Ironia*
Eles convidam-te
para que vejas
artefactos
roubados
dos teus
ancestrais
nos seus museus
enquanto os seus
“peritos”
explicam
o teu
antigo
reino do
Benim
Imagine que alguém entra em sua casa sem ser convidado. Como se não bastasse a invasão, o ‘curioso’ visitante fica de tal forma impressionado com o recheio da sua habitação, ornamentada de ouro e outras pedras preciosas, que decide se apoderar dele. Tudo em nome da sua salvação!
Por mais que se queira defender, e proteger a sua família, a resistência que oferece é reprimida com profunda violência.
Pior: não satisfeito com a invasão e o roubo, o intruso vê em si e na sua família uma fonte multiplicadora de riqueza, forçando-vos a trabalhar, sem salário, folga ou qualquer outro direito.
Não está sozinho. Pelo contrário, o saqueador beneficia da cumplicidade de um inescrupuloso gangue que, munido de instrumentos de tortura, conspira para o silenciar e subjugar, se necessário até à morte.
Sob a ameaça de armas, a sua humanidade é criminosamente amputada, e, a pretexto da sua inferioridade humana, todos os seus bens são espoliados.
Recorrer à Justiça não é sequer uma possibilidade, porque esse é um direito reservado aos humanos superiores, classificação da qual foi liminarmente excluído.
Também por causa dessa sua pretensa sub-humanidade, todas as atrocidades que vive são legitimadas e normalizadas. Aliás, num cenário improvável de provimento judicial da sua denúncia, seria de prever um tratamento injusto, porque os decisores continuariam a pertencer exclusivamente – ou quase – à família do invasor, interessada em conservar uma longa herança de privilégios.
Para agravar a situação, além de enfrentar um poder historicamente corrompido por efabulações sobre a sua inferioridade humana – e por isso versado em depreciar as suas acusações e viciar veredictos –, ficaria a saber que o seu testemunho sobre o crime de que foi alvo permaneceria como sempre: silenciado.
Pode soar demasiado absurdo para ser verdade, mas as semelhanças desta história com a realidade nacional estão longe de ser pura coincidência.
Debate público precisa-se!
Em contraciclo com o movimento europeu de devolver obras de arte pilhadas aos antigos países colonizados, e de promover um debate nacional sobre o tema, o Governo português considera que o assunto deve ser tratado "de forma discreta e longe da praça pública".
O entendimento do Executivo foi transmitido ao semanário Expresso pelo ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, em resposta à dupla pergunta: "Porque é que o Estado não se envolve com temas fracturantes, como a eventual devolução de obras aos seus países de origem? Esta lista de obras será feita?”.
O governante defendeu que “a forma eficaz para tratar este tema é com reflexão, discrição e alguma reserva”, acrescentando que “a pior forma de tratar este tema é criar um debate público polarizado”.
Pedro Adão e Silva avisou mesmo: “Não contem comigo para isso”.
Apesar da manifesta indisponibilidade para uma discussão menos do que discreta, o ministro garantiu que o trabalho de inventariação dessas obras “será feito”.
Resta agora saber por quem!
Desconfiamos que a equipa de trabalho não incluirá a ex-deputada Joacine Katar Moreira, que propôs essa reflexão nos primórdios do seu mandato parlamentar, ainda vinculada ao Livre.
Na altura, a também historiadora defendeu a criação de um grupo de trabalho "composto por museólogos, curadores e investigadores científicos" com o propósito de fazer "uma listagem nacional de todas as obras, objectos e património trazidos das antigas colónias portuguesas e que estão na posse de museus e arquivos nacionais, por forma a que possam ser facilmente identificados, reclamados pelos e restituídos aos Estados e comunidades".
Quase três anos depois de a proposta ter sido silenciada (chumbada em Fevereiro de 2020), o ministro da Cultura vem dizer que a reflexão sobre o tema será confiada a académicos e directores de museus. Portanto, aos mesmos de sempre. Aqueles que de tão discretos parecem que não estão a fazer nada, enquanto conservam privilégios de séculos de saque. Com arte.
*O poema aqui transcrito é traduzido do livro “Questions for Ada”, da escritora nigeriana Ijeoma Umebinyuo, ainda sem edição portuguesa.
-Sobre a Paula Cardoso-
Fundadora da comunidade digital “Afrolink”, que visibiliza profissionais africanos e afrodescendentes residentes em Portugal ou com ligações ao país, é também autora da série de livros infantis “Força Africana”, projetos desenvolvidos para promover uma maior representatividade negra na sociedade portuguesa. Com o mesmo propósito, faz parte da equipa do talk-show online “O Lado Negro da Força”, e apresenta a segunda temporada do “Black Excellence Talk Series”, formato transmitido na RTP África. Integra ainda o Fórum dos Cidadãos, que visa contribuir para revigorar a democracia portuguesa, bem como o programa de mentoria HeforShe Lisboa. É natural de Moçambique, licenciou-se em Relações Internacionais e trabalhou como jornalista durante 17 anos, percurso iniciado na revista Visão. Assina a crónica “Mutuacção” no Setenta e Quatro, projecto digital de jornalismo de investigação, e pertence à equipa de produção de conteúdos do programa de televisão Jantar Indiscreto.