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Os passos da dança portuguesa unem-se num movimento contínuo

Se, aos olhos daqueles que ainda hoje perseguem o sonho da dança, Portugal representa, muitas…

Texto de Redação

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Se, aos olhos daqueles que ainda hoje perseguem o sonho da dança, Portugal representa, muitas das vezes, um espaço de futuro incerto, existe um legado que é importante não esquecer. Numa história que, como qualquer outra, se alimenta de começos e fins, propusemo-nos a seguir criadores e intérpretes que até hoje têm contribuído para uma narrativa que, como a vida, está em permanente mutação.


Fotografia da cortesia da Fundação Calouste Gulbenkian

Aprender as bases de um caminho ainda incerto

Entre o Chiado e o Príncipe Real, ouve-se ao longe uma melodia que, à medida que nos aproximamos, se torna mais clara. Da Escola Artística de Dança do Conservatório Nacional vão entrando e saindo alunos que se dividem pelos diferentes polos em que se encontram salas de aula e estúdios, num edifício ainda em processo de requalificação. Na aula do professor Cyrille de La Barre, a luz natural que entra pelas janelas exibe David Claisse, Pedro Silveira e Daniel Cardoso, que dançam ao ritmo de What a Wonderfull World numa versão ao piano por Nuno Feist. Ao mesmo tempo, a restante turma de finalistas, composta apenas por raparigas, ensaia com Fernando Duarte os exercícios para o período de avaliação que se avizinha. Entre elas, encontram-se Rita Ferreiraque, entre pliés,adágios e pas de bourrées não perde o foco, e Inês Gomes que, devido a uma lesão, se encontra sentada debaixo das barras a acompanhar as colegas com o olhar.

David, Pedro, Daniel, Rita e Inês acabam dentro de meses a formação do conservatório. Percecionam, desde já, a incerteza que o futuro lhes reserva, mas há algo que sabem com precisão: pelo menos para já, só se veem a dançar. A forma como chegaram a esta escola é, por isso, semelhante, ainda que venham de contextos diferentes. David, Daniel e Rita vivem na zona de Lisboa, enquanto Inês, natural de Coimbra, e Pedro, da Madeira, redefiniram as suas vidas para seguir um sonho que trabalham todos os dias para alcançar.

«Antes era muito diferente, mas hoje em dia, lá fora, começa a haver cada vez mais licenciaturas em dança. E o que estamos a ver é que agora pedem cada vez mais bailarinos perto dos 21 anos, e nós só temos 17», partilha Rita. Tanto pela entrada numa companhia como para ter um plano B «se daqui a cinco ou dez anos» não quiserem «dançar mais», continuar os estudos é uma ideia transversal a todos. Sobretudo no estrangeiro.

Para Daniel, ir para fora é prioritário: «talvez me imagine em Portugal daqui a uns anos, mas agora acho que preciso de ver outros mundos, estar com outro tipo de pessoas, trabalhar com coreógrafos e professores de várias linguagens», partilha. Para a colega Rita, esta mudança de contexto também tem que ver com outras questões: «temos bailarinos, professores e coreógrafos muito bons, mas estamos a ter um enorme problema de falta de meios para conseguir explorar», sustenta. «Ninguém tem dinheiro para pagar a bailarinos e para poder fazer produções, o que não ajuda nada a que os bailarinos fiquem cá», continua.

Talvez, para grande parte dos jovens da sua idade, o futuro não seja ainda uma preocupação, por o amanhã estar mais distante. Pedro explica que, «desde muito cedo», começam «a ser confrontados com esse tipo de problemas», e que sentem que, de certa forma, são «obrigados a sair do país para ter uma vida minimamente estável». É a pensar nos colegas, cujo dia a dia conhecem, que todos concordam quando Inês relembra que «há muitos bailarinos que trabalham das 9 às 16horas na companhia, e depois vão trabalhar noutra coisa qualquer para ter um dinheiro extra para poderem viver daquilo que gostam».

Rita resume as opiniões dos cinco com uma nota positiva: «Ébom ver que há muita gente que tem a ambição de, no futuro, voltar para investir em Portugal.»

