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Pedro Coquenão: “Uma curta deste género é um gesto para se tentar provocar conversa”

Em fevereiro de 2020, chegava às mãos do artista Pedro Coquenão, mais conhecido, por Batida, um novo desafio. O de “invadir” a casa Independente para a transformar num alojamento artístico. A ideia passava por ocupar o espaço da forma que lhe ocorresse, durante esse mês. Como resultado final, e complemento, haveria de culminar a curta O Princípio, o Meio, o Fim e o Infinito.

Assim sendo, durante desse período, o artista procurou preencher as paredes da casa com peças como o Neon Colonialismo ou o Aluzejo, cruzando-as com peças escolhidas a dedo do acervo do Museu de Lisboa, como a maquete original do padrão de Leopoldo de Almeida, as aguarelas de António Costa Pinheiro ou a escultura dos Pretos de São Jorge. O ar foi ocupado com uma instalação rádio e o palco com o musical IKOQWE de onde saem os protagonistas e autores da banda sonora desta curta.

Ao longo de O Princípio, O Meio, O Fim e o Infinito são abordados temas como o padrão, o racismo, o antirracismo, o colonialismo e o neon colonialismo e a saúde mental.

O primeiro corte estreou no Indie Lisboa e uma nova versão foi recentemente apresentada no Padrão dos Descobrimentos, nos dias 1 e 2 de outubro, em Lisboa. Agora, é tempo de voar até às terras do Norte, nomeadamente, do Porto para integrar a seleção de filmes do Womex 2021, entre 27 e 31 de outubro.

O Gerador esteve à conversa com Pedro Coquenão acerca deste novo desafio e do processo de construção da curta-metragem. Ao longo desta, o artista procurou ainda refletir acerca da escolha dos temas que a integram.

Gerador (G.) – No âmbito da exposição Visões do Império, promoveste a curta-metragem O Princípio, o Meio, o Fim e o Infinito, no Padrão de Descobrimentos, em Belém. Queres começar por nos contar como surgiu este projeto e por desvendar o conceito da curta-metragem?

Pedro Coquenão (P. C.) – A curta surgiu como ressaca de uma residência artística a que nomearam de alojamento artístico local. A residência aconteceu na Casa Independente, durante o mês de fevereiro, do ano passado, mesmo antes de começar o lockdown. A ideia era estar lá fechado um mês e tentar ocupar a casa de todas as maneiras que me ocorressem. A primeira delas foi, literalmente, vivendo lá, e então ocupei um dos quartos e comecei a dormir lá algumas das noites. Comecei por pintar paredes, por ir buscar peças que estavam no armazém do Museu de Lisboa, que fizessem sentido misturar com as minhas. Depois, tentei ocupar o ar com uma rádio. Uma rádio a emitir algumas horas, por dia, com conteúdos só para aquela zona. Tinha um alcance de uns 200 metros e davam para a casa toda e para a zona do independente, mas muito ali à volta, tudo legal. Depois, ocupei também o palco com a criação de um musical que ia sendo desenvolvido à medida que o mês passava e era apresentado aos fins de semana.

Então, era as paredes e as partes físicas, com peças minhas e outras, confrontadas umas com as outras. Era o viver na casa e acabares por ter de interagir com outras pessoas, como pessoa que estava mesmo lá a habitar, e a casa não era usada para isso. Aquela casa é uma casa só de encontros. Foi essa vivência, a rádio, que para mim é uma base, foi a ocupação das paredes e do palco. Ao mesmo tempo, o que me ocorreu foi documentar isto. Eu sabia que ia haver um output que era um musical em que participa também o Luaty. Sabia que ia haver um registo que seria um disco, no final de tudo, mas, por exemplo, não estava muito disponível para escrever. Então, percebi que ao invés de ser só uma coisa documental, a registar o que aconteceu, achei que poderia ser interessante criar uma curta a partir do que aconteceu. Beneficiar do cenário, do contexto, das propostas artísticas, dos tópicos, da música, e tentar criar um filme que fosse uma derivação de tudo isto que estava a fazer.

