Os homens que odeiam as mulheres passam a vida a dizer que nós, as feministas, odiamos os homens. Mas não. Não odiamos.
Muitas de nós, aliás, adoram homens: vivemos com eles, dormimos com eles, trabalhamos com eles. (Re)educamos para a igualdade: lemos, refletimos e conversamos com eles. Estamos juntos na busca pela justiça, pela verdade.
Há relativamente pouco tempo, uma mulher dizia-me que “não via a necessidade do feminismo em contexto corporativo, pois tudo estava bem como estava: cada um(a) nos seus lugares, nas funções que merecia, que era somente uma questão de conquistas profissionais e ambição; não de género”.
Outro clássico injustificável; mas entendi o que ela queria dizer, ainda assim. O visível é que, efetivamente, ela vive mergulhada na famosa, muito útil e superconfortável falácia da meritocracia. Um argumento demasiado simplista que revela, em última instância, a urgência de educarmos também as mulheres para o feminismo e de como somos levadas a aceitar, desde muito cedo, o patriarcado como modelo definitivo para a nossa existência.
Ela esquecia-se, porém, no seu argumento, de outras várias questões que estão envolvidas nestes contextos, mas acima de tudo da problemática do acesso às oportunidades e como esse é todo um outro problema com milhares de anos de história e de trauma em cima. Homens e mulheres não têm as mesmas oportunidades desde a infância, até porque também a nossa educação é, desde tenra idade, patriarcal, num cenário que vem desde há muitas gerações. Não temos as mesmas oportunidades desde o início da história mundial. Nunca tivemos.
E mais tarde, quantas de nós, chegadas à contemporaneidade da idade adulta, ao concorrer a um emprego onde encontramos homens em lugar de liderança, nos deparamos com mil e uma questões paralelas? Quantas de nós correm mentalmente todos os pormenores que nos circundam?
Se a roupa que vamos levar vestida é demasiado justa, se o decote é evidente ou se devemos levar batom - tudo porque sabemos que a nossa inteligência, os nossos mestrados, doutoramentos, anos de trabalho e investimentos virão, necessariamente, em segundo lugar. E, em segundo lugar, também, tristemente - a igualdade salarial, o respeito pela diferença, a consideração pelos nossos limites e pelo nosso tempo.
Quantas de nós já desejámos fazer parte daquele boys' club, só para podermos relaxar por momentos?
Precisaríamos de estar (e de ter estado, ao longo dos séculos) exatamente nas mesmas condições, ter as mesmas experiências e heranças para podermos, algum dia, estar realmente em pé de igualdade uns com os outros. Mesmo que vivêssemos nessa hipotética meritocracia (como muitos ainda acreditam viver), a experiência diz-me ainda que, aos olhos de um homem medíocre, basta-nos um pequeno erro a nós, mulheres, para sermos postas em causa. E isso põe também em causa a nossa ambição, a nossa segurança e logo, as nossas futuras oportunidades.
Basta sempre um pequeno deslize naquela perfeição machista idealizada do que deve ser o trabalho de uma mulher para a cobrança se tornar, para nós, um peso insustentável. Quem nunca foi repreendida por um mísero detalhe que aniquilou e desvalorizou um todo perfeitamente válido e competente?
Para os outros mil homens à volta, parece que as portas se mantêm sempre abertas, a disponibilidade permanente e o companheirismo primitivo, venham os erros que vierem. Os graves erros. Os falados, os omitidos, os das piadas, os do assédio, os da pura maldade intencional. Os graves erros tantas vezes camuflados, abafados por todos. Porque para além do silêncio, o medo também se compra pelo preço de um ordenado.
Vivemos num mundo onde as realidades que vemos em séries como “The Morning Show” são um assustador reflexo da sociedade ocidental, onde a verdade de uma mulher será sempre posta em causa perante o ego dos homens.
Para além de sermos frequentemente apelidadas de “loucas” e de “inseguras” (ou pior - o que, enfim, tem ainda uma carga social pejorativa ofensiva) uma mulher que confronte um homem (ou um grupo deles) será sempre a culpada: seja porque falou, porque não falou, porque fez a mais ou porque fez a menos. Porque traçou os seus limites, ou porque não os impôs. Será sempre a voz culpada porque não teve medo de ser quem é. De reagir. Ficamos, por fim, com aquela sensação desoladora: porque será quase tudo desculpado ao ego inflamado do homem medíocre?
Por estes dias, ao olhar o mundo, sinto que existo nas palavras de Agnès Varda - tento ser uma feminista alegre, mas tenho muita raiva.
E esta raiva, que é ainda um dos poucos combustíveis que tenho para ser uma boa feminista, é o que não me deixa cair, irremediavelmente, na profunda tristeza desta era digital, fútil e falaciosa em que vivemos, onde nos esquecemos tão depressa das prioridades.
A nossa voz é o nosso poder. Mas sinto que muitas de nós escolhem, vencidas pelo cansaço das forças externas, um silêncio por exaustão.
Usem-na, ainda assim, para a vossa/nossa luta, para a revolta dos comportamentos, mesmo que com isso, saibam que não vão parar de sofrer. Estamos juntas, na voz, no poder, também no cansaço. Mas tentamos estar juntas, apesar do cansaço, apesar das dores. Esse será sempre o nosso maior triunfo.
E esse ódio que vocês, machistas, acham que nós, feministas, vos temos, não é mais do que o peso insuportável das más decisões nas vossas consciências.
-Sobre Vanessa Augusto-
Jornalista, mestre em Ciências da Comunicação (Cultura Contemporânea e Novas Tecnologias) e agente cultural - desde o início do seu percurso ligada a projetos que envolvam música, cultura e novos artistas nos vários formatos media (rádio, televisão e imprensa).
É autora do podcast FEMINA (@femina_podcast/ www.femina.pt) – um projeto independente de empoderamento feminino, no qual convida mulheres artistas para conversas intimistas e onde procura conhecer as suas conquistas, vulnerabilidades e ferramentas de sucesso enquanto mulheres e criadoras.
É ainda formadora, produtora de podcasts, autora da rubrica “FEMINA: Mulheres Autênticas” na Rádio SBSR.fm e cronista feminista em várias publicações digitais. No seu trabalho, procura estar ligada à comunidade artística e a projetos culturais que se distingam pela representatividade, igualdade de género, saúde mental e comunicação em comunidade.