Madalena Paiva e Martinho Santos, ambos com 14 anos, corroboram a ideia de Pedro. Madalena, natural de Almada e filha de bailarina, conta que «desde pequenina» que quer «sair do país para ver coisas novas». Martinho, que seguiu estudos no conservatório «porque era muito irrequieto», também vê noutro país o seu futuro, mas é cá que estão as suas referências: o coreógrafo Vasco Wellenkamp e o bailarino Benvindo Fonseca.

Na dança, como noutras áreas artísticas, a relação de mestre e aprendiz foi perdendo a intensidade com a profissionalização, mas continua a ter uma carga simbólica. José Luís Vieira, diretor artístico do conservatório, explica que, na escola em que leciona, o principal objetivo é «oferecer ao aluno professores que estejam habilitados a dar-lhe o que ele precisa naquela etapa do seu crescimento enquanto bailarino e técnico». Na sua carreira enquanto docente, nota que as mentalidades, tal como a «exigência estética», vão mudando. O rigor mantém-se.

José Luís Vieira, cujo percurso enquanto bailarino passou pela Companhia Nacional de Bailado e pelo Scapino Ballet, na Holanda, está certo de que «hoje em dia não há um bailarino que seja só clássico». No conservatório, segue-se o método russo de Vaganova no clássico, nos primeiros anos, e Martha Graham no contemporâneo, mas vai-se abrindo o leque de linguagens para dar resposta aos desafios da atualidade.

Também no que toca aos concursos de dança internacionais, o conservatório tem feito mudanças estruturais. Paulo Ferreira, professor de português e diretor executivo, conta que estes são um «pau de dois bicos», uma vez que «funcionam, por um lado, como uma boa experiência para o aluno em termos de contacto com outros jovens e professores», mas «também como indústria». É por isso que se focam, hoje, apenas em dois: o Prix de Lausanne e o Tanzolymp Berlin.


Na fotografia: David Claisse, Rita Ferreira, Pedro Silveira, Inês Gomes e Daniel Cardoso @David Cachopo
@David Cachopo
@David Cachopo
@David Cachopo

Do Ballet Gulbenkian às novas vozes da dança portuguesa

Nestes jovens que perseguem o sonho de vir a ter uma carreira no universo da dança, reside a mesma vontade e vocação que, há mais de 50 anos, levou Isabel Ruth – hoje em dia mais conhecida como atriz – a estudar dança. Numa altura ainda embrionária para aqueles que queriam relacionar o corpo com o movimento, Isabel é dos primeiros nomes que retratam, de alguma forma, a história da dança em Portugal. Depois de umas aulas com Ruth Aswin no Lisboa Ginásio, parte para Londres onde estuda, por dois anos, no The Royal Ballet School. «Quando regresso e, em conjunto com outros bailarinos que procuravam fazer carreira no país, formamos, em 1961, o Grupo Experimental de Ballet», conta.

Anos mais tarde, esse mesmo grupo ficaria conhecido como Ballet Gulbenkian, companhia seminal para se falar deste universo artístico no país. Para Vasco Wellenkamp, coreógrafo, o Ballet Gulbenkian «surgiu numa altura em que a dança portuguesa era um nada», onde praticamente só existia a Companhia Portuguesa de Bailado Verde-Gaio, iniciada por António Ferro e de forte cunho «nacionalista». Em simultâneo é também nesse período que a dança noutros países começava a mudar. Vasco é testemunha dessa mutação, aquando da sua ida para os Estados Unidos da América, onde iria estudar na Escola de Dança Contemporânea de Martha Graham. «Os americanos com aquela liberdade toda e alegria de viver fizeram algo extraordinário, com a Martha Graham e o Merce Cunningham, cujo legado deixado à dança ainda hoje perdura através das linguagens técnicas que criaram», sustenta.

No regresso, Vasco tornar-se-ia primeiramente o coreógrafo residente do Ballet Gulbenkian e, mais tarde, o principal. Num ano que marca os 15 anos do fim dessa companhia, para a qual olha como «referência», Vasco Wellenkamp considera que esta foi fundamental para abrir de alguma forma o país a novas tendências que começavam a emergir. «Em Portugal tivemos a sorte de ter nascido nesse movimento, com a Gulbenkian, porque os melhores coreógrafos vieram de toda a parte» para formar as gerações de bailarinos que iriam marcar o panorama da dança nas décadas seguintes.

