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Paulo Campos dos Reis (Culto): “A poesia tem de ser desendeusada”

Desde 5 de fevereiro, a MUSGO, uma estrutura de criação teatral, tem apresentado, na RTP…

Texto de Ricardo Gonçalves

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Desde 5 de fevereiro, a MUSGO, uma estrutura de criação teatral, tem apresentado, na RTP Palco, a série Culto, onde a cada episódio é partilhado um diálogo artístico, que alia a poesia de língua portuguesa à música, à dança e à performance. Numa parceria com o município de Oeiras, a série de nove episódios – sensivelmente a meio à data de publicação desta entrevista – contará ainda com o encontro de Ana Deus e Luca Argel, que exploram o seu projeto musical em torno de Fernando Pessoa, para além da poesia de Drummond de Andrade, Ana Farrah Baunilha, Regina Guimarães e do próprio Luca Argel, no dia 12 de março.

Já na reta final da temporada, Cirila Bossuet diz Alda Lara e Gisela Casimiro, enquanto os seus pais Wavovádio Gomes e Luísa Bossuet dançam peças recuperadas do repertório do Ballet Nacional de Angola, do qual foram fundadores. Segue-se o encontro entre Isaque Ferreira e Manuel João Vieira à volta de Bocage, João Habitualmente e poemas improvisados, e, para terminar o ciclo, Diogo Dória irá fazer-se ouvir com poemas de Mário Cesariny, Rui Cinatti, Ricardo Reis e Carlos de Oliveira, ao mesmo tempo que João Fiadeiro revisita e readapta uma criação da sua autoria ao espaço do Templo da Poesia.

Em entrevista ao Gerador, Paulo Campos dos Reis, diretor artístico da MUSGO, fala-nos sobre a origem da série, assim como da junção entre artistas de diferentes áreas, mas também da sua adaptação ao formato audiovisual devido à pandemia. O também ator e encenador aborda ainda o papel da poesia na sociedade, bem como a importância do espaço público na fruição artística e cultural, perspetivando a sua reocupação depois de existir um controlo mais efetivo da atual conjuntura pandémica.  

Gerador (G.) – Nove episódios, nove encontros inusitados, onde a poesia assume um papel orientador, que aqui se alia à dança e à performance. Como é que surgiu a série e de que forma é que a pandemia teve influência no seu formato?
Paulo Campos dos Reis (P. C. R) – Em boa verdade, o projeto surgiu antes desses momentos. Começou por ser pensado como um espetáculo presencial, que juntava estas parelhas e tem que ver com a circunstância de nós, ao nível da produção cultural, termos uma relação umbilical com a poesia. No nosso repertório temos constantemente trabalhado textos de poetas portugueses e não só, e em particular temos como dramaturgo residente, um também poeta e romancista, o Jaime Rocha. Depois, uma visita encantada ao Parque dos Poetas, que o município de Oeiras construiu e ao Templo da Poesia, que são tudo grandes nomes e que assustam um pouco à partida, mas que significa que temos de os enfrentar e esse legado que ali se pretende representar, com os poetas clássicos que lá estão representados, com o seu peso museológico que é preciso reativar e exumar para os trazer de novo à vida. Daí surge essa proposta ao município de Oeiras. É importante dizer-se que o projeto corresponde a uma parceria com o município, que resolveu inscrever a programação do Culto na sua candidatura a Capital Europeia da Cultura 2027. E, sucessivamente, surge então o convite a um conjunto de artistas. A crise pandémica obrigou-nos a passar de uma programação que seria para fazer ao vivo, para o online, e tratámos de convidar também, para além dos artistas, um cineasta que trabalha connosco, o Ricardo Reis, e depois colher um apoio significativo que temos da RTP Palco, que permite a difusão destes conteúdos.

O primeiro episódio da série juntou a atriz Beatriz Batarda à bailarina e coreógrafa Vera Mantero

G. – São encontros, onde se leem poetas mais ou menos conhecidos portugueses ou de lusofonia. Houve aqui um pensamento muito estruturado por detrás destes encontros?
P. C. R. – Sim. Para já, são pessoas com as quais eu tenho uma relação de trabalho ou de adoração. Entre os próprios artistas há também casos singulares de pessoas que se cruzaram muitas vezes e que têm trabalho comum, como é o caso da Ana Deus e do Luca Argel, é o caso também do Pedro Lamares e do Andrés “Pancho” Tarabbia. Houve aqui uma premeditação de cruzar — e isso foi desde logo um bordão desta série — a poesia com a música e com a dança. A poesia como a matriz, a lava e, depois, as outras duas áreas que se cruzam. Depois, houve também um outro bordão e que teve que ver com a circunstância de estarmos a fazer o culto no Parque dos Poetas e no Templo da Poesia e, portanto, a necessidade de trazer à liça poetas canônicos, mas também este gesto de programação que foi trazer os novos autores. As seivas têm de se renovar, um bocadinho como numa dialética primaveril, digamos assim. E foram, então, estas as razões que formaram a curadoria e a programação.

