fbpx
Apoia o Gerador na construção de uma sociedade mais criativa, crítica e participativa. Descobre aqui como.

Olhar para dentro

Há cinco anos, Bo Burnham decidiu abandonar os palcos. Os ataques de pânico que tinha…

Opinião de Marco Mendonça

Apoia o Gerador na construção de uma sociedade mais criativa, crítica e participativa. Descobre aqui como.

Há cinco anos, Bo Burnham decidiu abandonar os palcos. Os ataques de pânico que tinha durante os seus espetáculos de stand-up tornaram-se recorrentes e demasiado violentos. Dedicou-se a alguns projetos de cinema, como o muito aclamado Promising Young Woman, onde participou como ator, e Eighth Grade, que escreveu e realizou. No início de 2020, quando se sentiu novamente capaz de regressar à vida de performer, a pandemia obrigou-o a manter-se dentro de casa por tempo indefinido. Antes que a humanidade se extinguisse de vez, Burnham fechou-se no seu quarto a criar. Para além dos habituais teclados, pedais e microfones, tinha uma câmara e umas quantas ideias mórbidas para levar a sua saúde mental a um novo declínio. Durante um ano, deixou que a desgraça do mundo o inspirasse e refletiu sobre o seu lugar na comédia enquanto homem branco, heterossexual, privilegiado, com temas épicos de reparação e redenção ideológica.

Enquanto os artistas se esforçavam por reinventar o seu trabalho no formato digital, Burnham construía o seu regresso no desconforto do lar onde já estivera praticamente isolado durante cinco anos. Inside, o resultado dessa epopeia solitária, foi lançado recentemente na Netflix. É um filme escrito, realizado, interpretado e editado pelo próprio. Tudo acontece num único lugar, o quarto/escritório onde escreveu e ensaiou muitos dos seus números musicais mais conhecidos.

Na primeira vez que se dirige ao público, Burnham e a sua câmara estão de frente para um espelho, ou seja, ele não fala diretamente para a câmara, mas sim para o reflexo da mesma. Pensei que esta encenação poderia sugerir duas coisas: primeiro, o performer cria uma espécie de separador onde se permite ser ele próprio, distanciando-se da sua obra e falando, sem qualquer filtro emocional, intelectual ou artístico, sobre as razões que o levaram a fazer o filme e sobre o processo de construção do mesmo. Segundo, se assumirmos que a câmara representa o olhar do público, vê-la refletida no espelho pode ser um convite subtil de Burnham para que olhemos também para nós próprios.

Os seus momentos de desabafo escalam em emoção à medida que o final se aproxima, e aquilo que parece um exercício hiperconsciente de autocrítica ou, se quisermos, autocensura, - com cortes brutos entre cenas e mudanças repentinas na estética e no conteúdo - pode também ser uma pista para a tendência evasiva de certos grupos da sociedade moderna quando as conversas ameaçam a sua noção de privilégio. Mesmo evitando moralismos sobre temas que, noutro tempo, teriam feito muitos espectadores desistir do seu filme a meio, Burnham não deixa de lançar algumas perguntas fundamentais: conseguimos conversar sobre o que quer que seja? Conseguimos aceitar que não temos de ter opiniões formadas acerca de tudo? E com quem estamos mesmo a conversar quando recorremos a um ecrã para expressar essas opiniões?

A Internet é um alvo incontornável para Burnham. Os temas FaceTime with my Mom (Tonight), Sexting, White Woman’s Instagram e Welcome to the Internet refletem com desconcertante precisão os clichés das relações interpessoais no mundo digital. Rimo-nos de Burnham como nos devíamos rir de nós próprios.

Entre as mesmas quatro paredes, vemo-lo tropeçar de microfone na mão, em busca do plano perfeito, da luz perfeita, da pose perfeita. Percebemos que o perfeccionismo que o define como criador é também o que o faz questionar cada vez mais a pertinência artística e política da sua arte.

Ao testemunhar a sua claustrofobia, dei por mim a pensar sobre a forma como gastámos o tempo em que estivemos confinados. Nas paredes das nossas casas, projetámos paisagens de esperança e otimismo, mas o aborrecimento e a melancolia forçaram as nossas cabeças em direção ao chão. Com o caos do lado de fora, restava-nos olhar para dentro. E dentro, no lugar da liberdade, da informação, das emoções, também encontrámos o caos. Para muitos, a criatividade deu lugar à apatia e a apatia tornou-se um crachá de inteligência emocional. Usámos emojis de risos enquanto chorávamos, aprendemos a ler a linguagem corporal das salas Zoom, desejámos ter alguém com quem conversar, um público mudo e adormecido, mas empático ao ponto de legitimar as nossas crises existenciais disfarçadas de opiniões. Abraçámos os pequenos momentos de inspiração que, insidiosamente, nos foram convencendo que o filme de que fazíamos parte caminhava para um final feliz. Mas talvez Burnham soubesse, desde sempre, que brincar com assuntos sérios, como o capitalismo, a desinformação, o privilégio branco, ou a opressão sistémica, também significa aprender e sofrer com eles.

