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Pedro Alves: “Sentemo-nos, conversemos, e tentemos encontrar soluções”

No passado dia 12 de janeiro, Pedro Alves, diretor artístico do teatromosca, redigiu uma carta…

Texto de Isabel Marques

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No passado dia 12 de janeiro, Pedro Alves, diretor artístico do teatromosca, redigiu uma carta aberta, para o Jornal Público, em que falou acerca das inquietações, e do possível novo confinamento que acabou por afetar, também, o campo da cultura. Nesta, era proposto, ainda, um encontro com as devidas medidas de distanciamento, entre os diferentes profissionais do setor. O objetivo era só um:  discutir-se e redefinir-se linhas essenciais no setor face à pandemia e ao confinamento.

A verdade é que o encontro acabou por ocorrer, no passado sábado, e dele surgiu um conjunto de " propostas para mitigar o impacto catastrófico da paralisação do setor” que Pedro acabou por partilhar, de novo, em forma de texto, no dia 18 de janeiro, com entidades e órgãos de comunicação social. 

Em entrevista ao Gerador, Pedro Alves explicou a prioridade do encontro entre os representantes da cultura, falou acerca das medidas propostas pelo Governo face ao novo confinamento, sobre o programa Garantir Cultura , sobre possíveis soluções a adotar de imediato, e sobre as expetativas futuras do setor da cultura.

Gerador (G.) – A última carta aberta de apelo à sobrevivência da cultura fala acerca do encontro que ocorreu no passado sábado. Nele participaram representantes de estruturas profissionais de artes performativas, diretores de teatros, programadores, entre outros. Face ao panorama atual, como nasceu esta prioridade das instituições se unirem e se imporem face às medidas anunciadas pelo Governo?

Pedro Alves (P.A) – Isto nasceu antes das últimas medidas do Governo. Senti que era necessário encontrar soluções para o que estávamos a viver naquela altura. A ideia de que tínhamos desconfinado completamente era um erro. Na verdade, não tínhamos desconfinado tudo completamente, não tinha havido uma retoma do setor. Portanto, havia imensas pessoas, e muitas estruturas, que não estavam a trabalhar em pleno, ou que não estavam sequer a trabalhar. Continuava a passar a ideia de que estava tudo bem quando não estava.

Adivinhava-se já este confinamento. Na possibilidade de parar o setor todo, comecei a sentir que havia necessidade de refletir sobre os prejuízos que viriam. Voltarmos a fechar as salas de espetáculo. Cancelarmos os eventos, e por aí adiante. E, embora já existissem conversações com o Ministério da Cultura e já houvesse encontros com estruturas, plataformas, associações, outras mais formais, outras menos, que, de algum modo, entendia-se que representavam o setor, eu tinha a sensação de que havia um conjunto ainda bastante vasto de questões, e de situações que escapavam a esses círculos de reflexão. Havia um trabalho bastante avançado na área da criação de uma lei específica para aquilo que se entende como o Estatuto do Profissional da cultura, e isso está ainda em marcha. Há discussões abertas, ainda, sobre a reformulação do financiamento e dos processos de financiamento público às artes. E a questão da Rede de Cineteatros Portuguesas.

Portanto, esses três assuntos estão na ordem do dia e estão a ser debatidos. As instituições vinham a discutir uma série de alterações de leis que já existem e regulamentos que têm que ver com os financiamentos.

Mas, havia, e há, um conjunto, ainda, bastante vasto de outras questões que não têm sido debatidas, que não têm sido discutidas, e que são sistémicas, estão na base de tudo isto, que vão contaminar todo o discurso. Portanto, nós estamos a discutir um conjunto de assuntos que importam discutir, mas há outras questões que são basilares, e que não são discutidas de um modo alargado e inclusivo. Por isso, decidi que fazia todo o sentido chamar para uma discussão informal, desligado e desvinculado de partidos políticos, e de associativismos, precisamente para tentar quebrar os círculos que já existem, não para os derrotar, mas para trazer outros contributos que habitualmente não estão dentro desses círculos. E, portanto, chamar desde os diretores, os programadores, os teatros, empresas, companhias de dança, técnicos, o CENA-STE, até as próprias bibliotecas e bibliotecários, e o Governo, as autarquias… No fundo, todos os equipamentos que estão ligados a estas questões, e que deverá ser promovida uma reflexão desempoeirada, sem floreados para discutir questões que terão que ver com todos.

 Há um leque de artistas e profissionais que não têm sequer qualquer relação com a DGArtes, e, portanto, o discurso não pode ser só entre alguns e a Direção - Geral das Artes. Tem de ser muito mais abrangente, tem de ter noção de realidades muito distintas para, depois, ser feito um diagnóstico de forma a se poder ajudar. Este encontro vinha muito neste sentido de abrir diálogo com muitas outras pessoas, e, depois, de aí tentar produzir reflexões, tentar produzir pensamento, e se possível também procurar encontrar soluções, outras ideias e outras respostas.

Fotografia disponível via facebook Teatro Mosca

(G.) – Por curiosidade, desde a redação da carta aberta, sentiste, desde logo, um feedback positivo à organização deste evento? De que forma se processou a organização do próprio?

(P.A) – Não! Houve reações divergentes… Como era um universo tão complexo, eu já esperava que as respostas fossem diferentes. Portanto, houve alguns que surgiram com um certo entusiasmo, e aceitavam de bom agrado discutir estes assuntos.  Era, no fundo, adivinharmos que vinha aí um confinamento, e uma paralisação do setor. Vinham aí dias muito complicados, em que não bastava ficarmos a discutir financiamentos, candidaturas, redes de cineteatros, tudo isto implicava muito mais.