A curta é uma tentativa de criar uma peça ficcionada que deriva de uma coisa que existiu, ou seja, é parte realista e parte ficcionada. Daí ser uma curta, se não era só um documentário. Ela tenta abordar tudo aquilo que lá foi vivido durante esse mês, seja na forma de música, de dança ou de pintura, como pode ter uma componente mais criativa e de falar dos tópicos que lá estavam, que inevitavelmente são sempre os mesmos porque nós estamos há anos para resolver isto e não vai acontecer. Vamos ter de falar sobre estas coisas.

Algumas delas são sobre a preservação do património, o olhar para a memória ou não, o olhar para a história, como lidamos com a própria arte, deixar a rádio viver de uma maneira diferente, etc. É assim uma espécie de bolha que se criou durante um mês para tentar tirar de lá o máximo de coisas.

Pedro Coquenão

G. – Nesta, são abordados temas como o próprio padrão, o racismo, o antirracismo, o colonialismo e a saúde mental. Sabendo que o padrão dos descobrimentos pretende protagonizar alguns dos elementos da proeza ultramarina e da cultura da época, a escolha deste local para apresentares este teu novo projeto foi propositada?

P. C. – Sim! Foi superpropositada. Aliás, ela era desejada há algum tempo. Confesso-te que não tenho uma grande afinidade com o monumento, tenho a mesma que todos nós tivemos que é uma relação abstrata com a história que nos contaram na escola.

O padrão, como outros equipamentos, por incompetência, e o querer chegar a todo lado foi ficando e ali está como outras coisas. Isto acaba por refletir um bocadinho a nossa posição em relação a estes assuntos. Se nos negligenciamos a uma que representa muita coisa, mas também representa violência, agressão, opressão e uma série de coisas que não nos revemos hoje. Se as deixamos ficar porque às tantas não achamos que seja um assunto tão essencial para nós. Por exemplo, as frases do António Costa crucificaram na minha cabeça como o “não tenho tempo para falar sobre racismo” ou sobre as exposições vigiadas e cruzadas do professor Marcelo que se assume como quase feminista, mas depois também como alguém que acha que o racismo é uma coisa para ser falada com alguma relativização. Portanto, quando temos essas figuras máximas, que são figuras muito populares, e que têm tido uma presença importante nas nossas vidas, nestes últimos anos, a terem esta posição sabes que este assunto do padrão ou outros não são prioritários na agenda política.

Parece-me sim que é um sítio que para uns é profano, para outros é sagrado e, portanto, é um sítio que me começou a chamar a atenção a partir do momento que me apercebi que não era só uma marosca que ali estava e que ninguém lá ia. Quando começas a ver muito turismo e quem sabe um trabalho da DGA a tentar renová-lo, com temáticas diferentes, é quando te apercebes deste esforço bonito. Foi esse esforço que me fez ir lá parar. Eu fui ao monumento, há muitos anos atrás, e não consegui encontrar nada para fazer lá, não havia nada que me inspirasse, mas ficou-me na cabeça de ter sido convidado e de não ter tido coragem de fazer nada. Então, fiz dez propostas à DGArtes sobre o que poderia ser feito ao padrão a título de exercício de cidadania. Quando estava a fazer a residência um dos objetos que me veio parar à mão, e não foi acidente, foi precisamente a escultura original de Leopoldo de Almeida, do padrão dos descobrimentos. Não queria acreditar que aquilo era o original e que dali é que nasceu a arquitetura. Esse objeto interessa-me porque consigo imaginar o artista a esculpir e a desenhar. O momento de criação é sempre um momento admirável e pensei que este objeto era interessante e incrível. Ainda fiquei mais apaixonado quando descobri que aquela maquete estava em perfeitas condições, mas o infante D. Henrique não tinha cabeça. Parecia-me uma coisa meia Tim Burton.

