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Os Jogos Olímpicos mais feministas de sempre?

Este é o primeiro fim-de-semana em que não me vou sentar no sofá a ver…

Opinião de Carolina Franco

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Este é o primeiro fim-de-semana em que não me vou sentar no sofá a ver os Jogos Olímpicos. Mais do que isso, é o primeiro fim-de-semana em que não vou ver os Jogos Olímpicos no ano em que me propus a fazê-lo com um olhar mais atento. Dias antes da sessão de abertura, cruzei-me com um manual de boas práticas para jornalistas que dava dados importantes sobre as desigualdades que ainda existem no desporto, e que alertava para a importância de ter cuidado na forma como se enquadra as mulheres nas notícias. Pareceu-me promissor. Quando percebi que os Jogos Olímpicos de Tóquio iam ser os primeiros com 49% das participantes mulheres (no Rio de Janeiro tinham sido 45%), fiquei convencida.

Diz-se que as origens dos Jogos Olímpicos estão na Grécia, há cerca de 2500 anos, nas primeiras competições entre atletas, em Olímpia, feitas em honra de Zeus, pai de todos os deuses gregos. Nessa altura, as mulheres não eram consideradas cidadãs e, por isso, já seria expectável que não participassem neste tipo de atividades. Depois de séculos sem estes jogos acontecerem, em 1894 formou-se o Comité Olímpico Internacional e dois anos depois Atenas recebeu a primeira edição dos Jogos Olímpicos mais próximos do formato que conhecemos hoje. Só em 1900, em Paris, as mulheres puderam competir pela primeira vez, e apenas em cinco desportos: ténis, croquet, equitação e golfe. Em 997 atletas, 20 eram mulheres. 

Na exposição virtual Women in the Olympics, no National Women’s History Museum, houve uma fotografia que me fez parar. Está datada de 1908 e mostra Katharine Harley a jogar golfe com um vestido comprido e um chapéu de aba larga, numa aparência que qualquer mulher da sua época, e que fosse de uma classe elevada, podia ter. Até aos loucos anos 20 mostrar os tornozelos era um ultraje e, por isso, Harley estava certamente vestida conforme as expectativas sociais do que era ser-se mulher numa sociedade patriarcal. Não sei se estaria confortável, talvez até estivesse, mas não me parece que praticar desporto com uma roupa-quase-de-gala fosse tão confortável assim. No meio da dúvida, fica uma certeza: aos olhos da sociedade ocidental da época, não havia nada de errado ali. 

Ainda antes dos Jogos Olímpicos deste ano, a decisão da equipa feminina de andebol da Noruega face a um regulamento controverso trouxe um tema que viria a ser levantado também em Tóquio, e que de certa forma se relaciona com Katherine Harley e com todas as mulheres desportistas. Decidiram não usar o seu equipamento habitual, o já consensualmente aceite, um biquíni, e trocaram-no por uns calções. Esta decisão surgiu porque se sentiam desconfortáveis ao ter partes do seu corpo tão expostas — o que não acontece na versão masculina do equipamento — e cada jogadora foi multada num valor de 150€ por incumprimento das normas. De facto, o regulamento da entidade que gere o circuito internacional é bastante claro: “as jogadoras são obrigadas a jogar sempre de biquíni e estão proibidas que a parte de baixo do equipamento cubra mais de 10 centímetros da parte superior das pernas para que haja ‘atratividade’ e mais patrocínios”, como lembrou na altura do acontecimento o Jornal de Notícias. 