Eu sabia que, ao chamar todos para dentro de um espaço, iria chamar opiniões distintas, ou seja, iria criar aqui um caldeirão de opiniões a fervelhar, de muitas ideias contrárias. E, claro, haveria discussão, mas era esse o intuito! Claro que algumas pessoas estão muito predispostas à crítica, à reflexão do setor, e há outras que não estão habituadas ou sensibilizadas para esse tipo de reflexão, e, eventualmente, umas não respondiam, outras respondiam dizendo que não era o momento, outras sentiram-se atacadas por já haver discussão. Portanto, houve reações diversas. Mas a esmagadora maioria que foi desafiada respondeu positivamente, inclusive o próprio Ministério da Cultura que já respondeu a esta última carta, reconhecendo que havia questões a clarificar relativamente às medidas que tinham sido anunciadas pela Ministra da Cultura. Portanto, estariam abertos para o diálogo.

As respostas foram positivas. Agora, se mesmo aqueles que responderam afirmativamente estão dispostos a discutir exaustivamente sobre um conjunto de realidades, de forma a irmos com elas o mais longe possível, aí já é outra história. Isso implica, de facto, muita discussão, muita reflexão, um sentido crítico muito apurado, olhar para dentro do setor, o setor olhar para si próprio, reconhecer as suas fragilidades, e os seus papéis… Aqui, a ideia era levar isto tudo mais fundo, e abrir algumas feridas que já se percebeu que a crise pandémica veio expor com mais urgência. Algumas delas já cá estavam como a precarização do setor, mas há muito mais.  A questão do estatuto que, também, não é tão simples de se resolver… É fundamental que se conheça aquilo que já se tem, que se tenha um conhecimento profundo, e que se faça uma espécie de diagnóstico desses mecanismos que já existem, e se tente perceber se, aquilo que já existe, é utilizado ou não, se recorrem, ou não, a esses mecanismos, e se não recorrem, porque não recorrem? E certamente chegamos a uma conclusão.

Falta muita informação, muita formação para que estruturas, entidades de natureza diversa, e um conjunto muito alargado, e muito abrangente, de profissionais saibam o que já existe, porque, muitas vezes, o que acontece é que se propõe um contrato de trabalho com segurança social, seguro de acidentes de trabalhos, 13º mês, aquelas coisas "mercado de trabalho normal" do mercado de trabalho normal, e os profissionais escolhem a precarização, e escolhem continuar a recibos verdes.

Agora percebe-se que esse tipo de relação laboral é extremamente miserável, e que tem de ser muito bem pensado, mas também não é só exigir um estatuto. Atenção, já existem mecanismos próprios, mais menos adequados, para o setor da cultura. Mesmo na questão do estatuto as coisas têm de ser analisadas com mais tranquilidade e com um sentido crítico mais apurado.

(G.) – Explorando o teu texto, começas por falar num conjunto de medidas e leis relacionadas com o Estatuto do Profissional da Cultura ou com a Rede de Cineteatros ou a reformulação do Modelo de Financiamento da atividade artística que deveriam ser discutidas. Enquanto profissional do setor, que medidas, num panorama geral, deveriam ser revistas?

(P.A) – A primeira questão que eu assinalaria, se olhasse para o imediato, e que nos está a afetar de uma forma excecional, é que estas medidas anunciadas pelo Governo sofrem, logo à partida, de um problema terrível de comunicação. Serem anunciadas como medidas que vão atingir todos, e não atingem todos. Não há um diagnóstico feito, não há uma "monotorização" feita. Há a decorrer através do Observatório Português das Atividades Culturais, um projeto feito em parceria com a DGArtes e o ISCTE, que está a fazer uma espécie de levantamento do setor, e isso é extremamente importante. E importa que esse levantamento que está a ser feito seja permanente. Deve haver um diagnóstico, e esses relatórios devem ser, constantemente, publicados servindo para guiar a tomada de decisões.

Aqui, claramente esse trabalho não foi feito. As medidas anunciadas vão atingir, especialmente, entidades que já têm relação com a DGArtes. Ora, a Direção Geral das Artes nunca vai conseguir ser instrumento para conseguir resolver todos os problemas de um setor mais amplo, até porque há muitas entidades que não têm qualquer relação com a DGArtes. Falo, por exemplo, de um conjunto de estruturas profissionais, de teatro, dança, e música que prestam serviços e desenvolvem, em união, um conjunto de atividades junto das escolas, das associações, e de uma série de outras entidades públicas e privadas, e que fazem esse trabalho com base em receitas próprias. Vendem espetáculos, prestam serviços, e, portanto, não têm financiamento público direto, e não têm qualquer relação com o Ministério da Cultura ou com a Direção-Geral das Artes. Esses imediatamente estão excluídos daquelas linhas de financiamento, e linhas de apoio que são propostas pelo Ministério. E estes exemplos são já centenas.

Se formos ao campo da música ainda é maior… Se alargarmos isto ao circo, uma série de artistas de recriações históricas é um setor muito abrangente, e que ali não vai encontrar soluções.

Quando muito encontraria solução naquele apoio social dos 400 e tal euros que estão ali anunciados, mas aquilo servirá para pagar a conta da eletricidade, do gás, da água, e talvez sobre alguma coisinha para pagar a renda. E, portanto, aqui não é suficiente. É um passo importante, mas não é suficiente. Há logo ali um problema como sendo medidas que chegam a todas.

