Em dezembro do ano que passou li o meu primeiro Mishima, aconselhada pela minha prima depois de uma conversa sobre o meu fascínio pelo conceito de máscara social e todas as implicações que a(s) nossa(s) máscara(s) tem em nós. Há quem diga que Confissões de uma Máscara é a auto-biografia que Yukio Mishima, autor japonês que se suicidou com o ritual seppuku nos anos 70, nunca teve coragem de assumir.
A leitura do primeiro livro que Mishima escreveu com apenas 24 anos levou-me novamente onde tudo tinha começado, para mim: a Goffman e à sua Apresentação do eu na vida de todos os dias, que li com a ingenuidade do primeiro ano de faculdade na aula de Comunicação Interpessoal, e que me foi ficando como referência também nessa vida de todos os dias.
Para Goffman, estamos em constante performance, com a máscara que mais nos convém, num palco que é a vida, e vamo-nos cruzando com espectadores que são, também eles, atores. Nas interações sociais, importa “salvar a face”, que por outras palavras é a representação de si, para que essa face não caia.
É nestas trocas - em todas as relações - que entram os “modelos de adaptação às regras”, segundo Goffman. É neles que se encontram “a conformidade, o evitamento, os desvios secretos, as infrações desculpáveis” (Goffman, Apresentação do eu na vida de todos os dias). Importa nunca deixar cair a máscara.
Nas reflexões recorrentes que vou tendo sobre a minha máscara social e todas as outras com que me vou cruzando na vida, acabo inevitavelmente por tropeçar num conceito abstrato, mas relacionável com praticamente tudo na vida: a empatia. Ainda não percebi ao certo se a empatia é o que nos resta quando nos cai a máscara, se temos que nos socorrer dela para que nos aceitem tal e qual como somos, ou se, por outro lado, é algo que vamos desenvolvendo à medida que vivemos e nos relacionamos com os outros; que vai crescendo por detrás da máscara social e vai ficando cada vez mais à superfície, a transgredir nos limites da máscara.
Nestes tempos estranhos que vivemos, a interação social passou a ser mediada por ecrãs mas, de alguma forma, parecemos estar todos com menos máscaras. Obrigados a ficar nos bastidores do palco social e sem tempo para repensar que outros palcos passamos a ter, além dos habituais na Internet, parecemos estar empáticos e conscientes do lugar do outro. Ainda que a empatia se limite aos nossos pares e àqueles que nos são próximos.
Assim que a pandemia começou a despontar, livros como A Peste do Camus ou Ensaio sobre a Cegueira do Saramago dispararam para os tops de vendas. Há qualquer coisa que nos atrai -a nós, humanos - para narrativas que parecem semelhantes à nossa. Há uma busca incessante por empatia que procurámos em cada filme, em cada livro, em cada música. Como se o que está mais próximo de nós se tornasse mais válido que o resto.
Para os profissionais de saúde, é maior a sua luta na linha da frente. Para os artistas, é maior a incerteza do seu futuro. Para os professores, é maior a sua dificuldade em não conseguir comunicar com os seus alunos. Por aí fora. E tudo isso é válido. Todos os problemas são válidos. Mas, e a empatia pelos que não têm conseguido fazer com que a sua voz se ouça tão alto?
Há uma semana escrevi, a meias com o meu colega Ricardo, uma reportagem sobre o acesso à cultura por parte de pessoas com deficiência visual e com baixa visão. No dia anterior conversava ao telefone com o presidente da ACAPO, Tomé Coelho, quando a certa altura me disse que “o toque é o meio privilegiado de que as pessoas cegas se servem para contactar com a realidade circundante” e que “num momento em que é desaconselhado tocar nas coisas, é natural que as pessoas com deficiência visual se sintam mais afastadas da realidade.” Na mesma conversava, alertava-me para a dificuldade de alunos cegos acompanharem a telescola que, como se viria a comprovar, não possui audiodescrição.
Recupero essas frases de Tomé, que logo me deixaram alerta para o meu privilégio (ou os meus privilégios), porque de alguma forma me fizeram pôr em perspetiva até onde vai a minha empatia; a nossa empatia. Quantas vezes nos lembramos dos contextos que existem além dos nossos ou daqueles em que se inserem os que nos são próximos? Quantas vezes nos juntamos a lutas que não são nossas, mas nas quais acreditamos? E quantas vezes fazemos aquilo que defendemos publicamente?
Quando li Mishima não senti as dores de Kochan, a personagem principal, como se fossem minhas. Não conheço o contexto político japonês a fundo, nunca tive lutas interiores com uma homossexualidade escondida, nem tive pais a quererem que eu fosse algo que não era. A minha vida é totalmente diferente da sua, mas acho que foi esse distanciamento que nunca me fez esquecê-lo e recomendar a sua leitura sempre que tinha um pretexto para o fazer. O mesmo aconteceu com Encontros, um livro de entrevistas a Ailton Krenak, ativista indígena, que me abriu portas para outros universos que não conhecia, mas que passaram a ser um assunto primordial na minha vida de todos os dias.
Conhecer estórias que não são tão nossas pode ser uma forma de gerar empatia. Estar disposto a ouvir o que desconhecemos também. E quem sabe, um dia, quando nos cair a máscara, esta seja tudo o que nos resta.
-Sobre Carolina Franco-
A Carolina Franco é jornalista no Gerador. Nascida no Porto, em 1997, aprofundou o seu interesse e conhecimento na cultura e na arte enquanto estudou na Escola Artística de Soares dos Reis. Licenciada em Ciências da Comunicação pela Universidade Lusófona do Porto, viveu quatro meses em Ljubljana, na Eslovénia, onde teve a oportunidade de ser envolvida pela cultura pós-jugoslava e estudar Ciências Sociais. Entre 2018 e 2019 frequentou a pós-graduação em Curadoria de Arte da Universidade Nova de Lisboa - FCSH. Graças a estas experiências, tornou-se mais interessada no papel da cultura na sociedade em geral e nas comunidades locais - uma relação que procura aprofundar cívica e profissionalmente.