Perguntaram-me recentemente o que significa para mim ser mulher. E fiquei sem resposta. “Não sei”, respondi, enquanto procurava por qualquer coisa que pudesse acrescentar a estas míseras duas palavras. Repetí-as, apenas.
Simone de Beauvoir dizia que não nascemos mulheres, tornamo-nos mulheres. Judith Butler diz que, então, segundo essa lógica, não importa aquilo com nascemos entre as pernas. Tornamo-nos mulheres. Nascemos outra coisa qualquer. Uma tábua rasa de género, que a sociedade depois molda à sua medida? Ou algo mais semelhante aos que nascem ditos homens, que depois aprendemos a contrapor?
Há mulheres, daquelas que nascem com vulva, vagina e útero, que acham que são mesmo mulheres. Não querem mais nenhuma definição. Sentem-se mulheres, são-no com todos os clichês a que têm direito e exigem que isso seja reconhecido. Há mulheres, daquelas que nascem com pénis, que acham mesmo que são mulheres. Também o sentem com todos os clichês a que têm direito, mas nem sempre vêem esse seu direito respeitado.
Muitas vezes as mulheres-que-se-tornam-mulheres, daquelas que nascem já com todo o arsenal vulvístico, não gostam de ser colocadas na mesma caixa do que aquelas que se vão tornando mulheres por outras vias. Porque as vivências são diferentes, o estigma é diferente, porque aquelas mulheres que nasceram com pénis viveram uma parte da sua vida percepcionadas como homens e isso deveria dar-lhes outro tipo de denominação. Mas, serão as experiências das mulheres que muita gente vê como “mulheres a sério” também todas uniformes? De todo. Mas há um denominador comum, algo visto por muitas como desvantagem em termos de oportunidades ao longo da vida, que se distingue da desvantagem de quem sente que nasceu no corpo errado.
Temos, por outro lado, homens que vivem o mesmo desafio: nasceram com vulva. No trabalho de consciencialização sobre a endometriose, uma doença que acomete todas as pessoas que nascem com vulva (e, em casos raríssimos, homens que nascem com pénis), procurei incluir pessoas trans no meu discurso. Porque pretendo que a informação lhes chegue, porque merecem validação das suas dores e porque acredito e defendo que temos o direito a apresentar-nos à sociedade de acordo com o género com o qual nos identificamos. Tornamo-nos mulheres, diz Beauvoir. Pelos vistos, nem todas.
Há, no entanto, quem exija que esta comunicação seja feita sem que o termo “mulher” saia da equação. Porque as mulheres, as que nascem com vulva, sentem-se constantemente apagadas, invisíveis, e não apreciam ser reduzidas ao sexo com que nascem — acham ofensivo que as identifiquem como pessoas que nascem com vulvas porque sentem que é importante ser-lhes reconhecida a condição de mulher, com tudo de bom e mau que isso implica.
Eu compreendo isso. Há, aliás, muitos temas que abordo que se cingem a uma questão de género. Como mulher cisgénero, posso falar apenas da minha experiência e reconheço que mulheres cisgénero são, e foram ao longo da história, descredibilizadas em termos das suas dores, apenas porque são mulheres. Por outro lado, pessoas trans que nascem com vulva lidam com a imposição de uma invisibilidade cruel que tem efeitos nefastos.
Então, como resolver isto? As opiniões dividem-se. Há quem diga que o género não importa, mas importa. É por causa do género que estas discussões se acendem e que certas minorias, das que não encaixam no padrão que a sociedade definiu, são marginalizadas. O género pode ser uma construção social, mas ele existe e não vai deixar de existir tão cedo. Eu ser capaz de me assumir como uma coisa é importante para mim. Seja mulher, seja homem, seja gender fluid, non-binary ou algo que nem eu própria encaixe nestes papéis, eu sinto necessidade de me identificar para ser vista. Mais do que isso, devo a outres o direito de se identificarem como mais sentido lhes fizer.
Eu me identifico como mulher, mas continuo sem saber o que é que isso significa para mim. E continuo em constante aprendizagem sobre esta matéria, tentando ter um discurso inclusivo e ouvindo as histórias das mulheres que nasceram a ser chamadas como tal, mas também as de quem não se sente confortável nas caixinhas que a sociedade definiu.
-Sobre Catarina Maia-
Catarina Maia estudou Comunicação. Em 2017, descobriu que as dores menstruais que sempre tinha sentido se deviam a uma doença crónica chamada endometriose, que afecta 1 em cada 10 pessoas que nascem com vulva. Criou O Meu Útero e desenvolve desde então um trabalho de activismo e feminismo nas redes sociais para prestar apoio a quem, como ela, sofre de sintomas da doença. “Dores menstruais não são normais” é o seu mote e continua a consciencializar a população portuguesa para este problema de saúde pública.