Anunciar também que são 42 milhões para o setor é também, no mínimo, um pouco complicado. Na verdade, aquela verba vai chegar, apenas, a entidades do teatro, da dança, da música, que concorreram à DGArtes, que já têm financiamento. Neste momento, já têm financiamento, no âmbito dos apoios sustentados. Agora, vai um reforço para o Ministério e para a DGArtes, e então vai-se buscar essas entidades que ficaram de fora, e vai-se lhes dar financiamento. Ora, isso esgota quase os 42 milhões anunciados. Depois, sobra ali uns milhares para isto, e para aquilo, mas o grosso daquela fatia do orçamento de Estado que é anunciado para a cultura esgota-se rapidamente. É insuficiente também.

Depois, anunciar que é a fundo perdido é um erro de todo o tamanho. Não é fundo perdido… São centenas de estruturas que já estão a trabalhar, ou vão retomar as suas atividades, em que aquela verba vai servir para financiar uma parte dos orçamentos que são necessários para executar um conjunto muito vasto, muito rico, de atividades de todas aquelas estruturas que vão receber dinheiro. Ou seja, o Estado está a investir uma parte nos orçamentos de estruturas, que em alguns casos, essa verba que virá da DGArtes representa apenas 10%, 15%, 40% dos orçamentos gerais dessas estruturas. É um investimento que o Estado faz para que as estruturas consigam ter melhores condições, juntando a outros patrocínios, a outras receitas próprias. Portanto, não é um investimento a fundo perdido como quem diz que quem ouve aquilo em casa, a um contribuinte comum, que vê a Ministra a anunciar medidas que são 42 milhões injetados na cultura, a fundo perdido, fica com a ideia que é "toma lá dinheiro para vocês ficarem quietos"… Não fazem nada. Mentira! É para financiar programas de atividades que passam por espetáculos de teatro, de música, concertos, festivais, intervenção comunitária, por aí adiante. Não é uma verba a fundo perdido…. É importante saber-se isso.

Logo por aí, estamos mal. Há um problema de comunicação. Mas, depois, há um conjunto de outras medidas que não são anunciadas, e que poderiam ser propostas se as discutíssemos. Por exemplo, no teatromosca nunca parámos… No primeiro confinamento nós regressamos de uma digressão internacional, em França, mesmo a tempo de encerrarem as fronteiras. Tivemos 15 dias de confinamento, para ver se estava tudo limpo de infeções, a partir daí começámos. Estabelecemos calendários, distribuímos as equipas, começamos a fazer planeamentos malucos, mas continuámos a trabalhar. Ora ensaiávamos em casa, no estúdio, em ensaio, mas continuamos sempre a criar e nunca paramos. E isso é possível.

Aqui, de repente, criou-se a ideia de que tinha tudo de parar, que os auditórios todos tinham de fechar, toda a gente ficar em casa, certíssimo. Se fosse, era. Mas, como houve exceções para este, e para aquele, e o Primeiro Ministro acabou por anunciar tantas exceções como regras, obviamente nós olhamos e pensamos — nós também podemos estar em teletrabalho. Portanto, nós continuamos. Na quinta-feira ficámos confinados, na sexta apresentámos um espetáculo em live-streaming, a partir do nosso auditório. Felizmente, nós continuamos.

Mas como é que num universo tão vasto do mundo da cultura, em que 99% dos espaços culturais estão encerrados, e em que a mensagem que passou foi de — encerra tudo, fechar tudo, vamos sobreviver? Na Guarda, em Vila Real, em Beja, em Torres Vedras, onde quer que seja, quase todos os equipamentos estão encerrados. Por isso, é fundamental existirem recomendações claras e muito diretas para o que é que se pode fazer e o que se deve fazer. Obviamente que o Ministério da Cultura tem aqui um peso gigante em tudo isso e em dar uma indicação clara.

Também deveria haver um investimento extra àquele que foi anunciado, mas falta ali muito mais. Deveria haver um investimento, e que pesava 0,00% no orçamento de estado, que bastaria ser até 10 milhões de euros para abrir, rapidamente, uma linha de financiamento a "fundo perdido", podemos chamar assim, para que espaços públicos ou privados, se candidatassem para se equiparem com materiais audiovisuais e multimédia, para captação e emissão de espetáculos. Haveria certamente alguns que diriam que o espetáculo streaming não é opção, ou "eu não quero estar a representar para uma plateia vazia", mas essa discussão vale zero neste momento. Não interessa discutir o que é, ou não, teatro.

Mas, para além disso, estamos a falar de sobrevivência e de medidas para mitigar o impacto catastrófico que terá uma paralisação do setor durante um confinamento que pode durar um mês, dois meses, três meses. Perante esta situação nós ficarmos só parados à espera de um subsídio, não é a melhor das opções.

Portanto, exigir ao Ministério da Cultura outras ideias creio que é fundamental neste momento. E um investimento em equipamento ou em equipas especializadas em edição de imagem, em captação, em transmissão, em live streaming, iria fazer com que isso representasse um investimento para o futuro. Muito possivelmente vamos passar por mais confinamentos, por outras crises, virão outros momentos desafiadores, é quase como exigir que o Governo antecipe as crises pandémicas e comece a comprar mais esquipamento, a contratar mais profissionais, melhores condições para que o SNS esteja mais robusto e consiga antecipar as crises.

Aqui, é trabalharmos para agora e fazer pensar no futuro, porque 2021 vai repetir tudo isto, muito provavelmente em 2022 ainda vamos continuar nisto… A diferença era haver menos desemprego, menos projetos cancelados, e, possivelmente, até se promovia o emprego.