Ainda que inicialmente o Ballet Gulbenkian não se dissociasse do bailado clássico, é pelo contemporâneo que ganha a sua notoriedade internacional. Um dos nomes incontornáveis desse período é o de Olga Roriz. Do talento como bailarina surgiu rapidamente a vontade de criar. «A partir de certa altura, no terceiro ou quarto ano, comecei a fazer ateliês de criação», explica Olga, acrescentando que foi aí que Jorge Salavisa, diretor artístico do Ballet Gulbenkian, lhe pediu para fazer uma primeira coreografia para a companhia. Seguiu-se a criação de Três canções de Nina Hagen e, devido ao sucesso imediato, passou a ser uma das coreógrafas residentes, o que lhe possibilitou ir ao encontro da sua «própria linguagem e forma de estar».

Durante os anos 80, o Ballet Gulbenkian – em parte sustentado pelas criações de Wellenkamp e Roriz e pela vinda de coreógrafos internacionais –, foi ganhando cada vez mais notoriedade. Foi nesse período que Benvindo Fonseca, que ainda era apenas um aluno do conservatório, assistiu pela primeira vez a um ensaio da companhia. «Quando vi o Outono, do Vasco Wellenkamp, e já não me lembro qual era o outro bailado do Jiří Kylián, não queria acreditar no que estava a ver. Naquele auditório, com aqueles bailarinos. Não quis acreditar que em Portugal houvesse uma companhia com aquela qualidade», declara.

A verdade é que anos depois seria o próprio Jorge Salavisa a oferecer-lhe um contrato como solista. «Na Gulbenkian, tive os melhores coreógrafos do mundo, ainda por cima a coreografarem para mim, num país em que tinha as melhores condições do mundo, e a ir a todo o lado com salas cheias. Estava em casa, ao pé dos meus pais, e aí fui ficando, ao lado de bailarinos que admirava», acrescenta.

O percurso de Benvindo cruza-se, no entanto, com algumas mudanças que já se faziam notar no panorama da dança portuguesa. Antes deste período, já como bailarino profissional e depois de ter estado na escola da Gulbenkian e à espera de entrar na companhia, surge o convite de Rui Horta, coreógrafo, que na altura do seu regresso a Portugal criara a Companhia de Dança de Lisboa. Foi também pela mão de Rui que Benvindo conseguiu arranjar uma bolsa que lhe permitiu, durante um tempo, ir estudar para Nova Iorque.

O regresso de Benvindo ao Ballet Gulbenkian, deve-se, segundo o próprio, à iniciativa de Madalena Perdigão, figura responsável pelos encontros ACARTE, serviço de Animação, Criação Artística e Educação pela Arte. Numa década de grandes movimentações, estes encontros foram responsáveis por uma maior abertura do país à criação contemporânea mais recente, o que, na ótica de Paulo Ribeiro, coreógrafo, viria a impactar a própria cena independente em Portugal. «Estes encontros foram essenciais para a cultura portuguesa e para os novos criadores. Era uma montra do que acontecia na Europa, com uma programação visionária que nos marcou e nos tirou de um certo isolamento», realça.

Essa abertura de que fala Paulo Ribeiro, providenciada pelos encontros ACARTE, a juntar ao regresso ao país de vários criadores, está na origem de um novo período da dança em Portugal. Já em plena década de 90, nomes como Vera Mantero, Clara Andermatt, João Fiadeiro, Francisco Camacho e o próprio Paulo Ribeiro ajudavam a compor o movimento da chamada Nova Dança Portuguesa.

Em entrevista à RTP, decorria o ano 2000, Vera Mantero, que antes tinha passado pelo Ballet Gulbenkian, explicava os motivos de ter saído em busca de uma maior liberdade criativa: «O que acontece nesse tipo de companhia é que se passa tudo pela rama porque nunca se chega a poder aprofundar muito um género. É um sistema de produção muito mais acelerado em relação ao que acontece no círculo onde me mexo da dança contemporânea independente».

O sinal de uma certa metamorfose face à dominância do Ballet Gulbenkian em termos de programação é desde logo sentido pelo número de novas companhias de autor – ou estruturas de criação coreográfica – que vão surgindo. João Fiadeiro cria a Companhia RE.AL em 1990, Clara Andermatt cria a sua em 1991, Francisco Camacho cria EIRA em 1993, Paulo Ribeiro e Olga Roriz criam as suas respetivas em 1995 e Vera Mantero cria O Rumo do Fumo em 1999.