Pedi autorização ao museu para o poder usar e usei-o nessa residência confrontando-o com pinturas, com uma coleção de aguarelas que põem em causa o que os descobrimentos são. Eu achei bonito essas pinturas confrontarem o próprio padrão. São dois artistas portugueses, são duas peças portuguesas contemporâneas, que têm visões muito distantes de um português que viveu fora e daquilo que era a afirmação do antigo regime. As pessoas esquecem-se que aquele museu tem uma conotação grande com coisas que nós decidimos não cultivar e podemos não nos esquecer delas, mas queremos as celebrar de uma maneira pomposa. Nessa sala tive o padrão na proporção que acho que deve ser, meio metro por meio metro, com uma saída, aguarelas à volta, e uma sala cheia a questionar o som da rádio e do mar. Isto é um exemplo de uma coisa que aparece no filme que aconteceu nesta construção, instalação, ou o que as pessoas lhe possam querer chamar. Para mim é divertir-me, comunicar, provocar e ter o prazer de descobrir coisas como aquela escultura.

A escolha do padrão, depois de aparecer este objeto, nestas circunstâncias, fiquei a pensar que era o sítio perfeito para apresentar uma curta que não é comercial.

Still "O Princípio, o Meio, o Fim e o Infinito"

G. – Em relação à escolha dos tópicos do projeto, houve alguma motivação extra? Foi uma forma de consciencializar o espectador perante estas realidades, ainda, atuais?

P. C. – Espero que sim! Quando fazes algo tu queres chegar a pessoas. Então, fico feliz das pessoas que foram ao padrão. Fico feliz de estar a falar contigo. Fico feliz de terem saído artigos. Fico feliz de terem saído reações menos positivas à curta, mesmo sem ela ser conhecida. Fico feliz do Indie a ter exposto na sala Manuel Oliveira. Fico feliz do Womex o ter selecionado. É tudo felicidade. Quando chega a algum lugar tu sentes que cumpriste a função mínima de chegar a alguma pessoa.

(G.) – Ao bocadinho já me falavas que O Princípio, o Meio, o Fim e o Infinito partiu de algumas obras tuas, mas também de peças escolhidas a dedo do acervo do Museu de Lisboa, como a maquete original do Padrão de Leopoldo de Almeida, as aguarelas de António Costa Pinheiro ou a escultura dos Pretos de São Jorge. Como é que foi este processo de recolha? Porquê estas peças?

P. C. – O processo foi muito fixe e começou, precisamente, do diálogo com a DGArtes quando começou a ter interesse em fazer outras coisas. Depois, encontrei na Joana, do Museu de Lisboa, uma pessoa disponível para fazer coisas, etc. Aliás, encontrei predominantemente, mulheres neste processo todo. Os únicos homens que me cruzei foi o António Costa Pinheiro e foram os que estão escarrapachados no padrão, à exceção da mãe do infante.

Foram-se constantemente abrindo portas. Houve algumas peças que me tocaram bastante. As aguarelas do António Costa foram das últimas que vi, mas que fiquei a adorar… Pela mensagem, pela simplicidade, pela atitude intencional com que escreve, pela beleza com que aquilo está composto, com a poesia e arte, o misturar pessoas grandes com tons de azul e roxo, etc. Adorei conhecer aquela coleção e privar com ela. Foi um momento bom para mim. Como também foi o ter acesso ao padrão, mas isso foi uma questão simbólica e funcional. Não adoro a peça, acho que é fixe tê-la naquele tamanho por uma questão de memória.

Outra peça que me marcou foi a representação física de um grupo de escravos que eram integrados nas procissões de Lisboa, nas festas. É uma peça colorida, muito bonita, essencialmente artística porque são pessoas a tocar e só consegues olhar para aquilo e imaginar o que essas pessoas teriam sido se fossem livres mais cedo.

Still "O Princípio, o Meio, o Fim e o Infinito"

G. – Este projeto tem ainda a particularidade de englobar, o ativista e rapper, Luaty Beirão, igualmente, integrante do projeto IKOQWE. Que sensações procuraste trazer ao de cima com a sua participação?

P. C. – Nós temos uma história pessoal longa. Já fizemos muita coisa juntos... Um documentário, rádio em separado, etc. Ele participar às vezes acontece de uma forma mais anónima; outras vezes, menos anónima. Nós falamos praticamente todos os dias ou semanas. Falamos tanto de vídeos cómicos como falamos de assuntos sérios. Há muita cumplicidade. O Luaty dá-me muita carta branca em relação ao que lhe possa propor. Ele sente-se desafiado e aceita deixar de ser rapper ou o icónico Luaty. Ele aceita ser integrante. Isso para mim é fascinante. Há uma relação de cumplicidade que assenta numa relação de irmãos e depois artisticamente pode dar em coisas.