Para além disso, estaríamos a pensar nos públicos, públicos esses que têm uma oferta limitada na sua maioria. Podiam ter acesso a espetáculos, teatro, circo, o que fosse, e diversificaríamos a oferta cultural. Aliás, se sabemos invocar a Constituição da República para defender a abertura das igrejas, então que se invoque também para as pessoas continuarem a trabalhar, continuarem a fazer o seu trabalho, a desempenhar as suas funções que estão relacionadas com a cultura.

(G.) – De forma a combater a pandemia, o Governo decretou o encerramento de todos os equipamentos culturais, como falámos anteriormente. Nesta lógica, nasceu o Programa Garantir Cultura como “apoio a fundo perdido sem concurso.” Ainda assim, ao longo do texto, referes que este não é o modo mais acertado de o descrever, como também referiste há pouco. Qual a forma mais correta para o qualificar?

(P.A) – Eu não sei qual é a forma mais correta, mas efetivamente há um problema de comunicação. É muito importante que quem está no setor compreenda que a cultura, e a economia da cultura são, há demasiado tempo desvalorizadas. Já foram feitos estudos, o de Augusto Mateus é muito provavelmente o mais conhecido de todos relativamente ao setor da cultura, e sabemos que, mesmo ao nível europeu, o setor da cultura é tão ou mais importante do que qualquer outro setor de atividade na sociedade.

O seu papel dentro da economia é fundamental. Gera emprego, receita, é transversal, chega a influenciar a indústria, o turismo, por aí adiante. Se já sabemos isso, isso tem de ser, de alguma forma, defendido e transmitido de uma forma clara. Temos de acabar com a ideia que está enraizada dentro da cabeça das pessoas que é só para alguns. Há que encontrar, dentro do discurso político, o papel de peso que deve ter a cultura, e a economia da cultura. Tem de se começar a defender que todos os profissionais da cultura fazem muito mais do que criar projetos para si, para os seus amigos, ou para os familiares… Não! É um setor muito complexo… A maioria deles desempenha um papel fulcral, como tal tem de ser não só quando existem crises ou algo corre menos bem. É tão fundamental como o ensino. É tão fundamental como a saúde. O acesso à cultura permite-nos expandir diálogo com os outros, abrir os nossos horizontes, estabelecer pontes com outras culturas, perceber o que os outros sentem ou como vivem, é infindável.

Portanto, quando, de repente, vamos parar à comunicação social e desvalorizamos a importância que ela tem e deve ter…. É claro que precisamos da cultura. É claro que precisamos de novelas. É claro que precisamos de um pianista a tocar num auditório. É claro que nós precisamos de escritores.... É claro que precisamos de espetáculos de teatro.

Quando se atribui este dinheiro, é preciso clarificar que não está tudo bem, para que não se alimente essa ideia a toda a gente. A cultura é desvalorizada, quando muito cumpre um papel funcional que começa logo na escola. Nós chamamos uma companhia de teatro para ir às escolas apresentar um “teatrinho” sobre a ecologia, o ambiente. E ninguém se lembra de convidar companhias de teatro para trabalhar com os alunos, de criar espetáculos com eles, só porque sim, porque é uma obra de arte. Nem tudo na nossa vida tem de servir um propósito maior, às vezes há coisas que são pura e simplesmente inúteis, mas fazem parte e precisamos delas. E, claramente, este anúncio feito pela Ministra não contribuiu para essa ideia, e aí está logo um problema de raiz, de educação dos nossos cidadãos. Nós precisamos de compreender que a saúde é fundamental, que precisamos de uma formação para a cidadania, mas também uma formação para a cultura. E isso certamente ajudará a resolver muitos dos problemas que o nosso setor tem.

(G.)  – Nesta lógica, referiste: “Os espaços fecharam. Os ensaios foram suspensos. As estreias foram adiadas ou antecipadas em desespero. As tournées foram canceladas. A mensagem que passa agora, direta ou indiretamente, é que a ‘Cultura Não é Segura’.” Sentes que isto pode vir a condicionar a forma como a sociedade olha para o mundo da cultura, e possivelmente a colocá-la em segundo plano?

(P.A) – Pois, também… Mas isso aí eu diria que pode ser replicável a outros setores, sem ser o da cultura. Agora imaginemos que quando estávamos a sair do primeiro confinamento tivemos o Presidente da República, e o Primeiro Ministro, a irem ao teatro a dizer para as pessoas irem aos espaços que era tudo seguro… Que maravilha…. Houve recomendações, regras, medidas que o setor da cultura teve de implementar e são incríveis! E foi extraordinário o modo como equipamentos, coletivos, companhias, empresas, e todos os profissionais se souberam adaptar e souberam cumprir de uma forma escrupulosa. É inacreditável como nós vamos a uma sala de espetáculos e compramos os bilhetes de uma forma segura, à distância. Chegámos ao espaço e somos recebidos por uma equipa que faz com que se cumpram as regras. Depois, entram na sala e têm de desinfetar os pés, as mãos, fazer o uso da máscara, manter o distanciamento, desde que entram até que saiam. Até que acabam os espetáculos e vão para as suas casas.  Portanto, os espectadores estão todos, a toda a hora, sempre vigiados e sempre a ser lembrados das regras. Em que setor, em momento algum, é aplicado tais regras? Nem nos hotéis, nem nos restaurantes, nem em lado nenhum. E não tenho rigorosamente nada contra, pelo contrário.

Nos equipamentos culturais há um cumprimento das regras que é feito de uma forma escrupulosa. As equipas entram para os palcos, não podem ir para as plateias, não se deslocam para as plateias, as plateias ficam vedadas até ao momento do espetáculo, os espaços são desinfetados mais que uma vez por dia, foram gastos centenas e centenas de euros, as equipas adaptaram-se, foram criados planos de emergência, planos de contingência. É incrível. Foi feito tudo! E as coisas foram criadas para que a experiência fosse o mais segura possível, e foi. Conhecem-se muitos poucos casos de infeção, e que eu saiba não conheço nenhum caso de surto, dentro de atividades culturais.

