O Doclisboa e a Cinemateca Portuguesa trazem a Lisboa a mais extensa retrospectiva do realizador mexicano Paul Leduc (1942-2020). O seu nome ainda não é conhecido em Portugal e essa é uma das razões pelas quais estes programas são importantes. Não existe uma “história do cinema” em concreto; é sempre um trabalho em curso, constantemente complementado com a chegada de novos conhecimentos de diferentes culturas e continentes. De facto, esta troca constante entre as culturas (incluindo as indígenas) é um dos motivos-chave do pensamento de Leduc.
Os seus dois filmes mais famosos e acessíveis são as ficções Reed: México insurgente (1970) e Frida, naturaleza viva (1983). Ambos os filmes experimentam com o género biográfico, mas nunca o limitam às biografias convencionais. Pelo contrário, Leduc está interessado, ao abordar as figuras do jornalista americano John Reed no turbilhão da Revolução Mexicana e da frágil pintora Kahlo, respectivamente, em encontrar a forma de mostrar as contradições da sociedade e as batalhas de ideias, que não são menos importantes do que as das espingardas. Em retratos não lineares destas duas figuras emblemáticas do século XX, o realizador mostra como as ideias, os pensamentos e as palavras definem a História e os destinos humanos particulares.
Paul Leduc realizou dois documentários excepcionais — Etnocidio: Notas sobre El Mezquital (1976) e Historias prohibidas de Pulgarcito (1980) — que pertencem às crónicas-chave da História do Cinema latino-americano. Etnocidio é um estudo analítico do extermínio sistemático do povo indígena — ou melhor, original — Otomi, no México. Os antecedentes, a história, as condições económicas, laborais e culturais e o problema da terra são destacados nesta obra. Historias prohibidas de Pulgarcito, concebido como um diálogo com um poeta salvadorenho assassinado, Roque Dalton, retrata o início da Guerra Civil de El Salvador, que durou demasiado tempo e custou demasiadas vidas...
Todos estes filmes, apesar de terem sido realizados há muitas décadas, falam da actualidade e da lógica irresistível da História. Paul Leduc, que chegou ao cinema depois de ter estudado teatro e arquitectura, nunca escondeu o seu forte empenho político e duvidou, desde os seus primeiros trabalhos, da objectividade do cinema. Ao mesmo tempo, é difícil limitar o seu cinema à categoria de “militante”, pois Leduc soube sempre que a nova imaginação (política) exige novas formas de arte e uma nova linguagem, que procurava na sua própria cultura, bem como nas tradições europeias. Especialmente a de Brecht, como comentou uma vez: “Sempre me interessei muito por Brecht. E quando as pessoas vêem, por exemplo, Frida, têm de pensar. Há apenas o público e o ecrã e isso obriga-nos a pensar. E é isso que é fundamental em Brecht. Por isso, o silêncio é por vezes muito útil”.
Outro atractivo da programação do Doclisboa 2024 é exergue — on documenta 14. A relevância do filme de 14 horas de Dimitris Athiridis, realizado durante quase 10 anos, vai muito para além de se tratar de um filme vital para qualquer pessoa que tenha proximidade com o mundo da arte e as instituições culturais.
Seguindo de perto o director artístico Adam Szymczyk e a sua equipa de curadores à medida que desenvolvem a sua proposta radical e controversa para a edição de 2017 da mais proeminente exposição de arte do mundo, exergue oferece um drama do lugar, do emaranhado e da função da arte no e com o mundo, para captar a complexa relação entre a produção cultural, valor e política, numa paisagem global em inexorável mudança.
A proposta curatorial de Szymczyk poria a exposição quinquenal a realizar-se, pela primeira vez, em duas cidades: Kassel, na Alemanha (onde a exposição nasceu em 1955, no meio do trauma do pós-guerra), e Atenas, na Grécia — o centro da crise financeira da Europa na altura. Cheio de paradoxos intencionais desde o início, este gesto curatorial ganhou níveis de complexidade cada vez maiores ao longo dos anos do seu planeamento (2013-17), durante os quais o mundo se tornou ainda mais conturbado.
Uma exposição financiada pela Alemanha, que propunha “Aprender com Atenas”, assumiria um significado diferente, depois de o governo grego ter rejeitado os resultados do seu referendo de 2015 sobre as condições do seu resgate pelos mais poderosos da Europa. Desde os ataques no Bataclan em Paris, ao Brexit na Grã-Bretanha, às eleições de Trump e Erdoğan, ao aprofundamento da guerra na Síria e à crise dos refugiados, os factos de um mundo em mudança funcionam como pontuação ao longo deste retrato do processo de criação de uma grande exposição em tempo real, enquanto o impacto real e simbólico de tais factos coloriria igualmente os meios de pensamento da própria exposição.
A Documenta 14 dividiu a crítica quanto ao carácter radicalmente progressista ou didático da sua proposta artística, reflectindo ou instrumentalizando questões politicamente urgentes, ao mesmo tempo que propunha uma crítica vital às próprias dependências de uma instituição de arte. No final, uma exposição que procurava simbólica e fisicamente descentrar-se e combater o demónio neoliberal, levaria a sua estrutura organizadora alemã à beira da falência e a um grande escândalo mediático, subsumindo as suas obras de arte nas mesmas crises que procurava simbolicamente abordar. A questão de como, e se, o Ocidente pode ser mudado a partir do interior das suas próprias estruturas está no centro deste filme e do projecto que documenta.
Por diversas vezes, ao reflectirem sobre o passado recente do mundo e do mundo da arte, os protagonistas de exergue afirmam que “a festa acabou”. Através da lente de uma grande exposição artística, de um acesso extraordinariamente íntimo e de uma construção delicada, o próprio filme de Athiridis mostra o fim de uma era cultural, o início da seguinte e a porta de entrada para um futuro incerto, através de um filme de observação de uma acuidade notável.