G. – Já num momento posterior à exibição da curta-metragem, em Lisboa, como é que caracterizas a experiência?

P. C. – É sempre um bocadinho tensa ainda por cima com a covid pelo meio. Há coisas que mudaram… Mal acaba a residência, de repente, estamos em modo lockdown. Então, todo aquele cenário de máscaras e demónios ganha assim uma dimensão mais assustadora. Depois dos episódios do George Floyd, e do Bruno Candé, os temas do antirracismo e do racismo vieram para agenda de uma maneira tão intensa e tão forte como se fosse a primeira vez que estávamos a falar do assunto. Simultaneamente, houve manifestações a dizer que não há racismo… Não há mesmo como evitar ou fugir a este assunto e a este tema de conversa. Nós temos mesmo de continuar a conversar porque ainda há muita ignorância, muita mentira, muita maldade desta conversa e falta delicadeza. Não faço a mínima de como vamos estar daqui a dois anos, mas sinto que houve uma discussão grande, durante este ano, e que a covid tornou as pessoas mais sensíveis a tudo. Houve um excesso de gritos e de gente a palrar que, de repente, a liberdade de expressão é um volume de informação tão grande, que fica tudo confuso. Mas pareceu-me que durante este tempo conseguimos dar um passo em frente destas lutas antirracistas, por exemplo. Sinto que se falou mais, que se deu mais espaço, seja por aversão ou por agressão, por se aceitar que não dá para fugir. Houve alguns passos dados nesse sentido. Por exemplo, a manifestação em Lisboa foi um passo muito forte porque tinha muitas pessoas de diferentes etnias, muitos miúdos novos. O que vejo é que este ano tem sido uma máquina de lavar cabeças, bocas, e que há muita coisa que não está certa e que precisa de ser conversada. Não podemos fingir nem nos esconder de trás do ecrã. Há muita coisa que podemos resolver na realidade, mas há ainda muita desinformação. Ainda assim, parece-me que não há volta a dar e temos de continuar a lutar, cada um no que acredita, mas quero acreditar que podemos ser mais humanos. No sentido do adjetivo e não da condição. Podemos ser muito maiores. 

Artisticamente, uma curta deste género é um gesto para se tentar provocar conversa, tentar ganhar espaço na discussão e trazer a coisa à baila e provocar pensamento crítico.

Still "O Princípio, o Meio, o Fim e o Infinito"

G. – Agora, é tempo de o projeto voar até à cidade do Porto rumo ao Womex 2021, que se realiza entre 27 e 31 de outubro. Quais as expectativas?

P. C. – As expectativas são a de ter um público internacional a assistir. Se a sala tiver algumas pessoas já é bom, se vai haver perguntas ou não, não sei, mas estou aberto a tudo. Estou aberto a falar, mas essencialmente a lógica é mais a de testemunhar. É passar-se momentos. E esses momentos inclui haver pessoas que veem e ficam a pensar naquilo. O fruto que dá isso já não controlo. Depende do terreno, do que cada cabeça pensa, porque isto de ser só um artista que provoca é um bocado redutor. Eu acho que está lá algumas respostas e coisas que daqui a uns anos são compromissos e ridículas, mas arrisco-me a isso. Eu acho que é esse o papel de cada artista ou cidadão. É arriscar a dizer coisas que vão ficar datadas. A expectativa é que alguém saia de lá a pensar em qualquer coisa.

Still "O Princípio, o Meio, o Fim e o Infinito"

G. – Há algo que gostasses de acrescentar?

P. C. – Tentem ver o filme numa tela e com outras pessoas. É bom porque dá para discutir com outras pessoas. É fixe estar numa sala e opinar sobre aquilo. Espero que a curta continue a seguir o circuito de salas que possam interessar e até mesmo a televisão pública, mais tarde.

Espero que a curta seja um grãozinho de areia para ir completando a duna e transformando a paisagem.

O Princípio, o Meio, o Fim e o Infinito - Trailer
Texto de Isabel Marques
Fotografia da cortesia da organização

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