Foi feito um investimento ao nível da comunicação, inclusive pelo próprio Governo, para promover que a cultura era segura, e creio que as pessoas confiaram. As pessoas confiam nessas instituições. E porque pretendem continuar a sua vida cultural e social. A esmagadora maioria dos espectadores cumpriu todas estas regras com paciência. Confiaram na cultura. Encheram salas. Agora, de repente, dizer às pessoas — "olhem esqueçam, já não é seguro". Bom…. Comunicar isso, dessa forma, é preocupante. Deve haver esclarecimentos! Este Governo precisa urgentemente, como outros, de comunicar as coisas bem, e explicar, às pessoas, as coisas. Tem de se encontrar equilíbrios. Não pode ser só fecha isto, fecha aquilo. A política do encerramento e de dar apoios não chega.

(G.) – Mais à frente, referiste, ainda, que estas novas realidades criadas nos obrigam a uma refundação. Podes explorar um pouco mais este conceito?

(P.A) – Muito provavelmente, e há gente que elabora muito mais isto, que coloca tudo isto que criamos, ao longo dos séculos, em causa. Estas realidades novas que nos vêm à cabeça, que nos vêm mostrar que somos demasiado frágeis, veio colocar em causa o nosso papel dentro da bolinha que chamamos planeta Terra. Portanto, veio desafiar-nos, até pelas novas realidades criadas pelo online, e às quais tivemos de nos adaptar. Inverter a situação acho que já é só para seres mitológicos, já não é para nós.

Refundar a maneira como nós consumimos, a maneira como fazemos as nossas trocas comerciais, como nos divertimos, como convivemos uns com os outros, como dialogamos, o modo como criamos arte, também isso tem de ser refundado. É incrível como nós estamos quase há 4000 anos a discutir o que é o teatro. Esqueçam. Nós podemos continuar a discutir isto.

As ideias também têm de ser refundadas, o modo como olhamos para o mundo também tem de ser revisto. E isto eventualmente também poderá levar à criação de outros caminhos, e encontrar outros caminhos que não sejam sempre em torno de proveito. Eu dou-te alguma, tu dás-me alguma coisa, e essa coisa ser palpável, material. Ao mesmo tempo, pensar se não devemos refundar as nossas sociedades na base da solidariedade, da interajuda, e isto certamente nos levará a um futuro muito mais radiante do que aquele que temos agora dos antagonismos. Vivemos um momento romântico, no pior dos sentidos. Estamos todos inflamados relativamente aos discursos populistas. Mas depois também produzimos discursos populistas sobre esses populismos. Por isso temos de olhar para mais longe. É disso que fala um pouco o meu texto.

(G.) Enquanto Diretor Artístico do teatromosca, quais as expetativas futuras para o setor?

(P.A) – Neste momento, olho para o setor com esperança que é possível fazermos alguma coisa. Não sou ingénuo ao ponto de achar que vamos conseguir mudar tudo, mas, neste momento, há uma desorientação muito grande. E atenção, é normal porque todos os setores estão completamente desorientados. Creio que a própria indústria farmacêutica o deverá estar.

Há um clima de incerteza sobre todos os setores, sobre todas as sociedades, sobre todo o mundo. Eu olho com muita apreensão para tudo isso, porque eu estou lá metido, eu estou completamente dentro do sistema, e também a sofrer a ver como tudo se vai resolver. Já nem penso neste ano, porque já morreu, mas como vai ser o próximo ano, qual o futuro dos meus filhos, para que planeta vão herdar, se é possível à minha filha que está a estudar artes, trabalhar na arte, em que condições, como vai ser o mundo. Nasce um clima de incerteza muito grande. É claro que este setor está a absorver tudo isso, e que só vamos conseguir resolver isto se estivermos ativos e tentarmos dominar as situações. É preciso olhar para dentro do setor, aquilo que estamos a fazer, tentar prever o que vai ser. Muito provavelmente, nós temos de mudar o modo de organizar eventos culturais. Duvido, muito seriamente, que em 2021 seja possível organizar festivais de música com 50.000 pessoas por dia, ou sequer 10.000 pessoas por dia. Isto, se calhar, até seria possível, mas teríamos de mudar o modo como organizamos estas atividades. Portanto, temos rapidamente de nos adaptar e encontrar soluções. Desde o início desta carta, e quando decidi convocar empresas como a Everything is New, ou outras, do setor da música, ou representativas dos festivais, é com o intuito de dizer: sentemo-nos, conversemos, tentemos encontrar soluções, porque ficar à espera de que consigamos voltar à normalidade que tínhamos é uma ilusão muito grande.

Fotografia disponível via facebook Teatro Mosca


 Lê aqui a última carta de Pedro Alves:

Caríssimas e caríssimos,

teve lugar, no dia 16 de janeiro, um encontro em que participaram representantes de estruturas profissionais de artes performativas, diretores de teatros, programadores, artistas de teatro e dança, músicos, técnicos, produtores, académicos, investigadores, bibliotecários, dirigentes autárquicos, preocupados com a situação extraordinária com que estamos confrontados, sensíveis à escalada alarmante de casos de infeção e com a crise sanitária que atravessamos, mas igualmente inquietos com a paralisação quase completa do setor da Cultura. Aceitavam o convite informal e, propositadamente, desvinculado de aparelhos partidários e desassociado de um conjunto de outras plataformas, associações e distintas entidades públicas e privadas que, de algum modo, têm vindo a discutir, entre si e com os representantes governamentais, um conjunto de medidas e leis relacionadas com o Estatuto do Profissional da Cultura ou com a Rede de Cineteatros ou a reformulação do Modelo de Financiamento da atividade artística. Não inviabilizando os contributos que cada um de nós poderá dar inseridos nesses círculos, propunha-se um exercício excêntrico para ir ao encontro de outras entidades e personalidade, chamando-os para a discussão, procurando colher diferentes contributos que poderão agora servir para enriquecer as conversações e as reflexões que poderão já estar em marcha.