Mas o que significa verdadeiramente a epígrafe de uma «Nova Dança»? Para Paulo Ribeiro, essa necessidade de catalogar pertence aos críticos, uma vez que no seu entender se trata apenas de uma «cena independente» em que cada criador «tem a sua linguagem». «É nova no sentido de trazerem um olhar diferente que não se enquadra apenas na estética e que tem preocupações mais profundas sobre como pensar a sociedade», reflete.

Um discurso sobre o presente em diálogo com o passado

Mais do que nunca, e em virtude das diversas mutações que as próprias técnicas foram sofrendo, refletir sobre bailado clássico, moderno ou contemporâneo não é um exercício estanque. No entanto, a produção de um discurso sobre o presente da dança portuguesa precisa de um diálogo com o seu passado. Devido a este mote, o também coreógrafo João dos Santos Martins criou, juntamente com a investigadora Ana Bigotte Vieira e o coreógrafo Carlos Manuel Oliveira, um projeto de historicização coletiva da dança em Portugal a que chamaram Para uma Timeline a Haver.

A iniciativa surge depois de um convite por parte do Teatro Viriato, em Viseu, para que o jovem criador encenasse «o encontro da Clara Andermatt, Vera Mantero, Paulo Ribeiro e João Fiadeiro, revisitando um espetáculo que eles fizeram para o Ballet Gulbenkian», explica Ana Bigotte Vieira. O exercício fez com que saltassem à vista uma série de ligações entre os criadores portugueses, que ao longo do seu percurso se foram encontrando. Assim, e partindo dessa mesma cadência, começam a criar painéis que destacam «momentos considerados relevantes da dança portuguesa ao lado da produção contemporânea de jovens artistas», refere João. Por seu lado, Carlos acrescenta que este dispositivo «prevê a criação de discurso sobre o que se está a fazer agora pelo diálogo que permite criar com o que já aconteceu para trás», fornecendo aos artistas «coordenadas» sobre aquilo que estão a «herdar como legado» da dança portuguesa.

CNB: um papel de continuidade enquanto companhia de repertório

Num olhar sobre a realidade atual é possível ver que, para além dos muitos criadores independentes que continuam a trilhar caminho e novos criadores que parecem trazer novas ideias para este universo, subsistem ainda companhias de repertório, com modos mais tradicionais de produção. A mais reconhecida pelo seu caráter institucional é a Companhia Nacional de Bailado (CNB), fundada em 1977, e que durante anos ocupava, em paralelo ao Ballet Gulbenkian, a grande maioria da programação de dança que se fazia em Portugal.

Efetivamente, a CNB acabava por estar associada a um lado mais clássico da dança, colocando-se num polo oposto ao de contemporâneo e moderno da Gulbenkian. Porém, defende Sofia Campos, atual diretora artística da CNB, nos seus princípios fundadores, a CNB já determinava «a produção de «bailados relevantes do património universal clássico ou contemporâneo» como eixo de intervenção entre passado e presente». No entanto, a responsável destaca que é a partir da entrada de Jorge Salavisa para a direção da companhia, em 1996, que passa a existir «um maior investimento em obras e autores contemporâneos».

Nas últimas décadas e, em virtude do desaparecimento do Ballet Gulbenkian, em 2005, a «CNB passou a ser a única instituição de dança, a nível nacional, com capacidade de produção e apresentação de um determinado tipo de repertório», explica Sofia Campos, sublinhando que durante a existência do Ballet Gulbenkian, a «responsabilidade era de algum modo partilhada».

«Por outro lado, enquanto companhia com objetivos de preservação da herança cultural, a CNB vê-se, desde então, de algum modo responsável pela recuperação de património coreográfico, dançado e produzido pelo Ballet Gulbenkian, de relevância para a história da dança em Portugal. São disso exemplo, entre outras, as obras Treze Gestos de um Corpo, de Olga Roriz, e O Canto do Cisne, de Clara Andermatt, dançadas ou a dançar em breve pelo elenco da CNB», sintetiza.

