"lata", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2020, https://dicionario.priberam.org/lata
Folha de ferro, delgada e estanhada (ex.: anel de lata).
2. Recipiente feito desse material (ex.: lata de cogumelos; sardinha em lata).
3. Canudo que se leva a tiracolo, e em que se guarda algum documento.
4. Canudo para onde vai o algodão que sai da carda.
5. Vara ou cana transversal de uma parreira.
6. Caibro.
7. [Informal] Automóvel velho, em mau estado ou de fraca qualidade. = CALHAMBEQUE
8. [Informal] Cara, rosto, face.
9. [Portugal,Informal] Ausência de vergonha = ATREVIMENTO, DESCARAMENTO, OUSADIA, TOPETE
Foi algures entre o final de 2010 e o início de 2011 que Rita Castel Branco, então diretora de comunicação da EGEAC, me desafiou: a “sardinha” é desde 2003 o símbolo incontestado da Festas Populares e uma das marcas culturais de Lisboa, mas há ainda espaço para crescer...!”
De facto, volvidos 7 anos de um percurso apaixonante, a “sardinha” já tinha sido apropriada por toda a cidade e a sua presença nos mais variados ambientes desde a ruas, às lojas, aos escritórios e aos mercados, prolongava-se muito para além do período em que, ano após ano, se convertia em símbolo soberano: as Festas de Lisboa!
O seu percurso criativo foi assaz singular, surge pela primeira vez na campanha de comunicação desse grande momento da expressão popular da cultura lisboeta, há quase 20 anos, por decisão do Conselho de Administração da Empresa Municipal de Cultura de Lisboa, estimulado pelo atelier Silva Designers liderado por Jorge Silva, a encontrar um novo conceito de comunicação que renovasse a perceção dos lisboetas sobre o evento.
Embora não pertencesse, nessa época, aos órgãos diretivos da EGEAC - as minhas funções como Presidente do Conselho de Administração só se iniciariam em 2007 - sei, no entanto, que a discussão foi acesa e a decisão levantou polémica: A “sardinha” remetia, segundo alguns, para os valores de uma vivência modesta, despertando fantasmas de pobreza e exclusão social, que convivia mal com as aspirações do momento cultural mais mediático da cidade; Para além disso, nada havia de menos sensual e apelativo do que a morfologia de uma sardinha…. Segundo outros, porém, a sardinha constituía, havia muito, uma das componentes gastronómicas mais apreciadas pela população em modo de festa. Quem sabe se, depois de anos ou mesmo séculos, a apelar ao paladar e ao olfato, não se transformaria num pitéu visual dos mais apreciados?
Felizmente a ousadia revelou-se, uma vez mais, premonitória! Abria-se, deste modo, um novo ciclo na estratégia de comunicação da cultura em Lisboa, que perduraria por mais de uma década, tornando-se “viral” (pelas melhores razões!), forjando e estimulando inúmeras externalidades positivas, desde o sentimento identitário até á internacionalização da cidade.
Se observarmos o percurso deste projeto gráfico-comunicacional ímpar, constatamos que o tratamento da imagem se inicia, nos primeiros anos, por uma reprodução quase naturalista do modelo em que se inspirara, sendo-lhe, aqui e ali, adicionadas componentes gráficas, técnicas ou caligráficas remetendo para a criação de sucessivos ambientes, inspirados em vários momentos da história da arte do séc. XX: o Modernismo, a Pop Art, a Street Art.
É contudo a partir de 2009 com a celebração do Ano Europeu do Diálogo intercultural, ainda sob a égide da equipa gráfica que lhe deu vida, que a intervenção sobre a “sardinha” se assume intrínseca, fazendo dessa forma oblonga uma “tela em branco” onde nos próximos anos, em primeira instância por convite a alguns grandes criadores do design nacional, se dá uma viragem em que a criatividade e a democratização dão definitivamente as mãos.
O fator mais importante do desafio que me foi colocado nesse já remoto inverno de 2010/11, e que considero, a todos os títulos, notável foi o dessa convicção na possibilidade de crescimento sobre algo que se encontrava consagrado, celebrado, incontestado, adquirido, e, portanto, passível de uma tranquila “institucionalização”!
Depois da consolidação do símbolo, havia ainda espaço para lançar o mito: depois de alcançado o sentimento de pertença e a relação identitária proponhamo-nos rumar à descoberta de um novo paradigma: designemo-lo como cidadão-autor.
A partir de 2011 através de sucessivos concursos internacionais lançados pela EGEAC e pelo Atelier Silva Designers, a participação na criação da imagem das Festas de Lisboa em cada ano, foi responsável por sucessivos e apaixonantes momentos de explosão e desenfreamento criativo à escala global. “A Sardinha é Minha” (2011), “Desenha a tua Sardinha” (2012) e “A Sardinha é de Todos” (2013), eis três campanhas que de forma inédita, e sustentando-se na “proximidade” e eficácia das novas soluções digitais, alcançaram uma adesão mundial, traduzida ao cabo desse triénio em 6.446 propostas oriundas de 44 países diferentes.
A “sardinha” continua a ser um dos objetos mais fascinantes em que me vi envolvido, quis reencontrá-lo convosco, neste preciso momento em que o confinamento se torna dia a dia mais penoso e anti natura, não apenas como promessa de dias futuros de convívio e proximidade, dias de verão em que seremos novamente felizes, mas também porque agora, em que vozes detratoras se levantam, manipulando o medo e a incerteza, demonizando a globalização, urge contrapor exemplos marcantes em que aspiração, imaginação e cooperação, recorrendo a esse mesmo paradigma, mobilizaram, através da criatividade, do talento e da ousadia, milhares de pessoas à escala planetária.
Não me é possível conceber “o regresso”, após esta cesura, o seu silêncio, a sua impotência, a sua frieza estatística, sem o risco e a busca de um novo pensamento sobre a capacidade de intervir, o poder de transformar, o desejo de mudança que reside em cada um de nós. “qualquer objeto do mundo pode passar de uma existência fechada, muda, a um estado oral, aberto à apropriação da sociedade, dado que nenhuma lei, natural ou não, proíbe falar das coisas.” (Roland Barthes).
-Sobre Miguel Honrado-
Licenciado em História pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e pós-graduado em Curadoria e Organização de Exposições pela Escola Superior de Belas Artes de Lisboa/ Fundação Calouste Gulbenkian, exerce, desde 1989, a sua atividade nos domínios da produção e gestão cultural. O seu percurso profissional passou, nomeadamente, pela direção artística do Teatro Viriato (2003-2006), por ser membro do Conselho Consultivo do Programa Gulbenkian Educação para a Cultura e Ciência – Descobrir (2012), pela presidência do Conselho de Administração da EGEAC (2007-2014), ou a presidência do Conselho de Administração do Teatro Nacional D. Maria II (2014-2016). De 2016 a 2018 foi Secretário de Estado da Cultura. Posteriormente, foi nomeado vogal do Conselho de Administração do Centro Cultural de Belém. Hoje, é o diretor executivo da Associação Música, Educação e Cultura (AMEC), que tutela a Orquestra Metropolitana de Lisboa e três escolas de música.