Para além da discussão em torno do encerramento dos equipamentos culturais e das medidas, entretanto, anunciadas pela senhora Ministra da Cultura para “combate à pandemia”, ou de uma efetiva reativação e fiscalização da aplicação do Decreto-Lei n.º 10-I/2020, unia-nos a urgência em expor, de modo alargado e inclusivo, as trágicas realidades que, em muitos casos, poderão escapar aos olhares que têm estado a orientar-nos nestes dias obscuros e discutir soluções para o delicado momento que atravessam distintas entidades e profissionais ligados direta ou indiretamente ao setor da Cultura.

Reconhecendo os importantes esforços que têm sido feitos por diferentes entidades públicas e privadas e por distintos representantes do setor, que têm estado em diálogo permanente, procurando encontrar caminhos para a criação de territórios mais férteis para as Artes e para a Cultura, não ambiciona o autor desta carta mais do que dar conta da pluralidade de relatos, opiniões e sugestões que resultaram desse encontro informal. Isto acabará por ditar, muito provavelmente, uma certa desarticulação e imprevisibilidade, certamente, contaminadas pela dificuldade em realizar qualquer tipo de exercício de cartografia de um terreno tão irregular e complexo como é aquele do domínio cultural – em qualquer parte do mundo. Como alguém afirmava a determinado ponto, os que ali se tinham reunido num sábado de manhã “não constituíam um grupo de consensos, mas sim de tensões”, de visões nem sempre alinhadas, nem sempre equilibradas, nem sequer harmonizadas, mas unidos pela ideia de que a Cultura não podia ser encerrada e que a criação artística e as nossas profissões não deviam paralisar, completamente.

Mas comecemos, pois, por saudar a iniciativa governamental, já antes (eternamente) anunciada, de reforçar a dotação orçamental para a Cultura com valores mais próximos das reais necessidades de um setor de atividade, parecendo reconhecê-lo como recurso estratégico essencial para o progresso económico e social sustentado. Acreditamos todos, certamente, que importa proteger, incentivar e valorizar os criadores, o património e a propriedade intelectual. Assim, o anúncio de “um apoio a fundo perdido e sem concurso, no montante de 42M€”, que tem como destinatários “todas as empresas e entidades coletivas do setor da cultura (teatros, salas de espetáculo, produtores, promotores, agentes, salas de cinema independentes, cineclubes, associações, …) e todos os profissionais do setor da cultura (artistas, autores, técnicos, …)”, parece, à primeira vista, vir resolver parte significativa dos problemas.

Embora se saúde esse reforço, não se pode deixar de anotar que anunciar este Programa Garantir Cultura como “apoio a fundo perdido sem concurso” não será, muito provavelmente, o modo mais acertado de o descrever. Efetivamente, a totalidade da verba apresentada publicamente – 42 milhões de euros – é destinada ao apoio de “entidades elegíveis” já apoiadas ou não apoiadas que apresentaram candidaturas aos financiamentos nos concursos que tiveram lugar em 2019 e 2020. E o que acontecerá a todos os outros que não se apresentaram a concurso nestes dois últimos anos? Ou seja, seria mais apropriado que fosse revelado aos portugueses que este financiamento se destina a comparticipar uma parte importante das despesas estruturais e os planos de atividades anuais e os projetos pontuais de um conjunto de 641 entidades (coletivas e singulares) de criação artística e programação cultural. Mais, importaria esclarecer que o que se quer dizer com “fundo perdido” é que se trata de um investimento estratégico que permitirá a um significativo número de instituições capitalizar esse valor investido através da obtenção de outras receitas oriundas de enormes esforços que visam a captação de financiamentos, apoios, patrocínios, coproduções, acordos de parceria com instituições públicas e privadas, nacionais e internacionais, que serão aplicadas em programas e projetos de interesse vital para as nossas sociedades, encarando, de uma vez por todas a Cultura como ferramenta estratégica para a consolidação de democracias cada vez mais participadas e economias mais sólidas e sustentáveis. Aceitemos, de uma vez por todas que investir na criação artística e no património cultural de uma sociedade é, no fundo, promover o desenvolvimento individual e coletivo.

