Uma vida no campo, à semelhança de H. D. Thoreau, foi aquilo que me presenteou esta época de confinamento.
Saí de Lisboa afogueada, sem saber bem o que levar e sem data prevista de regresso. Parti no dia seguinte ao da gravação do meu próximo álbum, assaltada por dúvidas certamente transversais a todos, mas com ênfase particular na pergunta inevitável: o que irá acontecer à vida que conheci, quando regressar à capital?
Era uma saída estratégica para o campo, ponderada tanto quanto a impulsividade me permitiu ao longo de dois dias: “Queres vir? Decide, se quiseres vamos buscar-te no fim de semana.”
Sim. Foi a resposta.
Para trás ficou o projeto de disco, agora com lançamento para data incerta, um mestrado de aulas suspensas, o apartamento em Arroios, os concertos cancelados, os pais em demanda no serviço nacional de saúde, com palavras escassas, cautelosas, talvez com intuito de proteger, em suma: ficou tudo o que parecia convergir para um espaço infinito onde a imaginação patinaria em freestyle rumo a uma visão apocalíptica e em que a vida, tal como a conhecia, era agora completamente posta em modo pausa.
Inesperadamente, esta garganta ficou sem entender bem qual a sua função… aliás, todo o meu corpo recebia informações contraditórias vindas de um cérebro desordenado. Qual a resposta adequada? Qual a dose sensata de preocupação? Qual o plano de contingência e manutenção da sanidade mental quando tudo se desvanecia à mente desarmada?
O corte com a vida citadina só se fez sentir passados largos dias após a fuga. Até aí, apenas um sentimento plácido de um quase estado de férias pairava na nova morada, amigos e crianças numa casa de campo onde matar as saudades ocupava tranquilamente todas as horas do dia.
Crianças, uma casa com crianças, que coisa rara nos dias em passo de corrida do meu quotidiano na capital… ter tempo para estar com crianças… ter tempo para pensar em ter crianças… assuntos recorrentes que assombravam as minhas noites, tornando-as, por vezes, insomnes, num sexto andar paralelo à Almirante Reis…
Enquanto a minha vida se estancava na cidade e as perspectivas de trabalhadora independente das artes se estrangulavam mais a cada dia, os pulmões iam ganhando novo fôlego com o ar puro do pinhal e as veias expandiam-se com os despertares ao som dos pássaros e dos passos alegres das crianças, nas suas correrias descalças, abafadas pelas meias num jogo de escondidas, no qual os adultos, sem saber, participam enquanto dormem.
A realidade do mundo pandémico chegava pela noite, quando já só restam os adultos de pé e, abruptamente, a casa perde leveza com os noticiários. Aos poucos, regressaram as insónias, inevitáveis depois do desfile dos números em curva crescente: os mortos sempre em primeiro, depois os contagiados, depois os recuperados. Ao contrário da inquietude em que vivi durante os primeiros tempos na nova morada e da resistência desta mente urbanopatológica (como agora passarei a nomeá-la), que se queria agarrar a planos miraculosos e mais planos caso os primeiros falhassem, a consciência de que existe tanto mais e tão inequivocamente urgente com que preencher a vida era-me oferecida nos pequenos gestos espontâneos dos meninos.
A comunicação com o mundo externo foi-se filtrando naturalmente e o reencontro com o diálogo interno foi-se estreitando, de tal forma que, eu deixava de ser estranha a mim própria, porque me reconhecia, acima de tudo na simplicidade da vida que agora me ocupava os dias, como numa viagem ao passado entretanto esquecido.
Entre a construção de uma horta, a feitura do pão, os aniversários, organização dos almoços e jantares, horários (muito sérios) de brincadeira, etc., esbocei tentativas de adaptação à nova realidade do trabalho artístico à distância e de todo esse universo por explorar.
Conversas de longas horas, só agora possíveis neste novo ritmo, sobre como, subitamente, a vida na cidade é distópica e intolerável, tornaram-se assunto central de reflexão.
Consegui, a muito custo, mergulhar num livro apenas, nestes últimos dois meses: Budapeste, do mais que amado Chico Buarque, ao qual ainda hei-de fazer jus de alguma maneira, seja em homenagem musical ou literária.
Depois de várias negociações com as crianças sobre o tempo dispendido a ler, questionada sobre o porquê de tamanha necessidade, especialmente enquanto tentava ler, lá fui explicando o ritual ao qual me entregava e que me requer sempre um certo tipo de paz.
“Sabes que os livros usam papel e o papel é feito de árvores! Os livros que tu gostas de ler, matam árvores!” Foi a forma de clamar justiça pelo tempo que roubava às nossas brincadeiras…
Aos poucos, os pequenos começaram a juntar-se para imitar o ritual. Sentavam-se no sofá, carregados com dúzias de livros cheios de ilustrações. Folheavam com curiosidade cada página, à procura das estórias escondidas pelas palavras cujas letras ainda não conseguem juntar: “Gosto muito de ler!”, diz um deles.
Lutam pelo lugar ao meu lado pedindo que lhes conte as aventuras contidas naqueles desenhos e arabescos e, em poucos instantes, aquele universo revelava-se abrindo portas para novos reinos de fantasia.
Agora, já regressada à cidade, não consigo voltar atrás. Não podia sentir-me mais deslocada, olhando para ela como cadáver esquisito. Na rua vou contando os passos como animal enjaulado… ensaio leves sorrisos para as poucas pessoas que comigo se cruzam e nas pequenas conversas com os comerciantes do bairro procuro-lhes a humanidade no discurso. Procuro a humanidade da cidade, em algum lado...
-Sobre Rita Maria-
Rita Maria começou a estudar música aos oito anos e desde os catorze a cantar jazz. Estudou canto lírico no Conservatório Nacional de Música de Lisboa, Jazz na Escola de Jazz do Barreiro, ESMAE (Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo), no Porto, e também na Berklee College of Music em Boston como aluna bolseira. Passou parte da sua vida adulta entre Portugal, Estados Unidos e Equador. Deambula entre a improvisação do Jazz e a nostalgia do Fado, o Experimentalismo, a fusão com world music e o rock, já tenho partilhado o palco com diferentes músicos e integrando variadas orquestras. É cantora da Banda Stockholm Lisboa Project, lançou, em novembro de 2016, com o guitarrista e compositor Afonso Pais o disco “Além das Horas” e é cantora da banda Saga Cega. Recebeu o Prémio de Artista do Ano, Prémios RTP/Festa do Jazz 2018. Neste momento, está a desenvolver o seu trabalho artístico com o pianista e compositor Filipe Raposo com quem já lançou o primeiro disco “Live in Oslo”, em 2018, e lançará, em finais de 2020, “The Art of Song vol.1: When Baroque Meets Jazz”. Círculo é o mais recente trio colaborativo do qual faz parte e que se estreou em disco a janeiro de 2020 com os músicos Mário Franco e Luís Figueiredo.