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Padrão Português dos Encobrimentos selado no Porto

No Gargantas Soltas de hoje Paula Cardoso, fala-nos sobre a exposição fechada logo após a inauguração.

Opinião de Paula Cardoso

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Já ouviu falar de Joaquim Ferreira dos Santos? Talvez o reconheça apenas pelo título Conde Ferreira, que dá nome, entre outras moradas, a mais de uma centena de escolas primárias espalhadas pelo país, e a um centro hospitalar, situado no Porto. 

Quase 160 anos após a sua morte, ocorrida em 1866, o que sabemos do seu legado, para além da herança edificada que vamos encontrando? 

Seguramente muito menos do que representou, e ao mesmo tempo, muito mais do que os saudosistas do Portugal imperial aceitam que saibamos. 

Que o digam os artistas brasileiros Dori Nigro e Paulo Pinto, que não só ousaram mostrar que sabem o que não deveriam saber, como se atreveram a espelhar esse conhecimento na recém-inaugurada exposição “Vento (A)mar”.

Uma ‘audácia’ que o sempre ardiloso Padrão Português dos Encobrimentos se especializou em ocultar, e que, desta vez, se ergueu, com tábuas, berbequim e parafusos contra a instalação “Adoçar a alma para o inferno lll”.

A obra, integrada na “Vento (A)mar”, patente no Centro Hospitalar Conde de Ferreira, no Porto, teve o topete de reflectir o espólio criminoso que o título Conde de Ferreira e as reiteradas omissões no ensino da História tanto se esforçaram por desfazer e, mais do que isso, por absolver.

Portanto, não é suposto sabermos – e menos ainda apregoarmos – que Joaquim Ferreira dos Santos “transportou de Angola para o Brasil cerca de 10.000 pessoas escravizadas, que vendia a proprietários de engenhos, recebendo em troca açúcar, que posteriormente comercializava com lucros altíssimos”.

Também não cabe nos anais do (des)conhecimento nacional a afirmação de que a origem do sucesso do Conde de Ferreira, “estava nos vastos lucros do comércio de pessoas escravizadas, entre Angola e Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco”. 

Tão-pouco se admite o insubordinado acto de questionar a origem da sua choruda fortuna, que, à falta de descendentes, deixou às instituições de beneficência, nomeadamente à Santa Casa da Misericórdia do Porto. 

“Quantas pessoas escravizadas valem um hospital psiquiátrico? Quantas pessoas escravizadas valem 120 escolas? Quantas pessoas escravizadas valem os títulos de nobre e benfeitor?”.

De criminoso escravocrata a benfeitor capitalista 

As perguntas, tal como a informação apresentada entre aspas, foram extraídas de “Adoçar a alma para o inferno lll”, a tal instalação de Dori Nigro e Paulo Pinto ocultada à força de tábuas, berbequim e parafusos, após escassos 30 minutos de exibição.

Segundo o Público, ao ver reflectidos, em vários espelhos, os factos nada nobres da vida de Joaquim Ferreira dos Santos, o administrador executivo do Centro Hospitalar Conde de Ferreira, Ângelo Duarte, azedou.

“Não percebo nada de arte, mas esta obra aqui, não!”, determinou o responsável, de acordo com uma testemunha, citada pelo Público. 

Confrontado pelo jornal com a intransigente decisão, Ângelo Duarte remeteu esclarecimentos para os “canais próprios” da Santa Casa da Misericórdia do Porto (SCMP), instituição que tutela o Centro Hospitalar.

Foi assim que ficámos a saber que, afinal, o diferendo sobre a instalação se explica por preciosismos técnicos: “Um dos espaços expositivos [de “Vento (A)mar”] continha ‘peças de arte’ com referência ao passado esclavagista do Conde de Ferreira, componente não apresentada na proposta preliminar da exposição.”

Aparentemente, não houve no encerramento qualquer tentativa de escamotear o passado esclavagista do Conde de Ferreira, cujo estudo, defende a SCMP, “é público e assumido”.

Antes fosse! Pelo contrário, a própria morada web do Museu e Igreja da Misericórdia do Porto encarrega-se de perpetuar a romantização da História, apresentando Joaquim Ferreira dos Santos como benfeitor e capitalista.

Uma reputação que vem de longe, conforme descreveu em 2020 José Manuel Clemente, ex-director da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, dando conta de um episódio com cerca de duas décadas, ocorrido no Hospital da Ordem do Carmo.

“(…) estando eu a contemplar uma enorme pintura retratando o Conde Ferreira – coberto por um manto vermelho encimado por uma linda gola de pele branca –, enquanto aguardava por uma doente que, mal se aproximou, ao ver-me a olhar para o quadro, exclamou: Grande homem este Conde de Ferreira. De imediato, retorqui: terá mesmo sido um grande homem? Lembrei-lhe que além de benemérito e filantropo tinha sido também um dos últimos traficantes de escravos”.

Mais de 20 anos se cumpriram, e a lição sobre quem foi o homem que ‘adoçou a alma para o inferno’ continua por aprender. O reflexo disso está naquilo que os espelhos da instalação de Dori Nigro e Paulo Pinto projectaram: o velho Padrão Português dos Encobrimentos. 

-Sobre a Paula Cardoso-

Fundadora da comunidade digital “Afrolink”, que visibiliza profissionais africanos e afrodescendentes residentes em Portugal ou com ligações ao país, é também autora da série de livros infantis “Força Africana”, projetos desenvolvidos para promover uma maior representatividade negra na sociedade portuguesa. Com o mesmo propósito, faz parte da equipa do talk-show online “O Lado Negro da Força”, e apresenta a segunda temporada do “Black Excellence Talk Series”, formato transmitido na RTP África. Integra ainda o Fórum dos Cidadãos, que visa contribuir para revigorar a democracia portuguesa, bem como o programa de mentoria HeforShe Lisboa. É natural de Moçambique, licenciou-se em Relações Internacionais e trabalhou como jornalista durante 17 anos, percurso iniciado na revista Visão. Assina a crónica “Mutuacção” no Setenta e Quatro, projecto digital de jornalismo de investigação, e pertence à equipa de produção de conteúdos do programa de televisão Jantar Indiscreto.

Texto de Paula Cardoso
As posições expressas pelas pessoas que escrevem as colunas de opinião são apenas da sua própria responsabilidade.

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