Mas tudo isso, também, apenas será possível (neste momento, especialmente) se conseguirmos perceber quem fica de fora, quem pode ser marginalizado pelas medidas que agora foram apresentadas, porque importará compreender que as verbas colocadas em cima da mesa no que poderíamos chamar “gabinete de crise no combate à pandemia” se destinam, quase exclusivamente, àqueles que já concorreram a financiamentos que estão sob a tutela da Direção-Geral das Artes. E, então, importará perguntar o que acontecerá a jovens criadores, a um conjunto bem alargado de artistas em início de carreira (alguns que acabaram agora os seus estudos e que olham cada vez mais com apreensão para o seu futuro na área para a qual investiram na sua formação académica)? O que será de uma série de entidades de natureza distinta, umas mais consolidadas do que outras, que desenvolviam os seus trabalhos de forma autónoma em relação aos financiamentos públicos – porque entendiam não ter capacidade para instruir candidaturas, porque optavam por não o fazer ou porque, de algum modo, estavam impedidas de o realizar -, organizando os seus orçamentos em torno de receitas próprias (bilheteira e vendas de espetáculos), que, em muitos casos, prestavam serviços fundamentais junto de diferentes públicos e que enriqueciam o tecido cultural português? O que poderão esperar os técnicos, os produtores, os agentes, os promotores, os músicos e uma enorme lista de cidadãos que, de um modo ou de outro, se encontram, neste momento e há demasiado tempo, a asfixiar, contando pelos dedos de uma mão o número de eventos em que puderam participar e que não conseguem vislumbrar grandes soluções para lá dos 438,81€ propostos como apoio social aos trabalhadores da Cultura – ou o aumento das quotas de música portuguesa nas rádios, que parecem não estar totalmente de acordo com a proposta? E todos aqueles que não possuam “CAE e IRS da Cultura (Principais)” e que, de uma forma ou de outra, com maior ou menor regularidade, estavam envolvidos na organização ou na produção de atividades culturais? Nesse sentido, ao mesmo tempo que decorrem as negociações com vista a repensar a segurança laboral dos profissionais da área, apelamos a que o mapeamento do setor - decorrente da parceria estabelecida entre a Direção-Geral das Artes e o  Iscte-Instituto Universitário de Lisboa, através do Observatório Português das Atividades Culturais -, possa ser permanentemente atualizado e que se realize de um modo alargado e abrangente. O mais importante neste aspeto é que os resultados desse trabalho possam ser revelados publicamente e que o mesmo possa afetar, positivamente, a definição de políticas culturais e sociais adequadas e justas. De igual modo, importará acompanhar de perto a aplicabilidade e execução de todas as medidas apresentadas até agora.

E, embora não possamos afirmar que algum destes assuntos seja, verdadeiramente, novo, temos consciência que a pandemia nos tem revelado fragilidades muito maiores e mais profundas do que apenas as que estão intimamente relacionadas com a Saúde. O estabelecimento de políticas que tenham origem num real diálogo intersetorial e de encontros interministeriais ainda continuam a ser surpreendentes, quando o testemunhamos. Os nossos dias exigiriam reformas profundas também a esse nível. Diríamos até que as novas realidades criadas nos obrigam a essa refundação. Pelo que já vimos, a Direção-Geral das Artes ou o Instituto do Cinema e Audiovisual nunca conseguirão assumir-se como ferramentas capazes de apresentar soluções universais para as crises que vivemos, até porque algumas delas são sistémicas e exigirão respostas muito mais imbrincadas do que aquelas que organismos estatais estanques poderão oferecer. Há muito tempo que se diz que é urgente pensar em soluções estruturantes, contudo, essas linhas tardam em ser desenhadas. Insistimos em criar esboços. Por vezes, rabiscamos sobre os rabiscos anteriores. Vão-se criando políticas palimpsésticas pouco estruturadas, que pouco ou nada articulam com outras práticas, que insistem em padrões únicos ou que assentam, quase exclusivamente, no monocromatismo, e a que, rapidamente, se sobrepõem mais um conjunto de novos arabescos que tardam em constituir uma visão orientadora alargada e inclusiva na qual possamos confiar. Atentemos, por exemplo, sobre o caso do Plano Nacional das Artes e tentemos compreender como tem sido (ou não) implementado e o que se perspetiva num futuro próximo e num horizonte um pouco mais alargado no âmbito deste projeto. Não basta dizer (a quem?) que se deve “continuar a promover o acesso às artes, ao património e à cultura”. É mesmo necessário que, por exemplo, as escolas (nas figuras dos diretores, dos docentes, dos alunos e de todos os outros atores que integram os processos educativos) e os agentes e as instituições culturais tenham condições para desenvolver projetos em parceria que possam também provar, definitivamente, que “a cultura, as artes e o património não são um luxo extracurricular, mas uma necessidade vital para a concretização da missão da escola”.

O que assistimos, no último ano, foi a um fechamento cada vez maior entre setores, algumas poucas “pontes” que iam sendo estabelecidas a medo, tolhidas, evidentemente, pelos receios provocados pelo acautelamento das condições de higiene e segurança e pela necessária aplicação de um (nem sempre estável e nem sempre claro) conjunto de medidas de contenção da pandemia. Juntar a isso o encerramento dos equipamentos culturais – dos cineteatros aos museus, das bibliotecas aos auditórios e salas de espetáculos, das galerias de arte aos estúdios de dança... -, significará, certamente, asfixiar um conjunto de entidades e agravar a precarização de uma série de ligações laborais que acabarão por pesar ainda mais sobre os sistemas de proteção social que já se encontrarão, definitivamente, num estado catastrófico. Provavelmente, foi com demasiada facilidade que adotámos o slogan que nos dizia que a “Cultura é Segura”. Este novo confinamento veio clarificar a ideia. Apesar de, em tempo recorde, terem sido adotadas medidas extraordinárias e de, nos últimos seis meses, terem sido respeitadas e cumpridas com rigor e enorme competência todas as recomendações da DGS e terem sido seguidas todas as normas de higiene e segurança, procurando evitar o agravamento desta pandemia, apesar de todos terem contribuído para a exemplar execução dos planos estabelecidos com um sentido de responsabilidade e uma paciência invejáveis, apesar da enorme afluência dos públicos durante este meio ano de atividade cultural, em que se mostrou, claramente, que havia confiança e segurança, entendeu-se que as atividades culturais não podiam continuar a ser realizadas na copresença dos públicos. Os espaços fecharam. Os ensaios foram suspensos. As estreias foram adiadas ou antecipadas em desespero. As tournées foram canceladas. A mensagem que passa agora, direta ou indiretamente, é que a "Cultura Não é Segura". Infelizmente, reconhecemos bem este cenário. Vivemo-lo durante três agonizantes meses de 2020. Gostaríamos de acreditar que viveremos nesta situação durante apenas quinze dias e que as salas de espetáculos serão reabertas ao público e que os eventos poderão ser retomados. Tal como sonhamos que poderemos vir a abrandar nas limitações impostas a outros setores e como desejamos que a crise sanitária possa ser ultrapassada rapidamente. Mas também imaginamos que a reavaliação da evolução da pandemia possa levar ao prolongamento e até ao endurecimento das medidas restritivas. Mas interessa relembrar que existem projetos artísticos adiados desde março do ano passado, que esperavam por melhores dias para a sua execução em 2021. Muitos desses projetos voltam agora a ser adiados. Gerir as agendas de artistas, estruturas e equipamentos é, cada vez mais, uma tarefa exclusiva de seres mitológicos. Começa a ser impossível (re)calendarizar o que quer que seja. Já não há mais por onde mexer. E já não é apenas o ano de 2021. A represa rebentou e corre-se o risco de deixar que 2022 seja submergido pela vaga descontrolada de atividades que vêm sendo adiadas desde março do ano passado e que incontáveis profissionais se afoguem no meio desta tempestade. Que espaço para novos projetos? Que tempo temos? Como faremos? Que alternativas existem? O que pode ainda ser feito?