Do gesto à criação: o panorama das companhias que repensam o clássico


Vasco Wellenkamp ensaia Amaramália @David Cachopo

Ao passarmos na Rua do Açúcar, em Lisboa, é muito provável que se ouçam canções de Amália e excertos de peças clássicas inconfundíveis. É lá que encontramos Vasco Wellenkamp, que, por esta altura, se encontra na reposição e reformulação de uma das suas peças mais icónicas, o Amaramália.

Depois de 20 anos como coreógrafo do Ballet Gulbenkian, é na Companhia Portuguesa de Bailado Contemporâneo (CPBC), criada em 1998 juntamente com a bailarina Graça Barroso, que Vasco deposita atualmente a sua permanente vocação criativa – através de gestos e composições que já lhe são características. A CPBC é uma das companhias de repertório cujo percurso passa por um trabalho de criação aberto a diferentes coreógrafos. «A intenção era a de formar uma companhia que seguisse os mesmos padrões no sentido da qualidade da linguagem do Ballet Gulbenkian, e de poder também ter coreógrafos convidados», conta.

Com um elenco mais ou menos fixo de bailarinos, a CPBC tem sido, nos últimos anos, responsável pela criação de peças de diferentes criadores convidados. A verdade é que a mesma está intrinsecamente ligada à visão de Wellenkamp – que também passou pela CNB –, e cujo trabalho ajudou a formar diferentes gerações de bailarinos.

A par da CPBC, é possível nomear pelo menos mais uma dezena de estruturas de dança, espalhadas um pouco por todo o país, que mantém certos padrões de criação coreográfica vivos. Desde logo, a Companhia de Dança de Almada, criada em 1990 por Maria Franco, o Quorum Ballet, fundado em 2005, ou a Dança em Diálogos, fundada em 2018 sob a direção artística de Solange Melo e Fernando Duarte.

Numa área que é hoje bastante mais aberta ao cruzamento disciplinar, Solange e Fernando defendem que o «cultivo da dança em Portugal passa antes de mais por procurar ver como está a dinâmica entre os principais interlocutores da atividade artística em que está inserida a dança – criadores/estruturas, agentes/programadores e público –, e se se verifica um encadeamento eficaz e produtivo entre todos, na regularidade de apresentações e na promoção de cada proposta».

Dessa forma, é possível trabalhar no sentido de uma maior «cativação de público» e enfrentar de forma mais eficaz o problema da falta de apoios que, muitas das vezes, impede o normal funcionamento das companhias, levando a que muitos jovens não vejam em Portugal um horizonte profissional. «Se portas há a abrir, são as de oportunidades aos jovens bailarinos que encontram dificuldade em estabelecer uma carreira regular em Portugal. Não foi só o Ballet Gulbenkian a fechar,eas que permanecem ativas, conseguem-no à custa de muito esforço, coragem e criatividade orçamental», acrescentam.

Além disso, os responsáveis da Dança em Diálogos salientam ainda que hoje, até pela diversidade de oferta de formação, existem mais bailarinos formados, um número que a oferta profissional no país não consegue acompanhar. A perspetiva é corroborada por Rui Horta que sublinha que continuam a existir oportunidades de topo, mas que a «pirâmide abriu muito na base». «Há imensa gente a estudar dança e teatro, pessoas que têm vontade e necessidade de criar, mas o número de salas de espetáculo pouco aumentou. Há, hoje em dia, uma triagem enorme e no topo há lugar para muito poucos» acrescenta, defendendo que parte da solução está num maior trabalho em rede, colocando os «teatros municipais a funcionar em pleno, para haver circuito e divulgação da dança».

A dança em circulação

Para colmatar as dificuldades de circulação de espetáculos de dança pelo país, mas também para dar pretexto ao o diálogo entre criadores e as suas linguagens, foram sendo organizados festivais de dança por todo o país. Muitos deles surgem pela mão de bailarinos e coreógrafos, como refere Dora Carvalho, diretora do Forum Dança, sendo exemplo disso «o Materiais Diversos, criado pelo Tiago Guedes» e «o Alkantara, pela Mónica Lapa». Nem todos conseguem resistir ao tempo, mas há exemplos de persistência e de qualidade de norte a sul do país.

