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“O silêncio não é um modo/ de repouso ou suspensão/ mas de resistência”

Há muitos silêncios, eu sei. Não sei do que escrevo.Apenas sei o que escrevo. O…

Texto de Raquel Rodrigues

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Há muitos silêncios, eu sei.

Não sei do que escrevo.
Apenas sei o que escrevo.

O mais importante aqui é o que não se diz.

Se no tempo dos nossos antepassados faltava o novo e a vida parecia tão repetida (ou parece-nos tão repetida), sinto que a repetição que vivemos é maior, porque o novo é da ordem da transformação e a verdadeira transformação, creio, acontece na intimidade, quando a vida nos toca. Tudo o que é tocado não permanece igual. Etimologicamente, “tocar”, provem de tukkôn, que significa “puxar”, “provocar dano”, “apreender”, “afectar”. “Tocar” é também um verbo associado ao “tacto”, logo à sensação. Participa na raiz de “contacto”, uma ligação. Em língua portuguesa, quando ficamos comovidos/as, dizemos que ficamos “tocados/as”. Também recorremos a este verbo no universo musical, quando, manipulando um objecto, um som acontece.

Atravessamos um excesso de imagens e de conteúdos, que, muitos, não têm conteúdo nenhum. É o tempo do ruído e o perigo é deixar de o ouvir. Passámos a dizer “produzir” em vez de “criar”. Parece-me que tem que ver com o tempo, com a experiência do tempo. A criação é lenta. Que horror é este, ao silêncio, à paragem? Que medo é este? Qual o silêncio atropelado por detrás disto?

E as estações ensinam-nos tanto. Ensinam-nos a esperar. É preciso ter paciência com os frutos. É preciso ter paciência com as palavras. É preciso que amadureçam, as palavras frutos, para as comermos e convivermos com elas por dentro, para nos tocarem. Faz parte apercebermo-nos de que algumas não têm sabor e outras serão escolhidas. Estas serão um fio de sumo ou de luz que seguimos, e que tantos chamam de vocação. Mas esperar é atravessar o silêncio e atravessar é um movimento de esperança… E estamos tão desesperados. Será que estamos desesperados porque temos sido assim “produzidos”? Tudo é sempre para ontem. Estamos sempre em dívida. As prioridades são-nos trocadas e temos de ceder para sobreviver. Tantos encontros adiados… Tantos desejos na gaveta. Temos de estar sempre a render e outra lógica é descrita como não fazer nada, perder tempo. Fazer tornou-se o verbo mais importante do mundo, o que divide utilidade de inutilidade e, por isso, estabelece hierarquias entre as vidas, muitas vezes uma vontade escondida por argumentos vários, cuja validade é inquestionável para um mundo dito progressista, avançado. Na verdade, este poder sem rosto sonha com um determinismo que garante o domínio, por via do previsível, como uma produção em série. Fazemos estudos de consumidores. Colocamos comportamentos em tabelas. Utilizamos, tantas vezes, a expressão “optimizar processos” e o que sobra foi monopolizado pelo inglês. (Reparemos na história das sociedades a partir das palavras mais recorridas em cada momento.)

Porém, a confiança está em nós desde o início. O desespero pode perturbar, mas há uma memória silenciada e, nestes gritos, possivelmente, silenciosa. Maria Filomena Molder refere que os elementos da nossa vida são uma aceitação de viver, entrando “numa relação entre a confiança e a adesão ao facto de termos nascido”[1]. A autora situa a presença desta acção numa pré-existência, uma vez que o recém-nascido “agarra-se à vida numa confiança originária”[2]. Num segundo nível, há um esforço, que já é uma decisão, o de “despertar para a vida”, a qual corresponde, na visão de Maria Filomena Molder, a um exercício espiritual, no sentido de Pierre Hadot, que o define assim: “Trata-se de actos do intelecto, da imaginação ou da vontade, caracterizados pela sua finalidade: graças a eles, o indivíduo esforça-se em transformar a sua maneira de ver o mundo, com o fim de transformar-se a si mesmo. Não se trata de informar-se, mas de formar-se.”[3] É aqui que “viver não é um facto, mas um bem”, escreveu Fernando Gil[4].

