Não conseguimos evitar o pensamento arrumadinho. É natural que assim seja para todos os humanos, mesmo aqueles que julgam ser mais relaxados. Adoramos gavetas e procuramos pôr tudo nos lugares certos.
Pensar assim é uma forma de defesa. Ter um lugar apropriado para as coisas na nossa cabeça dá-nos a sensação de segurança, já que cada matéria passa a ter a sua divisão especifica, idealmente estanque, e por isso isolada, das restantes. Eu sei do que falo, acreditem. Tenho uma tendência ligeiramente exagerada para organizar tudo.
É ainda mais assim quando estamos a atravessar uma crise, qualquer que ela seja. Precisamos de nos tranquilizar e este tipo de entendimento estruturado ajuda-nos. Por isso identificamos sempre, de uma forma óbvia, duas fases temporais distintas e sequenciais, como se tivessem fronteiras explicitas e bem assinaladas. A primeira fase é o período da vivência da crise. A segunda fase é o que acontece depois.
Um método de acautelar a sanidade, enquanto estamos a atravessar por um período de transtorno, é perspectivar, positivamente, como será o momento a seguir. E, naturalmente, pela nossa forma de raciocínio em comunidade, alicerçada nos dogmas religiosos e pagãos que afirmam a bonança depois da tempestade, guardamos a esperança que da crise resulte um mundo melhor. “Não merecemos sofrer mais ainda.”
Mas nem sempre é assim. Muito raramente, aliás, será assim no mundo contemporâneo. É muito mais provável que as desigualdades se alastrem e se intensifiquem. Basta olhar para o exemplo da última crise financeira que vivemos.
A maior consequência da crise de 2008 foi a criação da dúvida que estado social foi um avanço na sociedade. É paradoxo que após um momento devastador causado pela banca de investimento e pela ganância de uns poucos “gestores de topo”, se culpe o estado e o seu aparelho, reduzindo a regulação, e o povo e a sua vontade gastadora incontrolável, aplicando um garrote asfixiador à população.
A segunda consequência foi a consagração da hipótese que há coisas demasiado grandes para caírem. Ou seja, que a fé nos mercados é insuficiente e que convém à sociedade socorrer os grandes, porque as consequências seriam inimagináveis.
Apesar de ser tendencialmente optimista, como todos nós temos mais jeito para ser, sinto que se entranha em mim a suspeição de que a gaveta etiquetada com “depois da crise” acomode, ainda mais, desigualdade.
Até porque estes dias, que antecedem essa gaveta, já vão deixando sinais preocupantes que caminham nesse sentido. Isso nota-se quando começa a ser evidente que existe uma divisão no formato de tentar encontrar soluções para os problemas.
A base dessa divisão assenta sempre na identificação de duas caixas:
- aqueles grandes de mais para cair
- aqueles a quem se aplica a teoria da evolução da espécie
Para os primeiros, deve-se encontrar formas de os proteger, pela importância que têm para a sociedade, pelo que significam para o “equilíbrio do sistema”, pelo garante que trazem para o futuro.
Para os segundos, deve-se deixar que a vida corra naturalmente, já que a evolução, o mercado, a ideia de meritocracia, se encarregará de privilegiar os vencedores e afastar os derrotados.
Permitam-me até sinalizar que este sistema de organização nestas duas caixas aplica-se, basicamente, a tudo. E é simples dar exemplos em todas as áreas da sociedade. Até mesmo no mundo da cultura e da comunicação. Ora espreitem:
Parece que há dois tipos de projectos artísticos. Os primeiros, associados à DGArtes, que devem ser acarinhados e protegidos, e os segundos, todos os restantes, que necessitam de encontrar respostas inovadoras dentro de si mesmos.
Parece que há dois tipos de autores. Os primeiros, que têm enorme notoriedade e são selecionados directamente pelas entidades públicas e privadas para os representar, e os segundos, os que sobram, que devem usar os seus estímulos criativos para encontrarem novos conceitos e lógicas.
Parece que há dois tipos de órgãos de comunicação. Os primeiros, os grandes grupos, que independentemente dos seus lucros passados, merecem ser salvaguardados, e os segundos, os media independentes, que têm a obrigação de se irem safando, como sempre o fizeram no passado.
Parece que há dois tipos de entidades ligadas à cultura. As primeiras, aquelas que são ouvidas em audiência presidencial, onde lhe é entregue o selo oficial de preocupação da república, e as segundas, todas as outras que não sendo gigantes, nem façam parte de uma associação política que as integre, têm de brilhar com as suas ideias disruptivas para conseguirem manterem-se vivas.
Óbvio que não estou contra os primeiros, em nenhuma das circunstâncias. Apenas sofro em deixar os segundos constantemente para últimos.
*Texto escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico
-Sobre Tiago Sigorelho-
Tiago Sigorelho é um inventor de ideias. Começou a trabalhar aos 22 anos na Telecel e, pouco depois da mudança de marca para Vodafone, resolveu ir fazer estragos iguais para a PT, onde chegou a Diretor de Estratégia de Marca. Hoje é o Presidente da Direção do Gerador, a plataforma que leva a cultura portuguesa a todos.