G. – Nessa transformação para o digital, recearem que perdesse o seu intuito?
P. C. R. – É uma questão delicadíssima. O nosso ADN é teatro e literatura. Nós temos feito sobretudo, muito embora tenhamos versado sobre textos de autores e poetas, de teatro. Também temos algum trabalho da área de edição de poesia, mas as artes performativas, e o teatro em particular, é a nossa área dominante. Quando passamos para o audiovisual há sempre, inevitavelmente, uma sensação de perda. Nessa passagem da não presença de público no espaço, desse contacto direto e dessa ligação com o público que caracteriza o teatro. Só que depois surge também a força do audiovisual e do vídeo porque se cria uma arte, que tem muitos pontos de contacto com o teatro, mas que nos traz a possibilidade de chegarmos onde o teatro não chega. Não quero ser redutor nesta transposição, mas o cinema permite logo, do ponto de vista do áudio, trabalhar num registo muito mais sussurrante e muito mais expressivo. Não precisas de colocar a voz, como se coloca no teatro. Consegues iludir o olhar do espectador e fechá-lo num close up sobre uma expressão, sobre um gesto e dar a possibilidade ao espectador de ter outros pontos de fuga. E aqui isso foi muito claro, porque os nossos episódios são gravados no próprio Parque dos Poetas, onde podem ver os artistas a deixarem- se contaminar pelo próprio espaço. Ora, estes diálogos entre a dança, música e a poesia com os espaços criam aqui um território de contaminação e de mistura que nos interessa muito e que deflagra novos sentidos para a própria poesia.

G. – E estamos também numa época em que tanto se fala de cruzamentos disciplinares, que com o digital parecem ainda mais facilitados. No caso do Culto, sentem que, de alguma forma, houve uma aprendizagem na forma como se olha para estes cruzamentos?
P. C. R. – Sim. Existiu, sem dúvida, uma aprendizagem. Não é que nós não façamos isso nos nossos espetáculos, que se levantam a partir dessa intenção de transdisciplinaridade. Temos essa intenção recorrente e, aliás, é verdade que nós além do culto já programamos um outro espetáculo transdisciplinar que se chamava "Ofensiva Amada", no Centro Cultural Olga Cadaval, em Sintra, onde justamente cruzávamos a literatura com o cinema, dança e com todo um conjunto de artes que se cruzavam, às vezes, de uma forma mais íntima. Portanto, é uma prática que nós temos vindo a ter em conta.

G. – Ainda não fez um ano que surgiu a RTP Palco, plataforma que acabou por ser importante durante a pandemia mas também como serviço público audiovisual no campo do teatro e das artes visuais. Consideras importante o aparecimento desta plataforma?
P. C. R. – Absolutamente. Do ponto de vista de uma companhia de teatro tem sido uma experiência maravilhosa porque há um critério muito interessante e não é um aglomerado de coisas que são incompatíveis. Depois, têm também uma ideia muito interessante e ainda passível de ser conceptualizada, do teatro digital. Como é que nós, usando as redes digitais, que hoje em dia proliferam e se desenvolvem rapidíssimo, hoje em dia, podemos aproveitar essa ferramenta digital e apresentar espetáculos, que já não são teatro de sala e de copresença, mas que também não são cinema e que estão nessa zona de fronteira como híbridos. Isto é tudo muito estimulante e são desafios extraordinários de criação. É uma oportunidade que, infelizmente, se precipitou devido às circunstâncias, mas não era uma coisa que não pensássemos já fazer, de como é que podíamos interagir digitalmente com o teatro. Claro, através do audiovisual, mas não só. Com o áudio através dos podcasts. Há muitas maneiras de ativares digitalmente um conteúdo e a RTP Palco está na linha da frente dessa pesquisa e dessas propostas. Portanto, é um privilégio estarmos aí representados.

