Num remoto lugar sem nome,
Bem guardado dentro de mim,
Um reles diabo o sono dorme,
Com um gentil e alado querubim.
Aqui habita um animal chamado razão,
Em que relutante, prático, vencido, me apoio:
Olhos, língua, ouvidos, coração,
Cabeça, veias, pele, trigo e joio.
Viajo nos pulsos, dedos,
Peito, coxas, ventre, bússola a norte,
Enquanto um meridiano acordo entre a paz e os medos,
Navega e fende o sangue, expõe o rubro corte.
Insondável é a alma, misterioso o seu corpo,
Conjugação de relatos pretéritos e futuros,
Misturo dois fantasmas, três sinais, nove certezas, um sopro,
Aplaino rugosas montanhas, construo altos muros.
E se este rol ordinário de contas passa,
No meu nuamente exposto balanço interno
(onde o tédio, a languidez e alguma graça),
Como definir o produto, o matérico externo?
Trotinetas, chapéus, beringelas, torradeiras,
Estrelas, gazuas, escadas, porcelanas,
Galinhas, robalos, xaropes, videiras,
Desenhos, casas, ruas, malhas urbanas.
Também os tempos e os espaços, na sua essência,
Companheiros insuportáveis e definitivos,
Trazem consigo a morte por ciência,
Limitando a imperfeita teia dos motivos.
O que dizer das madrugadas, manhãs, noites, auroras,
Das paixões, breves, perenes, tristes, felizes,
Das idas e voltas, quando ris ou choras,
De altas educações, baixos desvios, pequenas dúvidas, e seus matizes?
No resumo contado do biográfico inquérito, se vejo a cadeira da solidão,
Olho-me, neutral, na geografia da distância,
Sei que para nada há segura resposta, mobília ou solução:
O destino é uma misteriosa contabilidade, sujeita a eterna errância.
As crianças tornam-se homens e mulheres e estes tornam-se velhos,
As plantas novas ganham troncos e sombras, despidas pelo inverno,
Sobre isto e o resto não posso instruir conselhos,
Prometer amor perfeito ou desamor eterno.
No curso das entranhas e delas para fora,
Sou alto saltimbanco, acrobata, equilibrista,
Pão nosso de cada dia, antes, depois, agora ...
Melhor alimento seria diamante, opala, ametista!
Eu, que protejo o silêncio das incontáveis palavras,
A vigília do barco que volta para o cais,
Quero que se saiba: espero, parto, sou o mar, a terra que lavras,
A semente progenitora, o fruto caído e o mais.
Estendo os braços, toco a copa das frondosas árvores e nem mereço,
Digo pai, mãe, filho, mulher, homem, amigo – é o preciso,
Chamo, grito, num círculo sem fim ou começo,
Tudo cobrirei de choro, gramática, loas, artes e riso.
Com lápis e papel escrevo do amor a corrente equação,
Somo, divido, subtraio, multiplico,
Sem, verdadeiramente, encontrar a solução,
Que a cada respirar, ansioso, suplico.
Na folha branca o contábil exercício – escrever, apagar, escrever, apagar,
Faço e refaço mil vezes a medida operação,
Digo e desdigo por saber falso o que estou a contar,
Pois nenhuma vã aritmética há-de resolver o sentido calor da tua mão.
-Sobre Jorge Barreto Xavier-
Nasceu em Goa, Índia. Formação em Direito, Gestão das Artes, Ciência Política e Política Públicas. É professor convidado do ISCTE-IUL e diretor municipal de desenvolvimento social, educação e cultura da Câmara Municipal de Oeiras. Foi secretário de Estado da Cultura, diretor-geral das Artes, vereador da Cultura, coordenador da comissão interministerial Educação-Cultura, diretor da bienal de jovens criadores da Europa e do Mediterrâneo. Foi fundador do Clube Português de Artes e Ideias, do Lugar Comum – centro de experimentação artística, da bienal de jovens criadores dos países lusófonos, da MARE, rede de centros culturais do Mediterrâneo. Foi perito da agência europeia de Educação, Audiovisual e Cultura, consultor da Reitoria da Universidade de Lisboa, do Centro Cultural de Belém, da Fundação Calouste Gulbenkian, do ACIDI, da Casa Pia de Lisboa, do Intelligence on Culture, de Copenhaga, Capital Europeia da Cultura. Foi diretor e membro de diversas redes europeias e nacionais na área da Educação e da Cultura. Tem diversos livros e capítulos de livros publicados.