Esta crise, como qualquer outra, coloca-nos sob uma pressão indesejada que poderá levar-nos a decisões precipitadas, evidentemente. Poderá conduzir-nos ao erro, pois claro. Mas também nos obriga a pensar rapidamente e a tomar ações que, em alguns momentos, poderão trazer-nos benefícios e proveitos futuros. Relembremos o biólogo britânico Alexander Fleming e as circunstâncias peculiares em que se deu a descoberta da penicilina. Interessa é que possamos estar vigilantes, atentos também aos acidentes e ao acaso e que consigamos utilizar as experiências que adquirimos durante estes processos complexos para evitar que possamos retroceder aos lugares que já percebemos que não nos servem. O investimento de um pequeno montante (atendendo ao valor global da famosa “bazuca” europeia) para a abertura urgente de uma linha de apoio (a fundo perdido e com capacidade para financiar a 100%, mediante o estabelecimento de um teto máximo) para a aquisição de materiais multimédia e contratação e/ou formação de pessoal técnico especializado, com vista ao apetrechamento imediato de um significativo número de equipamentos culturais, capacitando-os para a realização, em excelentes condições, de live streamings, permitiria, num prazo bastante curto, que muito menos atividades fossem adiadas ou canceladas, que alguns coletivos e artistas continuassem a criar - e alguns poderiam até aceitar o desafio de pensar em objetos artísticos especificamente adaptados às condições muito particulares da transmissão online de performances -, que se criassem até postos de trabalho que poderiam (“deveriam”, arriscar-se-á dizer) tornar-se permanentes e diversificaria a oferta cultural para os públicos neste(s) período(s) turbulento(s). Seria, certamente, um investimento que colheria frutos no imediato e que possibilitaria, inclusivamente, a criação de uma rede nacional capaz de registar obras artísticas que são valorizadas sobretudo pela sua efemeridade - mas poderíamos ampliar esta ideia para que espaços museológicos e outros pudessem encontrar nestas ferramentas multimédia soluções para os desafios destes novos tempos. Pedindo auxílio a boas práticas, imaginemos então uma expansão e solidificação do projeto da RTP Palco e no incalculável potencial que ele contém.

Pensando ainda nos equipamentos culturais, ao longo dos anos mais recentes, tem-se vindo a criar uma crescente dependência dos criadores e dos coletivos em relação, especialmente, àqueles que poderíamos identificar como espaços “institucionalizados” e com capacidade para produzir e coproduzir. De algum modo, essa relação tem permitido o estabelecimento de parcerias com condições bastante favoráveis para aqueles que as conseguem fundar, mas também tem vindo a criar grandes condicionamentos porque não são em número suficiente os espaços com estas caraterísticas. Que relevo terão e em que circunstâncias serão envolvidas as autarquias na resolução destas questões? Que papel terá o setor privado nestes processos? Temos consciência que tem estado em discussão pública a lei que virá consolidar a criação da Rede de Teatros e Cineteatros Portugueses e pretendemos apenas reafirmar a sua importância para a resposta de algumas das reflexões que aqui têm sido colocadas. Mas podemos perguntar também como é que se criam outros espaços. Que alternativas podemos procurar criar em conjunto - artistas, empresas e empresários, distintos coletivos? E seremos capazes de potenciar essas novas relações que poderão nascer? Conseguiremos estabelecer redes colaborativas que permitam a criação e disseminação de novos centros irradiadores de Cultura, novos polos que venham substituir a velha ideia de “descentralização” pela de uma proliferação de novos centros que sirvam, de modo (des)articulado e (des)ajustado, às particularidades de cada território?

Acreditemos então que, fazendo-nos valer da capacidade que todos temos para criar laços de confiança, se desejará sempre que possa vir a aumentar o número de pessoas e instituições que participará no debate e que importará que se acrescentem outras visões, que se deem a conhecer outras realidades e distintas sensibilidades, e que, juntos – aceitando essas tensões de que falámos inicialmente -, consigamos encontrar soluções muito mais amplas e inclusivas e que seja possível criar bases ainda mais sólidas para as Culturas nas nossas sociedades.

Pedro Alves


Texto de Isabel Marques
Fotografia disponível via facebook Teatro Mosca

 

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