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Opinião de Helena Mendes Pereira

O Museu e a Praça

Colecionar e exibir obras de arte são processos antecessores à criação dos museus, mas o…

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Colecionar e exibir obras de arte são processos antecessores à criação dos museus, mas o museu é o grande confirmador da verdade sobre o que é e não é arte, estando no topo da cadeia do sistema da arte e, mais ainda, no eixo central da ação transformadora do mundo, estabelecendo pontos de contacto e de ação concreta sobre o território em que se insere e, ao mesmo tempo, programando a uma escala global e avassaladora. Mais de cem anos depois de Filippo Marinetti ter defendido no “Manifesto Futurista”(1909) a destruição dos museus, reduzindo-os a meros dormitórios públicos e a espaços para o carcinoma de professores, arqueólogos, guias e antiquários[1], assistimos a uma transformação radical no paradigma desta instituição. “Dada a sua importância atual enquanto centro de urbanidade e civilização, o museu é considerado como a nova catedral do século XX”[2]. Entendido como polo de atração turística e protagonista da economia da cultura[3], é hoje um fator determinante na requalificação e reanimação urbana, conquistando um lugar de destaque nas nossas cidades, tornando-se centros de encontro e de validação mútua entre os vários atores do sistema da arte.

O museu oitocentista que fascinava Walter Benjamin entrou no século XX sujeito a mutações de diversa ordem, colocando em causa a coerência interna das narrativas que o sustentavam e obrigando a um maior refinamento das suas estratégias de legitimação. Os museus, muito particularmente aqueles ligados à história da arte, sempre se construíram a partir de uma narrativa que pressupunha um enredo central e ordenador. Ora, a proliferação de reproduções de obras de arte retirou ao museu o exclusivo na construção dessas narrativas, de um enredo central passámos, numa lógica exponencial, a um estilhaçar das centralidades. No seu O Museu Imaginário[4], originalmente publicado em 1947, André Malraux (1901-1976) fixa este fenómeno de coletivização da arte. Para Malraux, a solução salvífica para a heterogeneidade museológica residia exatamente neste nascimento de uma linguagem universal da arte, paradoxalmente centrada na individualização das escolhas. O museu imaginário de Malraux traz consigo um lado relacional e um elenco de dicotomias: estátua – corpo, figura – espectador, natureza viva – natureza morta, cinema – pintura, fantástico – real, relíquia – banal, nu figurado – nu filmado, interior (do museu, vida privada) – exterior (cidade, vida pública). Polaridades que, não se anulando, permitem compreender o museu como um espaço de constante interrogação e incerteza e também como um lugar cuja explicação ultrapassa a própria história da arte.

A partir da década de 1980 proliferam, por toda a Europa, museus de iniciativa privada, como proliferam arrojados projetos de arquitetura que notabilizam as instituições, ao mesmo tempo que sacralizam a figura do arquiteto enquanto inventor dos novos templos do belo. Um novo renascimento urbano surgiu a partir de planos e projetos nos quais a cultura se destaca como principal estratégia e as preocupações urbanas recaem sobre as políticas culturais. Cultural planning[5], planificación cultural[6], regeneração cultural[7] são termos que surgiram, em contextos diferentes, referindo-se ao planeamento e ao projeto urbano com ênfase na cultura.

No estudo destes processos, Bianchini[8] identifica algumas experiências precursoras norte-americanas (Harbor Place, de Baltimore; Waterfront e Quincy Market, de Boston e South Streer Seaport, de Nova Iorque) de intervenção em zonas históricas. No entanto, os casos europeus de inserção de equipamentos culturais de grande destaque tornaram-se paradigmáticos: o Centro Georges Pompidou de Paris, o Museu de Arte Contemporânea e o Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona e o Museu Guggenheim de Bilbao. Em algumas ocasiões misturam-se os dois princípios da revitalização: a recuperação do ambiente histórico existente e a criação de equipamentos culturais como âncoras dos projetos. Efetivamente, nas últimas três décadas tem chamado a atenção o grande número de novos equipamentos culturais, quer se tratem de construções antigas reabilitadas, como o caso da Tate Modern de Londres, ou de arquiteturas de vanguarda, com forte apelo aos recursos formais, tecnológicos e monumentais. Dentro destes equipamentos destacam-se os museus e os centros culturais.