As múltiplas linguagens dos novos tempos

Com a profissionalização da dança e a abertura de academias e escolas de ensino articulado pelo país, as portas foram-se abrindo, tanto ao nível da formação como do pensamento. Motivados por um legado, nem sempre consciente, construído por bailarinos e coreógrafos que dançaram a vida e redefiniram cânones no século xx, jovens intérpretes e criadores foram, também eles, ouvindo o seu corpo e criando as suas linguagens.

É para dar lugar a essa escuta que Rui Horta abre há 20 anos as portas do Espaço do Tempo, em Montemor, «uma incubadora de conteúdos», que «não tem a pressão de uma apresentação no teatro». «Tu tens toda uma espécie de arrasto sempre que vês as pessoas a crescer contigo», partilha. «De repente já são grandes nomes como a Marlene Freitas, que na minha opinião reescreve quase a história mundial da dança, ou a Tânia Carvalho».

Tânia mudou-se de Viana do Castelo para Lisboa para estudar dança, com uma passagem pelas Caldas da Rainha para estudar artes plásticas. Escolheu o Forum Dança pelo curso de intérpretes que na altura existia – porque para ser criadora, queria «conhecer o maior número de técnicas que depois pudesse utilizar». Ainda que a dança seja o seu maior campo de atuação, considera-se uma artista multidisciplinar.

Dora Carvalho encontra na dança uma «ligação natural às artes plásticas e à música», e é nesta hibridez que o Programa Avançado de Criação em Artes Performativas funciona no Forum. Por lá vão passando muitos dos nomes das novas gerações, e é por isso que Dora consegue fazer uma análise crítica às condições que um jovem bailarino tem hoje em Portugal: os que não entram na Companhia Nacional de Bailado «ou vão para fora» ou «são bailarinos freelancer», que «trabalham por épocas, com diferentes coreógrafos».

Margarida Belo Costa, bailarina, coreógrafa e professora na Escola Superior de Dança e noutras instituições, sente que a sua missão passa por «alertar e sensibilizar os alunos sobre a atualidade» para que «subam os degraus com segurança». «O maior desafio nos próximos anos, tanto para bailarinos como criadores, será não seguir protótipos, desligar o digital e ir para estúdio «despidos de ideais para voltarmos a ser apenas corpo no espaço», partilha.


Lento e Largo de Jonas&Lander ©Mariana Lopes/Walk&Talk

Tanto Margarida Belo Costa como Miguel Ramalho, recentemente promovido a bailarino principal da CNB, têm peças da sua autoria a integrar o repertório da CPBC. Miguel conta que «depois de muitos anos nos palcos a expressar o que outros sentiam, ou o que sentia através de uma sensação incutida», teve a «necessidade de começar a transpor» a sua «própria linguagem para cena». Por muito que tenha tido «excelentes oportunidades» enquanto bailarino e criador, reconhece que Portugal é «um país sem grandes oportunidades» para grande parte dos seus colegas.

A dupla Jonas&Lander, formada por Jonas Lopes e Lander Patrick, nota que «a dinâmica das artes performativas em Portugal», com um «zoom in na dança», passa «por um investimento público no desenvolvimento de trajetos e linguagens de autores individuais e pequenas estruturas, ao invés de financiar grandes companhias». É por isso que se diminuem «drasticamente as hipóteses de um recém-formado em dança conseguir exercer qualquer tipo de função na área, sem que seja por vias do ensino ou por se tornar num artista independente».

Marco da Silva Ferreira acrescenta que existe hoje, além da formação clássica, uma outra de caráter «autodidata e experimental», na qual«cada bailarino se vai desafiando e fazendo o seu próprio curriculum». No entender do bailarino e criador, este autodidatismo, que em parte caracteriza uma nova vaga de criadores, «acaba por usar a paixão como motor da formação» ao invés da aprendizagem mais convencional.

Ter condições para desenhar o futuro

«Os espaços que entram nos cardápios das tournées, que coproduzem e promovem artistas, são ainda reduzidos», dizem Jonas&Lander. Ao mesmo tempo, acreditam que existe um «paradigma que é ligeiramente obsessivo por novas obras, novos projetos, pelos devires de cada artista e que menospreza a circulação das obras já criadas, coloca o artista num posto industrial em que tem de criar e produzir para subsistir.»