A arte não cura, mas pode arder. E Burnham foi generoso ao ponto de se deixar arder sozinho, fechado no seu quarto e nas suas ideias, para depois nos oferecer as cinzas. Não assistimos, necessariamente, ao regresso do humorista. Assistimos, talvez, a uma representação auto-irónica do processo de reeducação pela qual muitos homens brancos privilegiados passaram ou já deviam ter passado.

-Sobre Marco Mendonça-

Marco Mendonça nasceu em Moçambique, em 1995. É licenciado em Teatro pela Escola Superior de Teatro e Cinema. Estreou-se nos The Lisbon Players. Em 2014, começou a trabalhar com a companhia Os Possessos. Estagiou, entre 2015 e 2016, no Teatro Nacional D. Maria II, onde participou em espectáculos de Tiago Rodrigues, João Pedro Vaz, Miguel Fragata e Inês Barahona, entre outros. Em 2017, trabalhou numa criação de Tonan Quito e fez o seu primeiro espectáculo com a companhia Mala Voadora.  Em 2019, estreou-se como autor e co-criador em “Parlamento Elefante”, projeto vencedor da primeira edição da Bolsa Amélia Rey Colaço. Atualmente, integra o elenco de “Sopro” e “Catarina e a beleza de matar fascistas”, de Tiago Rodrigues.

Texto de Marco Mendonça
Fotografia de Joana Correia

Publicidade

Se este artigo te interessou vale a pena espreitares estes também

23 Abril 2024

O triângulo da pobreza informativa na União Europeia. Como derrubar este muro que nos separa?

23 Abril 2024

Levamos a vida demasiado a sério

18 Abril 2024

Bitaites da Resistência: A Palestina vai libertar-nos a nós

16 Abril 2024

Gira o disco e toca o mesmo?

16 Abril 2024

A comunidade contra o totalitarismo

11 Abril 2024

Objeção de Consciência

9 Abril 2024

Estado da (des)União

9 Abril 2024

Alucinações sobre flores meio ano depois

4 Abril 2024

Preliminares: É possível ser-se feliz depois de um abuso?

4 Abril 2024

Eles querem-nos na guerra

Academia: cursos originais com especialistas de referência

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Narrativas animadas – iniciação à animação de personagens [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Viver, trabalhar e investir no interior [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Comunicação Cultural [online e presencial]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Práticas de Escrita [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Introdução à Produção Musical para Audiovisuais [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Soluções Criativas para Gestão de Organizações e Projetos [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Planeamento na Produção de Eventos Culturais [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

O Parlamento Europeu: funções, composição e desafios [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Iniciação à Língua Gestual Portuguesa [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Jornalismo e Crítica Musical [online ou presencial]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Iniciação ao vídeo – filma, corta e edita [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Pensamento Crítico [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Planeamento na Comunicação Digital: da estratégia à execução [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Fundos Europeus para as Artes e Cultura I – da Ideia ao Projeto

Duração: 15h

Formato: Online

Investigações: conhece as nossas principais reportagens, feitas de jornalismo lento

22 ABRIL 2024

A Madrinha: a correspondente que “marchou” na retaguarda da guerra

Ao longo de 15 anos, a troca de cartas integrava uma estratégia muito clara: legitimar a guerra. Mais conhecidas por madrinhas, alimentaram um programa oficioso, que partiu de um conceito apropriado pelo Estado Novo: mulheres a integrar o esforço nacional ao se corresponderem com militares na frente de combate.

1 ABRIL 2024

Abuso de poder no ensino superior em Portugal

As práticas de assédio moral e sexual são uma realidade conhecida dos estudantes, investigadores, docentes e quadros técnicos do ensino superior. Nos próximos meses lançamos a investigação Abuso de Poder no Ensino Superior, um trabalho jornalístico onde procuramos compreender as múltiplas dimensões de um problema estrutural.

A tua lista de compras0
O teu carrinho está vazio.
0