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Opinião de Miguel Bica

Os muitos Alentejos da Géja e do Quim

Nas Gargantas Soltas de hoje, Miguel Bica nos conta sobre uma história de amor passada no Alentejo.

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A avó Genoveva (Géja) e o avô Joaquim (Quim) casaram-se em setembro de 1947, num altar construído debaixo de um sobreiro, numa herdade perto da Vila de Monsaraz, hoje impossível de localizar, submersa por mais de 30 metros da água do Alqueva que transformou o rio, a paisagem, o clima e as memórias daquele território. Casaram num Alentejo latifundiário de poucos doutores (sempre chamaram doutor ao dono da herdade) e muitos criados. O dono da Herdade do Xerês não fugia à regra. Poderoso e influente na zona e praticamente intocável no seu pequeno reino. Os “seus” trabalhadores viviam, na sua maioria, dentro da herdade. Famílias inteiras cujos filhos partilhavam o mesmo destino que os pais, nasciam, viviam e começavam a trabalhar na herdade e mesmo que mudassem, trabalhadores do campo que eram, encontrariam inevitavelmente morada noutra herdade próxima. A casa não era deles, era do doutor. Assim foi com a Géja e o Quim. Ambos filhos de trabalhadores/moradores dessa herdade lá viveram, lá cresceram e lá aprenderam o que lhes era permitido aprender. Joaquim teve direito à quarta classe e Genoveva aprendeu a ler às escondidas, por trás do ombro do pai enquanto este ensinava os irmãos. Foi lá, também, que se conheceram e começaram a gostar um do outro.

E, como tudo por ali, o evento do namoro não passou despercebido a ninguém, muito menos ao doutor. Contava Joaquim que um dia, provavelmente por estar aborrecido, ou talvez por se sentir isolado no seu poleiro, o doutor lhe lançou o desafio. “O meu aniversário é a 8 de setembro, se te casares nesse dia pago-te a boda". Joaquim lançou o mote a Genoveva "eu caso com certeza, se não for contigo...haverá quem queira" e a Genoveva aceitou. Foram 500 escudos para cada um, oferta aparentemente generosa, borrego, bolos e vinho para a festa, um altar construído debaixo da árvore e pronto. Casaram por vontade própria, assistida pelo empurrão senhorial. Naturalmente, lá ficaram a morar nesta herdade, ele era carreiro (condutor de carroça), depois foi guarda e ela fazia vestidos para a família. Mudaram-se os tempos e mudaram-se ambos, mais tarde, para a vila de Monsaraz, bem no alto da vila, envolvida pelas muralhas do castelo, onde ter um burro significava não ter de descer e voltar a subir a encosta com um cântaro às costas para ter água potável.

Daí para um número considerável de montes dentro de outras herdades alentejanas com igual número de profissões pelo caminho. Umas com os tais doutores, as últimas, já do estado, com engenheiros a governar. Na minha memória, o carreiro Joaquim já era tractorista e a Genoveva ficava em casa, com algumas sazonais incursões na apanha da azeitona. Tiveram dois filhos, três netos e quatro bisnetos. No final, Joaquim já via mal e andava mal, compensando com a impecável memória com que me foi partilhando histórias, memória essa que traía Genoveva, que andava e via otimamente. Os dois complementavam-se na saúde e na doença como o fizeram todos os dias desde 1947. Comemoraram em 2017, 70  anos de casados, os últimos que haveríamos todos de festejar. Viveram uma vida juntos num Alentejo em constante mutação.

Nesses 70 anos viram desaparecer as herdades, viram crescer as aldeias e vilas e viram-nas voltar a minguar com a migração e emigração, assistiram a uma revolução, ao surgimento de novos agricultores e à época dos subsídios, assistiram à subida das águas pela barragem que lhes afundou o local inicial. Já cá não estão para assistir ao surgimento do super-latifúndio, dos amendoais de perder de vista, dos olivais super-intensivos que demandam água quando a sua escassez é crescente, mesmo contando com o grande lago. O que restava dos “doutores” já vendeu as terras (70% do território agrícola do Alqueva mudou de mãos nos últimos 10 anos) e a necessidade de trabalhadores neste tipo de culturas é reduzida. Não reconheceriam este Alentejo, mas saberiam reconhecer que tudo muda, umas vezes para melhor, outras nem tanto assim e diriam que o alentejano se adapta e prevalece sempre, seja ele quem for e venha ele de onde vier.

-Sobre Miguel Bica-

O Miguel gosta de fazer coisas acontecer e de pensar como se constrói uma experiência, na sua relação com o público, com os artistas, o espaço e o ecossistema em que ela se insere. Colaborou em festivais de cinema como o IndieLisboa e o Doc Lisboa e foi gestor do projeto PTBluestation. Em 2014 foi um dos fundadores do Gerador, é hoje vice-presidente e director de produção e é dele a responsabilidade de materializar as inúmeras iniciativas que aí vão sendo produzidas. É formador de planeamento em eventos culturais na Academia Gerador e orientador de projecto final no curso de produção de eventos na World Academy.

As posições expressas pelas pessoas que escrevem as colunas de opinião são apenas da sua própria responsabilidade.

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