Maurícia | Neves, bailarina e criadora, acrescenta que «a arte não é um concurso. A criação não é um concurso. As pessoas não são um concurso». Quanto às companhias, acredita que são «uma coisa do passado». Como grande parte dos seus colegas, trabalha enquanto freelancer.

Marco da Silva Ferreira, Maurícia | Neves, Jonas&Lander, Miguel Ramalho, Margarida Belo Costa e Tânia Carvalho têm percursos e linguagens distintas entre si, mas há pontos das suas visões que convergem. Por muito que vejam numa «Europa entrelaçada», como referem Jonas&Lander, uma oportunidade de abrir horizontes e «nutrir o paradigma pessoal», todos trabalham sobretudo a partir de Portugal, ainda que com dificuldade.

Para Mauricia | Neves, não é questionável a qualidade dos produtos artísticos gerados em Portugal: «Sem dúvida que desde há muito que a área se tem expandido, juntamente com os seus criadores, por outras formas de fazer dança, e daí têm resultado objetos artísticos, a meu ver, muito pertinentes e poderosos».

A acompanhar a evolução do pensamento, os intérpretes hoje despem-se de uma visão que lhes atribua um caráter de meros executantes e estão de corpo, mente e alma em cada criação em que participam. Mesmo que pelas condições de trabalho apresentadas no seu país nem sempre tenham tempo e espaço para crescer com um determinado coreógrafo.

Estas gerações que vivem por projeto, como aliás os apoios à criação convidam, veem-se constantemente num limbo entre o que têm e o que podiam ter, sem espaço para pensar num futuro, mas a viver de uma profissão de desgaste. Preocupados com os problemas do agora – onde se inserem a (falta de) circulação de espetáculos, a precariedade da condição de bailarino freelancer e a constante instabilidade –, resta-lhes pouco tempo para pensar qual será o seu amanhã.

Dançar na incerteza do amanhã

Pensar numa carreira na dança, sobretudo enquanto bailarino, significa redefinir o conceito de reforma que normalmente associamos a uma idade avançada. De acordo com o segundo ponto do artigo 11 da Lei n.º 22/2019, «os profissionais de bailado da CNB ficam automaticamente sujeitos à reconversão profissional, a partir do ano em que completem 45 anos». Nesta lei, que diz respeito ao regime do profissional de bailado clássico ou contemporâneo, enumera-se ainda o processo de reconversão dos profissionais que, por motivos de desgaste, se vejam impossibilitados de continuar a exercer.

Vasco Wellenkamp conta que na Holanda a reconversão de carreiras passa por, em alguns casos que sejam elegíveis a determinadas condições, a «dar mais 4 anos de salários integrais para que as pessoas façam um curso superior», o que se verifica no manual Dancers’ CareerTransition, disponibilizado pela FIA – InternationalFederationofActors. «Ou, se não quiserem, podem com esse mesmo dinheiro criar uma empresa. São formas de estimular a vida destas pessoas», conclui.

Para quem «parar de dançar é morrer», como menciona Benvindo, foram surgindo opções como a Companhia Maior, um projeto integrado no Centro Cultural de Belém, e a associação Nossas Danças. «A partir do momento que as nossas carreiras profissionais terminaram dentro das companhias em que trabalhávamos, muitos de nós sentimos vontade e acreditámos ter capacidade para continuarmos ativos», conta a última. Com um legado em parte deixado pela Verde Gaio, ao juntar a dança de repertório às danças tradicionais portuguesas, As Nossas Danças pretende «despir algumas das danças do folclore português das suas características lúdicas e informais, mantendo uma estética coerente, embora despretensiosa.»

Num ano marcado por efemérides nas vidas de muitas companhias e festivais, reside a reflexão de um panorama da dança em Portugal que, entre o passado e o seu possível futuro, não deixa morrer a incerteza. Das vozes já reconhecíveis às que ainda vivem no anonimato, resiste a vontade de criar e dar a ver, num contexto que nem sempre parece escutar as necessidades deste universo artístico. Impõe-se, por isso, uma reflexão constante; porque, afinal, como escreve José Gil, parafraseando Deleuze, «o que se move como um corpo regressa sempre como movimento do pensamento».

Esta reportagem foi inicialmente publicada na Revista Gerador de julho, que podes ficar a conhecer melhor, aqui.

Texto de Carolina Franco e Ricardo Ramos Gonçalves

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