Já em Tóquio, a equipa de ginástica artística alemã optou por usar um fato que cobre todo o corpo, em vez do habitual body em que as pernas ficam totalmente descobertas. Sarah Voss, ginasta da equipa alemã, já tinha dito publicamente que “na ginástica, fica mais duro e difícil [sentirmo-nos bem na nossa pele] quando o nosso corpo de criança começa a crescer” e que apesar de em criança não lhe fazer confusão ter de usar o body, “quando a puberdade começou, quando o período apareceu” começou a sentir-se “cada vez mais desconfortável”. Num artigo para o El País, Begoña Gómez Urzaiz recorda um estudo de uma professora de educação-física e fisioterapeuta norte-americana, Emily Wughalter, datado de 1978, no qual cunhou o termo “the female apologethic” para se referir ao fenómeno de se ter de corresponder aos estereótipos de género femininos através da roupa e do restante aspeto, já que a força na performance se “aproxima da dos homens” e esta seria uma forma de contrariar “os estereótipos de lesbiandade associados às atletas na época”. Historicamente, é negado às mulheres um dos direitos mais fundamentais na humanidade, o direito à escolha. 

Este ano, Simone Billes escolheu não competir mais, depois de o seu corpo ter dado sinais de que precisava de parar. Este momento acabou por servir para alertar para a importância da saúde mental das atletas de alta competição, e trouxe à tona um assunto que importa que não se esqueça. Durante vários anos, Simone Billes, bem como centenas de outras atletas, foi abusada sexualmente por Larry Nassar, um osteopata que trabalhava ao serviço da equipa nacional de ginástica dos Estados Unidos da América. Em 2018, Billes disse numa entrevista que Nassar tirou uma parte de si que nunca conseguiria recuperar. Larry Nassar fê-lo após treinos, no Rancho Károlyi, onde as atletas se preparavam para os olímpicos num ambiente hostil, mas também entre competições, inclusive nos Jogos Olímpicos de Londres de 2012. Como é que conseguiu fazê-lo durante tanto tempo? Tendo a proteção da própria Federação Nacional de Ginástica e fazendo as vítimas acreditar que tais práticas faziam parte da terapia de recuperação. 

Durante décadas, muitas destas vítimas viveram em silêncio. E é cada vez mais evidente que historicamente, aliado à negação do direito às escolhas das mulheres, o silêncio foi funcionando para que este e outros agressores continuassem nas suas vidas como se nada se passasse. Ser mulher é lidar com o silenciamento e com a frustração de nos sentirmos impunes — mas é muito mais, também. 

Nos estudos de género, esta questão em torno do que é ser-se mulher leva-nos, inevitavelmente, ao Segundo Sexo de Simone De Beauvoir e à frase que dita que ser mulher não é uma condição destinada à nascença: “não se nasce mulher, torna-se mulher”. É, por isso, curioso pensar nos critérios que determinam o que é ser-se mulher em provas como os Jogos Olímpicos, e o que é permitido dentro do conceito de mulher no desporto. Num artigo para a Cosmopolitan, Paka Díaz dizia que estes foram os Jogos Olímpicos “mais feministas de sempre”. Na imagem de capa, Ana Peleteiro, Yulimar Rojas e Patricia Mamona seguram as bandeiras dos seus países depois de terem vencido os três primeiros lugares no triplo salto. O argumento de Díaz prende-se, sobretudo, com a representação de mulheres em todas as modalidades desportivas — um feito histórico, é certo — e à tomada de posição de várias mulheres, tanto em decisões como as das atletas alemãs, como nas palavras de outras atletas nos seus discursos e entrevistas. Entre elas estão Raven Saunders, que dedicou a sua vitória no lançamento de peso a todas as vítimas de opressão, fazendo um X com os braços, no pódio, que representava a "interceção onde todas as pessoas que são oprimidas se cruzam”; mas também Ona Carbonell, atleta de natação sincrozinada espanhola que foi mãe recentemente e foi impedida de levar o seu bebé, que está no processo de amamentação, para Tóquio. 

