A tradição mandava que a Páscoa (até mais do que o Natal) se passasse na casa da Serra da Estrela, na pequena quinta que pertencia à família de meus sogros há já muitos anos.
O cascavélico (habitante de Cascais) não deixava de trazer para a Serra o bom peixe da costa atlântica para os dias magros da quadra pascal: Corvina e Garoupa para cozer; raia, cação, tamboril e safio para uma caldeirada feita “à pescador” com tudo posto em cru e apurando cerca de uma hora em tacho forrado de cebolas.
Nesses dias – Quinta e Sexta Feira Santas – bebia-se o excelente branco da casa, feito pelo meu sogro com as suas uvas, simplesmente refrescado à temperatura da adega virada a norte e bem fria, onde repousava em garrafas empinadas.
No Sábado de Aleluia largavam-se os fastios e guisava-se para o almoço uma Feijoca à Pastor da Serra – uma boa puxada de carnes de vaca (chambão) , pé de porco e chouriço caseiro da matança, que é misturada ao feijão branco grosso (feijoca) que esteve previamente de molho, cozeu e refogou-se em seguida. O segredo é só a lentidão da execução ao lume, com as carnes a embeberem no molho grosso largado pela feijoca em lenta cozedura que leva bem umas quatro horas sempre no mínimo do bico do fogão.
Para acompanhar um tinto da mesma lavra caseira, que se ia tirar diretamente do pipo.
Para o Domingo de Páscoa começavam as preparações logo no Sábado: Agriões, alfaces e tomates foram muito bem lavados para as diversas saladas (de agrião com cebola, de tomate com cebola e de alface também com cebola). O pastor que andava nesse ano a pastar as suas ovelhas no prado da quinta, em frente à casa, oferecia um borrego “mamão” - um pouco grande para os hábitos das nossas cidades, onde o tamanho é indicador de carne mais tenra - mas aqui na origem esta ainda era a carne mais saborosa.
Fazia parte da “renda” que o pastor pagava, para além dos borregos, uma certa quantidade de Queijo da Serra feito pela sua mulher. Logo no mesmo Sábado à noite, enquanto esperávamos para jantar, lá chegava uma canastra com os queijos. Um deles era logo “apartado” para o almoço do dia seguinte.
No dia seguinte o forno ligava-se às 8.00h da manhã e começava a assar. Descascavam-se as batatas para fritar (não cabiam no forno por causa do tamanho do borrego) e fazia-se Leite Creme e Arroz Doce enquanto se esperava.
Nesses dias especiais ia à adega retirar uma garrafa magnum da minha reserva particular. Normalmente um Dão engarrafado pelo Dr. Rodrigo Santos Lima na sua Quinta da Passarela (em Silgueiros).
O borrego assado dava o melhor de si próprio, como seria de esperar quase depois de três horas e meia de forno lento, e só a prova do queijo de entorna nos levava (por excesso) a ir buscar um Porto Vintage Fonseca Guimaraens de 1967.
Tanto o “Santos Lima” como este Porto ainda foram comprados ao saudoso amigo Dr. Chambel, do Fórum Prior do Crato.
São as saudades da família e dos amigos ausentes que fizeram este texto de hoje.
Páscoa de há vinte anos. Que boa era…
-Sobre Manuel Luar-
Manuel Luar é o pseudónimo de alguém que nasceu em Lisboa, a 31 de agosto de 1955, tendo concluído a Licenciatura em Organização e Gestão de Empresas, no ISCTE, em 1976. Foi Professor Auxiliar Convidado do ISCTE em Métodos Quantitativos de Gestão, entre 1977 e 2006. Colaborou em Mestrados, Pós-Graduações e Programas de Doutoramento no ISCTE e no IST. É diretor de Edições (livros) e de Emissões (selos) dos CTT, desde 1991, administrador executivo da Fundação Portuguesa das Comunicações em representação do Instituidor CTT e foi Chairman da Associação Mundial para o Desenvolvimento da Filatelia (ONU) desde 2006 e até 2012. A gastronomia e cozinha tradicional portuguesa são um dos seus interesses. Editou centenas de selos postais sobre a Gastronomia de Portugal e ainda 11 livros bilingues escritos pelos maiores especialistas nesses assuntos. São mais de 2000 páginas e de 57 000 volumes vendidos, onde se divulgou por todo o mundo a arte da Gastronomia Portuguesa. Publica crónicas de crítica gastronómica e comentários relativos a estes temas no Gerador. Fez parte do corpo de júri da AHRESP – Associação de Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal – para selecionar os Prémios do Ano e colabora ativamente com a Federação das Confrarias Gastronómicas de Portugal para a organização do Dia Nacional da Gastronomia Portuguesa, desde a sua criação. É Comendador da Ordem de Mérito da República Italiana.