Há dias que nos lembram outros dias. As memórias dos dias sobre os dias são uma manufatura ardilosa, entre um silêncio interior e auroras em lugares secretos, por vezes só meus. Irrompem uterinas, são filhas minhas e de alguma forma minhas mães.
Herberto diz que as mães são as mais altas coisas que os filhos criam. As memórias de que sou filho, de que sou mãe, são uma das altas coisas que me criam.
Gosto muito das memórias dos dias felizes. Sou tão filho delas e ao mesmo tempo, protejo-as, maternalmente.
Há dias que fixo de tal maneira, tornam-se fotografias, quietas, suspensas dos meus olhos, por dentro. E quando ganham tal lisura, uma espécie de bidimensionalidade, procuro ver para lá dos álbuns de recordações, recusar essa parede onde me projeto, de onde me lanço. Fico com medo de perder os fios complexos que ligam as memórias entre si, e a essas outras coisas de que me não lembro mas que são o colo delas.
Gosto muito das coisas de que não me lembro. Largar no olvido parte das coisas más. E também gosto das coisas boas esquecidas, que cuidam das ações que constroem casas, mostram mapas do tempo e do espaço – assim, sempre que parto, parto sobre alicerces benfazejos.
Os meus dias felizes estão cheios de castanhas assadas no lume da lareira e guardadas – quentinhas - numa cesta, embrulhadas em pano cru.
E há os carinhos que protegem o centro de algumas certezas. As pessoas que amo. As pessoas que me amam.
Um dia, estava no Novo México. Tinha sido uma viagem cansativa, de Nova Iorque para Dallas, de Dallas para Albuquerque, tudo de avião, e depois de carro, para subir em direção a Santa Fé, no meio da secura do planalto desértico e do calor do Verão. O hotel era uma espécie de rancho de cowboys, tudo em madeira, com tapetes indígenas pelas paredes, recordando a origem mestiça do território. Vi no quarto, sobre a secretária, um toblerone que anunciava um serviço de massagens e decidi marcar uma, para relaxar. A massagista estava conversadora e eu não me importei. Contou-me que, durante muitos anos, tinha sido enfermeira num centro de cuidados paliativos para pessoas de idade, em fim de vida. Disse-me que os seus pacientes que estavam lúcidos - nos últimos dias - não evocavam as suas vitórias profissionais, os seus sucessos públicos, a sua riqueza. O que lhes importava mais era lembrar a família, os amigos. Os dias felizes com a família, com os amigos. Estas eram as suas memórias primeiras.
Sei que quando o meu momento chegar, as ações presentes e pretéritas, se vão desvanecer. E não irei com glórias ou medalhas.
Enquanto houver memória, os dias felizes estarão no lugar amoroso, no segredo das cordas íntimas e silenciosas, de tão intensas e sonoras.
Pior será o antes, como diz Eduardo, a morte dos outros, pois a nossa, essa não veremos. Há mortes que retiram para sempre parte de nós (Roth dixit). Quando alguém que se ama parte, quando alguém tão próximo que nem se consegue perceber o sentido da distância se ausenta, dá-se o estranho fenómeno de um vazio em torno, um vazio que nunca mais será preenchido.
Nostalgia, saudade, dor. Mas depois há os dias felizes, que tudo preenchem, entram vorazmente com a luz solar, adormecem na doçura das noites cálidas. Não houvesse a dor, teria irrompido forte e sonoro o riso?
Pensei nas coisas todas que faço por aí, no quotidiano, no tempo longo. No afã de formiga, no labor de mula, nas horas mal dormidas, no cansaço endémico. Não, não tenho por elas o afeto que tenho pelas pessoas que amo. Já tive, é certo. Houve altura em que os meus filhos eram os projetos que fazia. Dava-lhes berço como aos meninos pequenos e queria fazê-los crescer quais plantas bem cuidadas. Depois nasceram os filhos (não digo os meus filhos ou os nossos filhos, bem sei que lhes pertenço mas que eles não me pertencem) e alguma coisa dentro de mim mudou – eles passaram a ser o meu abrigo.
A verdade é que a minha relação com os projetos que faço passou a ser mais saudável. A ausência de sentido de posse, de afetação amorosa, deu-me distância para melhor os pensar e melhor os apreciar.
E guardo o entusiasmo pelas ideias que estão no coração das coisas, no que elas preparam, movem, resultam. Alegria no trabalho feito, nas alegrias que estão nas pessoas para quem o trabalho é feito.
Agora, neste tempo de estranheza e temor, projetar a alegria comunitária é um sopro necessário, uma arquitetura que precisa de crescer a muitas mãos. Dar espaço para o tempo amoroso e criar o entorno que o torna possível.
Lembro um poema, escrito por um Jorge qualquer, à entrada do quarto mês do calendário:
Brevemente os finos braços
Nas plantas rasteiras
Dobrar-se-ão aos ventos de Abril
Exala a terra o perfume do viço
Das ervas quebradas
Ante os passos matinais
Um animal atravessa célere
A ponte
Que une (ou separa) todas as margens
Cinco aves acutilantes
Penetram o azul superior
Em busca solar
Enquanto um fogo arde
No âmago das palavras
Sós
Haverá um sentido
Uma autoridade
Que incendeie o deserto?
-Sobre Jorge Barreto Xavier-
Nasceu em Goa, Índia. Formação em Direito, Gestão das Artes, Ciência Política e Política Públicas. É professor convidado do ISCTE-IUL e diretor municipal de desenvolvimento social, educação e cultura da Câmara Municipal de Oeiras. Foi secretário de Estado da Cultura, diretor-geral das Artes, vereador da Cultura, coordenador da comissão interministerial Educação-Cultura, diretor da bienal de jovens criadores da Europa e do Mediterrâneo. Foi fundador do Clube Português de Artes e Ideias, do Lugar Comum – centro de experimentação artística, da bienal de jovens criadores dos países lusófonos, da MARE, rede de centros culturais do Mediterrâneo. Foi perito da agência europeia de Educação, Audiovisual e Cultura, consultor da Reitoria da Universidade de Lisboa, do Centro Cultural de Belém, da Fundação Calouste Gulbenkian, do ACIDI, da Casa Pia de Lisboa, do Intelligence on Culture, de Copenhaga, Capital Europeia da Cultura. Foi diretor e membro de diversas redes europeias e nacionais na área da Educação e da Cultura. Tem diversos livros e capítulos de livros publicados.