A impossibilidade de ser uma “mãe olímpica” durante o período dos Jogos serviu de mote a um artigo de opinião de Lindsey Crouse para o New York Times, no qual relembrou que não só não é possível viajar com os filhos para provas olímpicas, como ser mãe representa, à partida, uma quebra no investimento de patrocinadores nas atletas, e um corte no pagamento quando estas faltam a corridas por questões relacionadas com a gravidez e o parto. Allyson Felix foi uma dessas mulheres atletas e, depois de a Nike ter mudado o seu contrato, criou a sua própria marca de sapatilhas desportivas. Na campanha da marca, surge com as suas medalhas ao peito e a cicatriz do parto visível, numa tomada de posição que deixa claro o compromisso que levou à criação da marca: combater a desigualdade no desporto. 

E enquanto algumas mulheres nos Jogos Olímpicos tiveram, ou criaram o seu espaço, para bater o pé, outras continuaram a ser discriminadas, em Tóquio e nos seus países. Gong Lijiao, mulher chinesa e vencedora do ouro no lançamento de peso, foi questionada por um jornalista no seu país se tinha “planos de mulher” para a sua vida. An San, arqueira sul-coreana vencedora do ouro, foi considerada “demasiado feminista” por ter o cabelo curto — o que motivou mais mulheres sul-coreanas a quererem cortar o cabelo em solidariedade consigo. Porque ser mulher implica não poder ter uma aparência “masculina”. Implica ter de corresponder a uma série de expectativas e de regras — da competição, do país e de outras pessoas que nada têm que ver com a sua vida. 

Um dos momentos mais marcantes da competição deste ano foi a participação de Laurel Hubbard, a primeira mulher assumidamente trans a competir na história dos Jogos Olímpicos. Em torno de Hubbard surgiu a questão dos seus níveis de testosterona, já que esse é um dos parâmetros de seleção para os Olímpicos em algumas categorias. Os níveis altos de testosterona impediram duas atletas cisgénero Christine Mboma e Beatrice Masilingi, naturais da Namíbia, de competir este ano nas distância de meio-fundo e 400 metros. Tal como Caster Semenya, a mulher que se tornou numa espécie de ícone desta causa, onde se apontam os dedos às regras recém-criadas que parecem ter como objectivo específico impedir a participação de algumas. Mboma acabou mesmo por levar a prata na prova dos 200 metros — o que lhe valeu os comentários de um ex-atleta polaco que exigia que se provasse que Mboma era “mesmo uma mulher”. Independentemente dos seus níveis de testosterona, Laurel Hubbard, Christine Mboma, Beatrice Masilingi e Caster Semenya são mulheres. Independentemente do que o Comité Olímpico definir para as suas categorias. 

Cada vez que uma atleta pisa uma pista, um tapete ou entra numa piscina, leva consigo o peso e a força da sua ancestralidade. Estão lá as histórias de mulheres lésbicas que sofreram de discriminação durante toda a sua vida, das mulheres negras brasileiras filhas de empregadas domésticas que traçaram o seu caminho contra o destino que lhes podia ser indicado, das mulheres que viveram um pós-parto duro, das mulheres que passaram por um processo de transição para finalmente poderem viver em plenitude. Não se espera mais do que a consciência de que todas elas são diferentes, e ainda assim são mulheres. Eu não espero mais do que um espaço seguro para todas elas. Quem sabe já em Paris 2024.

-Sobre Carolina Franco-

A Carolina Franco é jornalista no Gerador. Nascida no Porto, em 1997, aprofundou o seu interesse e conhecimento na cultura e na arte enquanto estudou na Escola Artística de Soares dos Reis. Licenciada em Ciências da Comunicação pela Universidade Lusófona do Porto, viveu quatro meses em Ljubljana, na Eslovénia, onde teve a oportunidade de ser envolvida pela cultura pós-jugoslava e estudar Ciências Sociais. Entre 2018 e 2019 frequentou a pós-graduação em Curadoria de Arte da Universidade Nova de Lisboa – FCSH. Graças a estas experiências, tornou-se mais interessada no papel da cultura na sociedade em geral e nas comunidades locais – uma relação que procura aprofundar cívica e profissionalmente.

Texto de Carolina Franco
Fotografia da cortesia de Carolina Franco

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