No quarto episódio, Paulo Campos dos Reis leu poemas de António Ramos Rosa, sendo acompanhado pela dança de Francisco Camacho

G. – Acaba por ser, como dizes, um ano em que muitas tendências, de alguma forma, foram aceleradas, mas parece existir também um olhar de novo sobre a importância do espaço público na cultura. No futuro, acreditas que este espaço público poderá ter um papel ainda mais importante na fruição cultural e artística?
P. C. R. – Sem dúvida, até por antítese. Temos estado fechados e, agora, as pessoas vão seguramente ter vontade de sair. E essa ocupação do espaço público acho que está absolutamente no desejo das pessoas. E aqui tomando o espaço público como não só a rua, mas também o teatro. Esses espaços vão ser reocupados e espero que com uma energia renovada. No caso particular de Oeiras, espero que sim, até porque quer o Templo da Poesia, quer o Parque dos Poetas são equipamentos que foram pensados para celebrar a poesia e é bom que esses equipamentos sejam ativados e programados. Para que esta ideia de que Portugal é um país dos poetas não seja só uma frase redonda e que não tenha implicação real na práxis política e pública. Melhor assim também que, apesar dos tempos que vivemos e daquilo a que esta conjuntura nos sujeitou do ponto de vista laboral, sobretudo da classe artística, este retorno ao espaço público e a afirmação da necessidade da cultura no espaço público seja também motivo para que quem de direito, no caso o Estado, possa ter um olhar mais carinhoso para com esse setor.

G. – Sentes que, da mesma forma, este projeto marca também uma posição vossa de que a poesia não é uma “língua morta” e que, na verdade, faz parte da nossa vida e do nosso quotidiano?
P. C. R. – Sem dúvida nenhuma. Tocas num ponto muito importante e que talvez seja seminal para nós. Essa ideia de que a poesia tem de ser desendeusada e que tem de vir cá abaixo para nós a podermos olhar de outra maneira. Tem de ser sacra, mas também tem de ser chã. E, por uma razão ou por outra, tenho esta sensação e basta olhar para os números de venda de livros de poesia e para as tiragens para perceber que o público ainda não tem uma relação fecunda e frutífera ou mais abrangente como nós gostaríamos que fosse.

G. – Ainda que, no entanto, muita da vitalidade da literatura portuguesa esteja precisamente na poesia e nos novos autores.
P. C. R. – A poesia acompanha bem os ritos de passagem. Mas sem dúvida que o Culto, ao representarmos nestes encontros que muita das vezes não seriam previsíveis e ao ativarmos essa relação e esse diálogo, é a mesma coisa que estarmos a dizer que também nós próprios podemos dialogar com a poesia. Como diria a Sophia de Mello Breyner, a poesia decorre do ser. E por isso é que a poesia é também uma condição da nossa própria existência, do nosso ser e do nosso dia a dia.

G. – E daí ser também uma forma de 'culto'?
P. C. R. – Claro que sim. Essa palavra liga-se diretamente ao facto de estarmos a gravar no Templo da Poesia, sendo um sítio onde se presta o culto. Mas claro que sim, estamos a falar de cultuar a poesia, não no sentido institucional ou religioso do termo, mas dessa religação com a poesia.

G. – Estamos neste momento a meio da série. Como é que a mesma tem sido recebida?
P. C. R. – Com muito entusiasmo. Começando pelas redes sociais, temos tido um retorno extraordinário, com muitos comentários de pessoas agradecidas e a valorizarem o facto de estarem confinadas e de poderem ter acesso a este tipo de programação. Outras pessoas a dizerem que o trabalho e estes cruzamentos ativam uma maneira nova de pensarem aqueles poemas e de se relacionarem ditos e dançados por aqueles artistas. Entre os próprios artistas também, muito entusiasmo porque estão satisfeitos de o terem estado a fazer e devido ao bom resultado final. Nós próprios estamos muito satisfeitos também porque foram meses de rodagens numa altura em que ainda havia confinamento. Portanto, tem sido uma reação nossa, dos artistas e do público consensual e muito positiva.

O mais recente episódio juntou o poeta Nuno Moura com o músico Carlos Zíngaro

G. – Acham previsível que o Culto possa ter uma continuação, presencial ou não?
P. C. R. – Estamos com muita vontade de continuar. Temos tido da parte de quem vê esse input para dar continuidade ao projeto. E nós estamos muito empenhados em que prossiga. Vamos naturalmente sujeitar à consideração do município de Oeiras que abraçou e considerou esta possibilidade. Vamos reapresentar a proposta ao município porque da nossa parte há toda a vontade e há também muitos artistas que também têm contactado connosco com vontade de participar. E parece-me também que há muito trabalho a fazer neste cruzamento em que nos queremos incrementar de cruzar os canónicos com os novíssimos. Não apenas os poetas que participam e que são lidos, mas também os próprios intérpretes. Que possamos abrir cada vez mais e conseguir exatamente por no mesmo patamar e no mesmo episódio pessoas que têm experiências e visibilidade diferentes. Isso também é uma forma, para nós, de tornar acessível. Nós não nos queremos colocar num lugar de poder. Queremos que seja um espaço acessível. Obviamente que isso tem de ser feito com critério e com programação, mas esse impulso é o nosso.

Texto de Ricardo Ramos Gonçalves
Fotografias de Ricardo Reis

Se queres ler mais entrevistas sobre a cultura em Portugal, clica aqui.

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