Num tempo em que a liberdade enche a boca, felizmente, parece haver uma escravidão invisível que se confunde com a própria liberdade. Gonçalo M. Tavares, numa entrevista, falou-me que temos, actualmente, uma imensa possibilidade de acessos e chamou a atenção para o risco de estarmos sempre à mão. Não é uma prisão estarmos sempre acessíveis? Não é quase uma ordem ter um telefone cheio de aplicações, um bom computador, …, …, …, para existirmos, fazermos parte, considerarmo-nos uma comunidade, uma rede? Mas, no meio de tudo isto, que parece ser tudo, será que damos o que lançamos? Será que acolhemos o que nos chega? Podemos falar de dádiva? Onde estamos quando recebemos?

O consumo. O consumo. O consumo. O consumo. O consumo de objectos, de experiências, de pessoas. E chamamos isto de liberdade. Reparei que, neste momento de quarentena, o telefone tornou-se uma prótese mais apertada da minha mão. Reparei que havia uma vontade de me ligar. A quê? A quem? Perdi-me nalgumas tardes nessa procura. Para onde foram essas horas, onde estão? Estamos tão ocupados em ocupar um espaço sem nos ocuparmos. Estamos tão preocupados em sermos ocupados. Não vivemos um novo tipo de colonialismo? Recentemente tenho ouvido tantas vezes a palavra “entretenimento”. Porque temos de nos entreter? Perguntei a um homem quais eram as palavras da sua vida, aquelas com que tem feito caminho… E ele não sabia. E eu gostava tanto dele, que me compadeci (“sofrer com”). Mais do que as palavras, esta resposta contava-nos do silêncio.

Tenho pressentido que viver é estar atento. Não o viver que é um “facto”, mas aquele que é um “bem”. Estar atento é a grande forma de cuidar, de si, dos outros, do mundo. Também só a atenção permite a gratidão, que concorre sempre para a felicidade. Simone Weil, em «A atenção e A Vontade», reflecte que a atenção “pressupõe fé e amor”, acrescentando que “só o que é indirecto é eficaz. Não fazemos nada se não tivermos primeiro recuado.”[5] A verdadeira aprendizagem provem de um desejo e é este que convoca a atenção. Geralmente, tomamos o desejo como algo que coincide com o desejado. Mas, quando atento no que desejo, distancio-me para o ver. E preciso não coincidir para saber que amo. Caso contrário, sou eu, não eu com um/a outro/a. Regresso ao silêncio enquanto campo fértil, não para a informação, mas, mais longe, mais vertical, para a formação, a transformação, de que fala Hadot. Talvez aí esteja o verdadeiro encontro com a vida desvirtualizada, e não desvitalizada. Encontrar é o contrário de esbarrar.

Mas é um exercício, um exercício de fidelidade, de um fio que, dia-a-dia, iluminamos para não perdermos a palavra exacta, que nos será revelada pelo silêncio, tão frágil à invasão do ruído. É um exercício de resistência estar no presente, estar com o avesso.


“O silêncio
não é o oposto
mas o avesso”

Tolentino Mendonça «O silêncio»[7]


[1] José Tolentino Mendonça, «O silêncio não é um modo», A Papoila e o Monge, A Noite Abre Meus Olhos, Lisboa, Assírio & Alvim, 2014, p.297

[2] Maria Filomena Molder, «Ó cousas tão vãs, tão mudaves/ Qual é tal coração qu’em vós confia?», ciclo de conferências Não te esqueças de viver, org. Culturgest, 8 de Fevereiro de 2016, 47m43s – 47m47s. Disponível em: http://www.culturgest.pt/arquivo/2016/02/maria_filomena_molder.html.

[3] Ibid., 48m55s – 48m56s 

[4] Pierre Hadot, «Ejercicios Espirituales», Ejercicios Espirituales y Filosofía Antigua, Madrid, Siruela, 2006, p.23.  (tradução minha)

[5] Fernando Gil, «As razões de ser», Acentos, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2005, p.146.

[6] Simone Weil, «A atenção e A Vontade», A Gravidade e a Graça, Lisboa, Relógio D’Água, 2004, p.118

[7] José Tolentino, Op.cit., p.317

-Sobre Raquel Botelho Rodrigues-

Para a Raquel, a biografia não é o curriculum. A escrita da vida é algo que ainda procura ler e tem a certeza de que este “ainda” será para sempre. Por motivos de força maior, porque nos temos de estar sempre a definir, diz-nos que trabalha na equipa editorial do Gerador.

Texto de Raquel Botelho Rodrigues
Fotografia de David Cachopo

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