O regresso aos palcos estava à espreita com a iminência da abertura das portas das salas de espetáculo, prevista para dia 1 de junho. Com o anúncio do concerto do Deixem o Pimba em Paz para esse mesmo dia, peguei no meu telemóvel trémulo na esperança de arranjar um bilhete. Os cerca de 2000 lugares disponíveis esgotaram em 11 minutos e, felizmente, um deles era meu. Iria ver a Manuela Azevedo pela primeira vez em palco, o Bruno Nogueira, cujo direto de Instagram foi uma companhia constante, e revisitar músicos como o Salvador Sobral, Samuel Úria, Nuno Rafael, Filipe Melo ou Nelson Cascais, que costumava ver frequentemente em concertos.
No decurso do meu trabalho como jornalista no âmbito cultural, não me é estranho ouvir artistas falarem dum tal sentimento comum quando a agenda se encontra mais espaçada: a falta do palco. Dada a paralisação que o sector enfrentou nos últimos três meses, muitos foram os desabafos que fui ouvindo neste sentido, adjudicando sempre a premissa de que as redes sociais ajudam, mas “agora faz falta o palco”!
Antes de me ver isolada em casa, era uma prática recorrente fruir de eventos culturais. A ida a concertos fazia parte do meu horário semanal, sendo já uma rotina. Abruptamente, vi-me fechada em casa a assistir a concertos na tela do meu computador e a bater palmas numa ambiência aveludada de silêncio. Com o passar das semanas, vi esse consumo espraiar-se, deixando um lugar de encontros mútuos por preencher. Ao ver o anúncio do concerto no Campo Pequeno, a decisão de estar presente não tardou.
Dia 1 de junho. Encontrei-me na entrada para o sector 4 ímpar uma hora e meia antes do espetáculo. Havia um banco solitário. Sentei-me. Examinei a envergadura do edifício por que tantas vezes tinha passado com um olhar desatento. Estudei os movimentos de um grupo de jovens que jogava futebol no campo. Cumprimentei caras conhecidas que inesperadamente traçaram uma trajetória comum. Deliciei-me com o olhar sorrido de um amigo que não esperava ver tão cedo. A luz caiu e dei entrada na sala. Lia-se o entusiasmo e precaução em olhares cruzados. Por fim, as luzes baixaram. A sala encheu-se de aplausos e vocalizos engendrados em ovação. Os artistas começaram a ocupar o palco. O tempo para e a aclamação dilata-se, povoando os meus olhos lacrimejantes. Durante aquelas horas, emocionámo-nos, rimos, gritámos, cantámos e sentimo-nos unos. Durante aquelas horas, tornei-me ciente do meu lugar como espectadora e, mais do que isso, de um sentimento de que não tenho ouvido falar tanto: a falta de ser parte de uma plateia.
De facto, desde muito nova que ver um palco habitado me cumpre. No assento de plateias tomei decisões cruciais para a minha vida. Mudei rumos. Tornei-me mais tolerante e empática, deixando-me contagiar pela arte que me era devolvida. No calor de um teatro fui aprendendo a aceitar o meu ser. Na completude de uma sala de espetáculos recolhi a cor viva que dá forma ao meu corpo. Na sala escura que foca o olhar num palco em movimento, edifiquei muitos dos sonhos que me habitam o rosto com um sorriso, ao cantar do galo.
Em Portugal, o sector cultural tem no seu documento de identificação uma série de fragilidades que surgem de mãos dadas com a precaridade laboral. Podia falar da ausência de uma política cultural que dê reposta às necessidades e diversidade do sector, ou até mesmo da manifestação “Parados, nunca calados” que se concretizou no passado dia 4 de junho. Mas hoje, não é isso que quero frisar.
Hoje, projeto a minha falta de ser parte de uma plateia e permito-me reconhecê-la nos rostos que me são familiares, mas também naqueles que por mim passam com a brevidade de um tique taque. Faço-o como meio de destacar a nossa responsabilidade e dever enquanto público. A luta por um sector cultural que veja serem respondidos os problemas urgentes, mas também os antigos, não é matéria exclusiva dos trabalhadores da cultura. Esta é uma custódia partilhada com todos nós. O lugar do espectador é de responsabilidade e dever para com o artista, a sua obra, e a partilha criada. O benefício não é só para quem pisa o palco, opera uma mesa de som, ou habita os corredores desconhecidos por detrás das cortinas. O que seria de nós, raça humana, sem momentos de fruição cultural?
Então, o que vais fazer por esta luta que também te cabe?
-Sobre Andreia Monteiro-
Cresceu na terra que um dia alguém caracterizou como o “sítio onde são feitos os sonhos” e lá permanece, quer em residência, quer na constante busca por essa utopia. É licenciada em Comunicação Social e Cultural, na vertente de Jornalismo, pela Universidade Católica Portuguesa, e mestre em Ciências da Comunicação, na vertente de Jornalismo, pela mesma entidade. É, desde maio de 2019, a diretora editorial do Gerador, Associação Cultural a que se juntou no final da sua licenciatura. Apaixonada pelo mundo artístico, é uma leitora insaciável, a companheira constante de um lápis e papel, uma curiosa de pincel na mão, uma amante de teatro e cinema e está completamente comprometida com a beleza da música que tem vindo a descobrir. É, desde 2019, aluna na escola de jazz do Hot Clube de Portugal. Acima de tudo, é uma criatura com pouco mais de metro e meio cujo desassossego não deixa muito espaço para tempos mortos.