem pense que o nome e ideologia do projeto querem criar algum tipo de cisão que delimite os negros e racializados dos restantes membros da sociedade portuguesa. Por outro lado, está bem definido critério de seleção de quem se junta a estas conversas. “Claro que pode haver discordâncias, mas não é por princípio, não é por valor”, afirma.
Entre os anfitriões, os temas a discutir durante as tertúlias nunca foram uma questão. No entanto, Paula e José Rui comentam que a ideia de se convidar pessoas que não estão alinhadas com a mesma “visão do mundo” já se colocou. “Alienados não dá para convidá-los”, posiciona-se a ativista, reunindo o consenso do músico: “Claro, não vamos convidar alienados, ou pessoas que estão num estágio que não nos interessa sequer estar a dar plataforma [de visibilidade]”.
Paula defende ainda que tal situação iria “desvirtuar” o atual registo do talk show. Adicionalmente, não quer estar num ambiente de confronto: “Não quero, recuso-me a estar nesse papel. Acho que o espaço é fantástico para nós conhecermos histórias e para estarmos descontraídos sempre”.
Afastando qualquer interesse em criar um espaço que permita a “polarização”, José Rui explica que, mesmo havendo divergência, “os valores são sempre os mesmos”. “N’O Lado Negro da Força, a gente sabe de que lado é que está, e não é estar só do lado dos negros”, argumenta o fundador, revelando a escolha daquele nome para o projeto: “É o lado negro da força, e o lado negro da força pode estar em quem quer que seja que esteja do nosso lado, que é o lado correto.” Além disso, divulga também a intenção de desconstruir a ideia de que “tudo o que é negro é negativo”, para, intervém Paula, “ressignificar uma série de coisas” associadas à negritude.
Além da “mãe da Paula e família” e das “quinhentas associações às quais o Danilo pertence”, o moderador acredita que o formato é assistido, principalmente, por pessoas que estão “atentas à questão da igualdade e da inclusividade” – Laura, que se juntou mais recentemente ao projeto, surge desse núcleo, assinala a criadora do Afrolink.
Do online para o presencial
Sob o lema, "Nu Sta Djunto" ("estamos juntos", em crioulo caboverdiano), o projeto soma mais de um ano de emissões semanais, e ininterruptas, ao vivo, nas redes sociais, a que se juntam várias edições especiais – como para a divulgação do movimento “Em Desconstrução”, do jornal O Negro e do projeto “Alcindo – o filme”, e ainda um especial de aniversário.
Fora do online, o formato reforçou, nos últimos meses, a sua dimensão presencial, na Casa do Capitão, em Lisboa, que acolheu várias conversas presenciais, onde se debateu, entre outros temas, “As representações étnico-raciais nos media”, com Conceição Queiroz, “Representatividade negra nas artes”, com Zia Soares, ou os “Corpos negros no desporto nacional”, com o ex-atleta André Biveti.
Também neste espaço, no Beato, decorreu o “Cachupão”, um almoço comemorativo do primeiro ano de emissões d’O Lado Negro da Força e que aconteceu em setembro, depois de ser adiado devido à pandemia.