Hoje, no exercício dialogante que a arquitetura de museus do século XXI deve estabelecer com os contextos urbanos habitados e/ou os centros históricos turistificados, queremos museus que atravessem as paredes e os muros das cidades, que façam os seus fruidores mudar de tempo e espaço depois da inquietação da experiência estética e da ativação do pensamento reflexivo a atuante sobre o mundo que os museus devem provocar. Queremos museus que tomem a arte como ponto de partida para a construção de pensamento crítico sobre o mundo que nos rodeia, numa crença profunda, muito profunda, que um povo, uma comunidade promotora do conhecimento, através da ação cultural e do contacto com as estruturas e práticas de criatividade, exerce mais ativamente a sua cidadania e, em momento algum, era escolher a opressão em detrimento da Liberdade e eleger um governo ditador e totalitário para o leme do seu destino. É por isso que cabe à Museu do futuro ser a Praça, ser a Agora das novas Pólis, ser o lugar de debate e de construção coletiva por excelência.


[1] MARTIN, Sylvia – Futurismo. Colónia: Taschen, 2005. Páginas 6 a 10.

[2] COUTINHO, Bárbara – “O Popular, Jovem, Espirituoso, Sexy e Deslumbrante Museu”. In MEDEIROS, Carlos L. (Coordenação) – Cultura, Factor de Criação de Riqueza. Lisboa: Universidade Católica Portuguesa, 2008. Página 85.

[3] CARVALHO, Mário Vieira de – “Cultura e Economia” In MEDEIROS, Carlos L. (Coordenação) – Cultura, Factor de Criação de Riqueza. Lisboa: Universidade Católica Portuguesa, 2008. Página 19.

[4] MALRAUX, André – O Museu Imaginário. Lisboa: Edições 70, 2011.

[5] EVANS, Graeme – Cultural planning, an urban renaissance? London: New York: Routledge, 2001.

[6] WERWINJNEN, Jan – “Sobre o planeamento cultural e estratégico. Fazer cidade: planos, estratégias e desígnios.” In BRANDÃO, P. e REMESAR, A. (Coordenação) – O espaço público e a interdisciplinaridade. Lisboa: Centro Português de Design, 2000. Páginas 90 a 98.

[7] WANSBOROUGH, Matthew e MAGGEEAN, Andrea – “The role of urban design in cultural regeneration.” In Journal of Urban Design. Volume 5, número 2, 2000. Páginas 181 a 197.

[8] BIANCHINI, Franco – Cultural policy and urban regeneration: The West European experience. Manchester: Manchester University Press, 1993.

-Sobre Helena Mendes Pereira-

É curadora e investigadora em práticas artísticas e culturais contemporâneas. Amiúde, aventura-se pela dramaturgia e colabora, como produtora, em projetos ligados à música e ao teatro, onde tem muitas das suas raízes profissionais. É licenciada em História da Arte (FLUP); frequentou a especialização em Museologia (FLUP), a pós-graduação em Gestão das Artes (UCP); é mestre em Comunicação, Arte e Cultura (ICS-UMinho) e doutoranda em Ciências da Comunicação, com uma tese sobre a Curadoria enquanto processo de comunicação da Arte Contemporânea. Atualmente, é diretora geral e curadora da zet gallery (Braga) e integra a equipa da Fundação Bienal de Arte de Cerveira como curadora, tendo sido com esta entidade que iniciou o seu percurso profissional no verão de 2007. Integra, desde o ano letivo de 2018/2019 o corpo docente da Universidade do Minho como assistente convidada. É formadora sénior e consultora nas áreas da gestão e programação cultural. Com mais de 12 anos de experiência profissional é autora de mais de 80 projetos de curadoria, tendo já trabalhado com mais de 200 artistas, nacionais e internacionais, onde se incluem nomes como Paula Rego (n.1935), Cruzeiro Seixas (n.1920), José Rodrigues (1936-2016), Jaime Isidoro (1924-2009), Pedro Tudela (n.1962), Miguel d’Alte (1954-2007), Silvestre Pestana (n.1949), Jaime Silva (n.1947), Vhils (n.1987), Joana Vasconcelos (n.1971), Helena Almeida (1934-2018), entre tantos outros. É membro fundados da Astronauta, associação cultural com sede e Guimarães e em 2019 publicou o seu primeiro livro de prosa poética, intitulado “Pequenos Delitos do Coração”.

Texto de Helena Mendes Pereira
Fotografia de Lauren Maganete

As posições expressas pelas pessoas que escrevem as colunas de opinião são apenas da sua própria responsabilidade.

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